Organização Comunista e a Disciplina

Amadeo Bordiga

15 de maio de 1924


Primeira publicação: Prometeo, 15 de maio de 1924.

Fonte: TraduAgindo.

Tradução: Leonardo Gabriel.

HTML: Lucas Schweppenstette.


A importante discussão atualmente em andamento dentro do Partido Comunista Russo põe em evidência os problemas relativos à vida interna dos partidos revolucionários. Eles também surgem nas polêmicas dos comunistas contra outros movimentos que buscam apelar ao proletariado e nos debates internos, e sempre que surgem divergências ou crises particulares dentro da nossa organização comunista internacional.

No entanto, como costuma ser o caso, é errado colocar a questão apresentando, uma contra a outra, duas posições supostamente contrastantes: dependência mecânica do centro versus democracia majoritária. A questão deveria, ao contrário, ser abordada com um método dialético e histórico; um “princípio”, seja centralista ou democrático, a ser usado como ponto de referência fundamental de onde partir compulsoriamente a fim de resolver o problema seria um contrassenso para nós, marxistas.

Em uma das edições do Rassegna Comunista, publicamos um artigo sobre o “Princípio Democrático”, levando em consideração a sua aplicação tanto no Estado quanto nas organizações políticas e sindicais, e demonstrando que para nós tal princípio não tem sustento algum; podemos apenas falar de um mecanismo de democracia numérica e majoritária que pode ser conveniente, para certas organizações, em dadas situações históricas, introduzir ou não.

A ilusão da democracia é que a maioria sempre sabe o melhor caminho a seguir e que, ao votar, cada indivíduo carrega o mesmo peso e influência. Uma crítica a essa ideia está implícita no pensamento marxista, e essa crítica não apenas rejeita o monumental embuste do parlamentarismo burguês, mas também se aplica ao princípio da maioria sendo utilizado dentro do estado revolucionário, das organizações econômicas da classe trabalhadora e até mesmo do nosso partido, com exceção das situações em que não existam escolhas organizacionais alternativas. Ninguém melhor do que nós, marxistas, sabe a importância das minorias organizadas e a absoluta necessidade, para a classe proletária e o partido que a dirige, de agir de forma estritamente disciplinada e em estrito acordo com a política do partido.

Mas se assim nos libertamos de qualquer preconceito igualitário e democrático, isso ainda não deveria nos levar a basear nossa ação em um preconceito novo ou diferente que é a negação formal e metafísica do primeiro. Nesse sentido, fazemos referência ao que está escrito na primeira parte do artigo sobre a questão nacional (Prometeo nº 4) sobre como enfrentar os grandes problemas do comunismo.

A expressão usada nos textos da Internacional, “centralismo democrático”, indica suficientemente que a prática e as regras dos partidos comunistas estão de alguma forma a meio caminho entre o centralismo absoluto e a democracia absoluta, e o camarada Trotsky chamou a atenção para isso em uma carta que deu origem a grandes debates entre os camaradas russos.

No entanto, digamos desde já que, se não podemos buscar uma solução para os problemas revolucionários apelando aos princípios abstratos tradicionais de Liberdade ou Autoridade, não achamos mais conveniente buscar uma solução em uma mistura dos dois, como se fossem ingredientes fundamentais a serem combinados.

Para nós, a posição comunista sobre a questão da organização e da disciplina deveria ser mais completa, satisfatória e original. Para defini-la brevemente, há muito preferimos a expressão “centralismo orgânico”, indicando assim que somos contra qualquer federalismo autonomista e que aceitamos o termo centralismo por seu significado de síntese e unidade, em oposição à quase aleatória e “liberal” associação de forças surgidas das mais variadas iniciativas independentes. No que diz respeito a um desenvolvimento mais completo da conclusão acima, acreditamos que ela pode ser derivada, muito melhor do que da continuação deste estudo do qual estamos dando aqui um mero esboço preliminar, de textos que provavelmente serão discutidos no quinto Congresso Comunista mundial. Em parte, o problema também é tratado nas teses sobre a tática do IV Congresso.


Passemos agora a algumas experiências históricas, que devemos ter em mente para evitar qualquer solução simplista do problema, seja a que exige a todo momento uma votação para provar a justeza da maioria, seja a que concorda a qualquer custo e o tempo todo com as hierarquias centrais e supremas. Trata-se de mostrar como, por um processo real e dialético, podemos de fato superar questões dolorosas, muitas vezes engendradas no cotidiano partidário por problemas disciplinares. Se relembrarmos a história dos partidos socialistas tradicionais e da II Internacional, veremos que esses partidos, isto é, os grupos oportunistas que tinham suas lideranças, se abrigavam nos princípios burgueses da democracia e da autonomia dos órgãos partidários. Isso, no entanto, não os impediu de usar largamente o bicho-papão da disciplina em relação a maiorias e líderes, contra os elementos de esquerda que reagiram às tendências oportunistas e revisionistas.

Este método acabou por se tornar o principal recurso através do qual aqueles partidos puderam desempenhar, sobretudo com a eclosão da guerra mundial, a função de instrumentos de mobilização ideológica e política da classe trabalhadora pela burguesia, função que significou a sua degeneração final. Desta forma, uma ditadura de direita foi construída nesses partidos; os revolucionários tiveram que combatê-la, não porque princípios intrínsecos da democracia interna do partido eram violados, ou para se opor à ideia de centralização do partido de classe (da qual a esquerda marxista era a favor), mas porque na situação concreta era necessário combater as verdadeiras forças anti-proletárias e anti-revolucionárias. Assim, dentro daqueles partidos, justificava-se plenamente o método de criação de frações, opostas às direções e dedicadas a criticá-las impiedosamente; essa atividade acabaria levando a separações e cisões que possibilitaram a fundação dos atuais partidos comunistas. É portanto óbvio que o princípio da disciplina pela disciplina é, em determinadas situações, utilizado pelos contrarrevolucionários para impedir o desenvolvimento conducente à formação do verdadeiro partido revolucionário de classe.

O melhor exemplo de como lidar com tal demagogia e sofisma foi dado pelo próprio Lênin. Ele foi centenas de vezes atacado como dissolvente, desintegrador, violador das regras do partido, mas, no entanto, ele manteve seu curso inabalável e, de forma perfeitamente lógica, tornou-se o campeão dos sólidos critérios marxistas de centralização orgânica dentro do Estado e do Partido da revolução. Pelo contrário, o exemplo mais lamentável de imposição formalista e burocrática da disciplina partidária foi dado pelo voto que Karl Liebknecht se sentiu obrigado a dar em 4 de agosto de 1914, a favor dos créditos de guerra.

Parece, pois, certo que em determinados momentos e em determinadas situações (cuja probabilidade de ocorrência e reprodução teremos de examinar melhor oportunamente) a direção revolucionária é marcada por uma quebra de disciplina e pela centralização hierárquica de uma organização preexistente. A situação não é diferente dentro dos sindicatos, muitos dos quais ainda são dirigidos por grupos contrarrevolucionários. Novamente neste caso, os dirigentes são tocados pela democracia e pela liberdade burguesa, e ficam do lado daqueles que rejeitam com repugnância as teses comunistas sobre a violência e a ditadura revolucionária. No entanto, os comunistas que lutam dentro de tais organismos devem denunciar continuamente os procedimentos ditatoriais desses mandarins burocráticos; e a melhor maneira de destroná-los é exigir nas assembleias e votações o respeito aos procedimentos democráticos. Isso não significa, porém, que devamos desenvolver um culto dogmático à democracia estatutária, pois não descartamos de forma alguma a possibilidade, em certas circunstâncias, de tomar a liderança desses organismos por meio de um ataque surpresa. Uma orientação capaz de nos conectar ao nosso fim revolucionário não pode, portanto, ser dada pela reverência formal e constante prestada aos líderes oficialmente empossados, e nem mesmo pelo cumprimento impecável de todas as formalidades de uma consulta eleitoral. Repetimos que nossa solução deve ser construída de forma bem diferente e superior.


A questão parece ser mais difícil e delicada quando passamos a considerar a vida interna dos Partidos e da Internacional Comunista. Todo um processo histórico nos separa da situação que, no seio da velha Internacional, determinou a constituição das frações, que eram partidos dentro do partido, bem como as sistemáticas violações da disciplina e as decorrentes cisões, carregadas de consequências revolucionárias.

Nossa opinião sobre isso é que o problema de organização e disciplina dentro do movimento comunista não pode ser resolvido sem ligá-lo estritamente às questões de teoria, programa e tática. Poderíamos nos propor a tarefa de desenhar um modelo ideal de um partido revolucionário, como objetivo final que esperamos alcançar, e tentar elaborar a estrutura interna e as regras de tal partido. Chegaríamos facilmente à conclusão de que em tal partido não serão permitidas nem lutas fracionárias nem desacordos de organismos periféricos com as direções do órgão central. No entanto, nada teríamos resolvido se aplicássemos essas conclusões, como são, ao nosso partido e à Internacional, não certamente porque tal aplicação integral não seria altamente desejável para todos nós, mas porque na vida real não estamos nem perto de tal retrato. Os fatos reais nos levam a reconhecer que as divisões dos partidos comunistas em frações, e as divergências que por vezes se transformam em conflitos entre esses partidos e a Internacional não são exceções isoladas, mas a regra.

Infelizmente a solução não é tão simples. Devemos entender que a Internacional ainda não funciona como um único partido comunista mundial. Está, sem dúvida, no caminho para alcançar este resultado, e deu imensos passos em frente em relação à antiga Internacional. Mas para ter certeza de que está realmente avançando da melhor maneira possível na direção desejada e para adaptar a tal objetivo nossa atividade como comunistas, devemos amarrar nossa fé na natureza revolucionária e na capacidade da nossa gloriosa organização mundial a um contínuo trabalho, baseado no controle e na avaliação racional de nossas escolhas políticas e do que se passa em nossas fileiras.

Considerar uma disciplina total e perfeita, como derivaria de um consenso universal também no que diz respeito à avaliação crítica de todos os problemas do movimento, não apenas como resultado, mas como meio infalível de resolver os problemas simplesmente dizendo: a Internacional é o Partido Comunista mundial, e o que quer que os seus órgãos centrais emitam deve ser seguido fielmente; tudo isso é sofisticamente virar o problema de cabeça para baixo.

Devemos lembrar, para iniciar nossa análise da questão, que os partidos comunistas são organizações às quais se adere “voluntariamente”. Este fato é inerente à natureza histórica dos partidos, mais do que o reconhecimento de qualquer “princípio” ou “modelo”. Na verdade, não podemos obrigar ninguém a tirar o cartão do partido, não podemos alistar comunistas, não podemos impor sanções a quem não cumpre a disciplina interna: todo membro é livre para nos deixar quando quiser. Não queremos dizer agora se esta situação é desejável ou não: é assim e não há como mudar. Segue-se, portanto, que não podemos adotar a fórmula, sem dúvida cheia de vantagens, da absoluta obediência às ordens do alto.

As ordens vindas das hierarquias centrais não são o ponto de partida, mas sim o resultado do funcionamento do movimento, considerado como uma comunidade. Isso não deve ser entendido de uma forma tolamente democrática ou legalista, mas em seu sentido realista e histórico. Ao dizer isso, não estamos advogando um “direito” para a massa de comunistas de elaborar a política que os dirigentes devem seguir: apenas reconhecemos que é nesses termos que se dá a formação de um partido de classe, e com base nisso teremos que abordar o estudo da questão. As conclusões esquemáticas a que chegamos estão assim esboçadas.

Não há disciplina automática que assegure o cumprimento das ordens e provisões do alto, “quaisquer que elas sejam”; há uma série de ordens e provisões, chegando às origens reais do movimento, capazes de garantir o máximo de disciplina, isto é, ação unitária de todo o organismo; e há um conjunto de outras provisões que, embora partindo do centro, podem comprometer a disciplina e a solidez organizativa. Trata-se, portanto, de delimitar a tarefa dos órgãos dirigentes. Quem deve fazer isso? Todo o partido, toda a organização o fará; não no sentido banal e parlamentar de direito a ser consultado sobre o “mandato” a dar aos dirigentes eleitos e sobre os limites que deve ter; mas no sentido dialético que consiste em tradição, preparação, continuidade real do movimento no que diz respeito ao pensamento e à ação. Precisamente porque somos antidemocráticos, acreditamos que nesta matéria uma minoria pode ter pontos de vista que correspondam melhor aos interesses do processo revolucionário do que os da maioria. Certamente isso só acontece excepcionalmente, e a ocorrência de tais transtornos disciplinares, como aconteceu na antiga Internacional e esperamos que não ocorra em nossas fileiras, indica uma situação gravíssima. Mas, mesmo sem chegar a esse extremo, podem ocorrer outras situações menos contundentes e críticas, quando é útil e até essencial que os grupos exijam do centro dirigente esclarecimentos sobre suas políticas.

Esta é, em suma, a base para o estudo da questão, que deve ser enfrentada levando em conta a verdadeira natureza histórica do partido de classe: um organismo com tendência a expressar a unificação de todas as lutas proletárias individuais que surgem no terreno social em direção a um objetivo central e comum; um organismo caracterizado por adesões voluntárias. Resumimos assim nossa tese, acreditando ser fiéis à dialética marxista: a ação que o partido realiza e as táticas que adota, ou seja, a maneira como o partido se comporta em relação ao “exterior”, tem por sua vez consequências sobre sua organização e sua estrutura “interna”. Pretender, em nome de uma disciplina invariável, manter o partido disponível para “qualquer” ação, tática ou manobra estratégica, ou seja, sem limites ou fronteiras previamente determinadas e conhecidas por todos os militantes da organização, é comprometê-lo fatalmente. A unidade máxima desejável e a solidez disciplinar só podem ser efetivamente alcançadas enfrentando o problema nesta plataforma, e não alegando que ele se resolve preconceituosamente por uma simples regra de obediência mecânica.