Os fundamentos do comunismo revolucionário

Partido Comunista Internacional — PCI

1957


Primeira publicação: Il programma comunista, números 13, 14 e 15 de 1957.

Fonte: Proelium Finale.

Tradução: Proelium Finale.

HTML: Lucas Schweppenstette.


[Prefácio de 1970]

O texto a seguir é um registro escrito duma reunião geral do Partido em 1957.

A fase histórica negativa que nos levou a escrever os Fundamentos ainda está conosco hoje e o texto representa o trabalho árduo e cansativo de esclarecimento doutrinário. Da forma que Lenin ensinou e a Esquerda confirmou, esta é uma tarefa sem fim do Partido revolucionário, mesmo que no calor da insurreição armada. Os Fundamentos devem ser lidos com uma paciência e humildade extrema (não são atributos típicos da teimosa e impaciente pequena burguesia), pois representam uma síntese das cruciais e inesquecíveis batalhas do proletariado, feita de maneira programática e teórica. O ponto principal que o trabalhador deve entender é o que entendemos como o fundamento Fundamental, que resumimos como o seguinte: “A pequena burguesia se torna não só tão reacionária quanto a burguesia, mas até mesmo mais do que ela. Qualquer tentativa de criar laços com esta é equivalente ao oportunismo, a destruição das forças revolucionárias e solidariedade com a preservação capitalista. Isto é válido para todo o mundo ocidental.” Adicionamos que um passo é dado em direção ao inimigo, cada vez que o programa e as posições doutrinais do Partido são distorcidas e adulteradas.

É por meio desses esses fundamentos e pela classificação dos diversos inimigos da revolução, os “negadores” (anticomunistas declarados), “falsificadores” (socialdemocracias, anarquistas, etc.) e “modernizadores” (esquerdistas de hoje em dia) que o texto apresenta diversos argumentos que demonstram que os piores destes são os últimos do grupo, com o terceiro sendo o pior de todos. Fazendo referência às respostas dadas por Marx há mais de um século a Proudhon, Bakunin, Stirner, etc., o texto expõe as posições dos “falsificadores” de hoje e daqueles dos anos 70 e 60 décadas antes de surgirem, demonstrando que suas elaborações “inéditas” não eram tão inéditas no final das contas. Desde 1957, a peste dos “falsificadores”, seguindo as receitas dos alquimistas pequenos burgueses, aprofundou sua influência e espalhou sua praga por vários setores do proletariado e até mesmo do Partido. A característica distinta de todo “modernizador” é a suposta descoberta de um lado “revolucionário” da pequena burguesia. Dependendo do tipo de “modernizador” ao qual estamos nos referindo, este “lado” pode ser um “povo” mal definido, “estudantes revolucionários”, “autonomia operária” e assim por diante. Consequentemente, imaginam “frentes” e “campos revolucionários” imaginários onde se incluem uma massa de anarquistas, esquerdistas, extraparlamentaristas, comunistas internacionalistas e todos que encontramos por aí.

Onze anos antes, em 1946, as mesmas questões tinham sido confrontados em nosso texto Tracciato d’impostazione [Esboço dos Fundamentos]:

O movimento revolucionário comunista desta violenta época deve ser caracterizado não só pela demolição teórica do reformismo e conformidade com o mundo atual, mas pela posição tática segundo a qual não existem avanços que podem ser feito com tais movimentos, reformistas ou conformistas, nem mesmo em certos setores ou períodos.

O grito de guerra do comunismo revolucionário, que bradamos desde já e que somos forçados a repetir milhares de vezes para quebrarmos o feitiço oportunista e combater a sua influência divisiva, é este: O partido empunha a arma do Estado. Sem o Estado, órgão indispensável da classe trabalhadora, a classe não tem vida e nem força para lutar”. Este fundamento central do comunismo está conectado de forma dialética a outro, o de que “se a alternativa entre a crise mundial e a guerra e a revolução comunista internacional é apenas uma questão de força revolucionária da classe, então a questão de força depende primariamente da restauração e defesa da teoria revolucionária, e em um partido comunista que não reconheça fronteiras”. Estes são — seus canalhas! — os dois lados da mesma questão e não “estágios”! Nas palavras de Lenin: “sem teoria revolucionária não existe ação revolucionária”. Mas não se conquista teoria duma só vez: ela tem de ser estudada, digerida e cristalizada num partido militante. Nunca podemos dá-la como certa. Nunca!

Nada de novo sob o sol então. Apenas o trabalho contínuo de apresentar a uma nova geração de militantes (e no futuro, à classe armada) os fundamentos de nossa teoria. A cada dia que se passa, os eventos triviais do capitalismo servem apenas para confirmar a validade científica do marxismo, demonstrando a capacidade de explicar os mecanismos regulando, não apenas o passado deste modo de produção desumano, mas também o seu futuro.

Escrito a mais de meio século atrás, o Fundamentos foi uma ótima resposta às necessidades tradicionais de nosso movimento, e ainda hoje mantém o seu poder e rigor teórico.

Introdução

Precisamos começar, antes de tudo, explicando que o objetivo desta nossa exposição não é examinar sistematicamente todos os aspectos econômicos, históricos e políticos do esquema comunista e seu programa, nem fornecer um tratamento exaustivo do que poderíamos chamar de “tecido conjuntivo” que une todos esses diferentes aspectos do comunismo, ou seja, nossa forma original e completamente distinta de resolver as questões da relação entre teoria e ação, economia e ideologia, determinando a causalidade e a dinâmica da sociedade humana; ou seja, o método que o marxismo, e somente o marxismo, tem usado desde que surgiu na primeira metade do século XIX, e ao qual, por uma questão de brevidade, pode se referir como o aspecto filosófico do marxismo, ou materialismo dialético.

Além disso, se procurássemos sistematizar esses conceitos para explicar nossa visão particular da função do indivíduo na sociedade, da relação do indivíduo e da sociedade com o Estado, e do significado que nossa doutrina atribui à classe, estaríamos nos colocando abertos à acusação usual de abstracionismo; correríamos assim o risco de ser mal compreendidos, e pareceríamos ter esquecido um elemento chave de nossa doutrina, a saber, que as fórmulas necessárias para desvendar essas questões não são fixas para todo o tempo, mas variáveis dentro de uma sucessão de grandes períodos históricos, que para nós são equivalentes a diferentes formas sociais e modos de produção.

Portanto, embora afirme a consistência com que o marxismo tem respondido aos acontecimentos em diferentes situações históricas, nossa “re-proposição” estará intimamente ligada à fase miserável e abrangente do mundo que vem afetando o movimento revolucionário contra o capitalismo nas últimas décadas — e certamente o afetará por muitas décadas. Nosso objetivo será colocar as pedras fundamentais de nossa ciência de volta em sua posição correta, realinhar as que nossos inimigos mais querem minar e tomar medidas para compensar suas tendências deformadoras.

Para isso, vamos nos concentrar nos três principais grupos de críticos da doutrina genuinamente revolucionária, prestando especial atenção às críticas que a maioria afirma teimosamente se basearem nos mesmos princípios e movimentos que nós.

O leitor deve lembrar que um tema semelhante foi desenvolvido durante nosso encontro de 1952 em Milão(1). A primeira parte do relatório reivindicou a invariância histórica do marxismo, defendendo que essa não é uma doutrina em formação contínua, mas sim completa na época histórica que lhe é própria, ou seja, no período em que surgiu o proletariado moderno e é pedra de toque de nossa visão histórica que essa classe passará por todo o arco da ascensão e queda do capitalismo, utilizando o mesmo arsenal teórico inalterado. A segunda parte do relatório — Sobre o Ativismo(2) — desenvolveu uma crítica à ilusão perene do “voluntarismo”, retratando-o como uma forma extremamente perigosa e degenerada de marxismo, que continua sendo explorada sempre que há um surto da doença oportunista.

Análise da Oposição

Na primeira parte desse relatório, dividimos os inimigos de nossa posição em três campos: os que negam a validade do marxismo, os que o falsificam e os que afirmam estar atualizando-o.

Hoje, o primeiro grupo é representado pelos defensores e apologistas abertos do capitalismo, que o retratam como a forma última da “civilização” humana. Não vamos dar muita atenção a eles; eles já receberam um nocaute de Karl Marx e isso nos liberta para aplicarmos os mesmos nocautes aos outros dois grupos. (Colocamos aqui entre parênteses, de uma vez por todas, que nossa “re-proposição” declarada não aspira tanto a uma vitória polêmica definitiva, mas visa, dentro dos limites deste resumo, definir claramente nossas posições e nossas características, e mostrar como elas não mudaram em mais de 100 anos).

Os negadores de Marx do primeiro grupo veem sua derrota confirmada, por ora apenas doutrinária (e, amanhã, social), pelo fato de que a cada dia que passa mais e mais deles são obrigados a “roubar” as verdades que Marx descobriu e, convencidos de que não podem derrubá-las quando enunciadas claramente (nós revolucionários, pelo contrário, procuramos, sem medo, fazê-lo com suas teses clássicas) eles se juntam ao segundo grupo, os falsificadores, ou (por que não?) do terceiro.

Os falsificadores são aqueles que vem sendo definidos historicamente como “oportunistas”, revisionistas ou reformistas, ou seja, aqueles que eliminaram do conjunto integral das teorias de Marx — como se fosse possível sem destruí-la completamente — a perspectiva de catástrofe revolucionária e o uso da violência armada. Mas há também muitos falsificadores entre aqueles que afirmam aceitar a rebelião violenta: eles são igualmente maus e propensos à superstição do ativismo. O que ambos compartilham é uma aversão à característica identificadora e discriminatória da teoria de Marx: força armada, não mais nas mãos de determinados indivíduos ou grupos oprimidos, mas nas mãos da classe liberada e vitoriosa, da ditadura de classes, fato que atormenta tanto burgueses socialdemocratas como anarquistas igualmente. Poderíamos ter alimentado a falsa esperança em 1917 de que esse grupo de oportunistas, podre até alma, tivesse sido afundado pelos golpes de Lenin; no entanto, embora considerássemos essa vitória como definitiva no reino da doutrina, estávamos também entre os primeiros a advertir da presença das condições para o ressurgimento dessa infame espécie. Hoje podemos observar isso tanto no stalinismo quanto no pós-stalinismo russo em voga desde o 20º Congresso do Partido Comunista Russo.

Finalmente, colocamos na terceira categoria os modernizadores, aqueles grupos que, apesar de considerarem o stalinismo uma nova forma do oportunismo clássico já derrotado por Lênin, atribuem este terrível desenvolvimento do movimento operário revolucionário a defeitos e inadequações dentro da doutrina original de Marx e que afirmam poder retificá-la com base em evidências que a evolução histórica proporcionou após a formação da teoria; uma evolução, segundo eles, que a contradiz.

Na Itália, na França e em outros lugares há muitos desses grupos que dissiparam totalmente as primeiras reações proletárias contra a terrível sensação de desilusão decorrente das distorções e decomposições do stalinismo; da praga oportunista que matou a Terceira Internacional de Lenin. Um desses grupos está ligado ao trotskismo, mas na verdade não percebe que Trotsky sempre condenou Stalin por desviar-se de Marx. É certo que Trotsky também se entregou demais aos julgamentos pessoais e morais; um método estéril, como demonstrado pela forma descarada como o 20º Congresso usou precisamente esses métodos para tomar vantagem da tradição revolucionária, muito mais do que o próprio Stalin.

Todos esses grupos sucumbiram à doença do ativismo, mas sua enorme distância crítica do marxismo faz com que não tenham percebido que estão cometendo os mesmos erros que os Bernsteins alemães, que desejavam construir o socialismo dentro da democracia parlamentar, opondo sua prática cotidiana ao que eles viam como a “frieza” da teoria. O ativismo desses grupos é também semelhante ao dos herdeiros de Stalin, que esmigalharam as posições de Marx, Lenin e Trotsky sobre a internacionalidade da transformação econômica socialista numa indecente demonstração de poder armado, com o qual, embora exacerbando sua fome de poder, afirmam já ter construído essa nova economia.

Stalin é o pai teórico deste método de “enriquecimento” e “modernização” do marxismo, um método que, quando e onde quer que apareça, destrói a visão da força revolucionária proletária mundial.

Assim, embora adotemos uma posição que se opõe aos três grupos simultaneamente, é necessário abordar e pôr ordem nas distorções enganosas e as neoconstruções arrogantes do terceiro grupo, mais conhecidas hoje pela sua contemporaniedade, relacioná-las à velhas armadilhas históricas é consideravel mais díficil depois da devastação dountrinária do estalinismo. Contra isso, propomos uma postura única: um retorno às posições comunistas fundamentais do Manifesto de 1848, que contém, em potencial, toda a nossa crítica social e histórica e que também demonstram que tudo o que aconteceu desde então, todas as lutas e derrotas sangrentas vividas pelo proletariado ao longo do século passado, só servem para confirmar a validade do que algumas pessoas insensatamente desejam abandonar.

I. O Partido e o Estado de Classe como Formas Essenciais da Revolução Comunista

A Questão Central do Poder

Apesar das contramedidas preventivas tomadas pelo 20º Congresso do Partido Comunista Russo, o número de críticos da degeneração de Moscou continuou a crescer após os acontecimentos na Hungria, Polônia e Alemanha Oriental, e eles estão até à margem dos partidos stalinistas oficiais no Ocidente e incluem pessoas como Sartre e Picasso que são, em nossa opinião, altamente duvidosos e associados com a pequena burguesia. Sua condenação de Moscou, não totalmente malsucedida, soa algo assim: abuso da ditadura, abuso do partido político centralmente disciplinado, abuso do poder do Estado em sua forma ditatorial. Todos eles apresentam remédios semelhantes: mais liberdade, mais democracia, socialismo a ser trazido para o ambiente ideológico e político da legalidade liberal e eleitoral e o uso do poder do Estado em relação a diferentes propostas e opiniões políticas deve ser abandonado. Como de costume, os principais alvos de nossas críticas não são aqueles que defendem esse ponto de vista porque defendem abertamente o modo de produção burguês (santificado justamente por esse quadro ideológico, jurídico e político), mas aqueles que desejam enxertar esse absurdo no tronco da doutrina marxista.

Nós temos exatamente o ponto de vista oposto, então vamos esclarecer o assunto imediatamente. O movimento revolucionário, livre da admiração servil do “mundo livre” americano e livre da sujeição a uma Moscou corrupta e imune à putrefação sifilítica do oportunismo só pode ressurgir recuperando sua plataforma marxista radical original e declarando que o conteúdo do socialismo supera e nega conceitos como Liberdade, Democracia e Parlamentarismo e os revela como meios de defesa e sustentação do capitalismo. Mas talvez a mentira suprema e o fundamento principal do pensamento contrarrevolucionário seja a noção do Estado como árbitro neutro dos interesses de classe e partidos e, portanto, oferecendo a farsa do bordão da liberdade de opinião. Tal Estado e tal liberdade são invenções monstruosas que a história nunca conheceu nem jamais conhecerá.

Não só é indiscutível que o marxismo estabeleceu e declarou isto desde o seu início como deve ser enfatizado que o conceito de uso da força física contra uma minoria — ou maioria — inimiga pressupõe a intervenção de duas formas essenciais contidas dentro do esquema histórico marxista: Partido e Estado.

Existe um “esquema histórico marxista”, em outras palavras, na medida em que a doutrina marxista se baseia na possibilidade de se traçar um esquema dentro da história. Se esse padrão não puder ser encontrado, ou estiver errado, então o marxismo desmoronará e seus negadores do primeiro tipo estarão certos. Quanto aos falsificadores e “modernizadores” do marxismo, seria altamente improvável que eles capitulassem, mesmo que tivessem provas de que suas opiniões estavam equivocadas!

Aqueles que se opõem à nossa tese de que Partido e Estado não são elementos acessórios, mas principais, e que preferem insistir o elemento principal é a classe, com o Partido e o Estado sendo acessórios da história da classe e da luta de classe, que são tão fáceis de “trocar” quanto os pneus de um carro, são diretamente contrariados pelo próprio Marx, na carta a Weydemeyer(3) citada por Lenin em Estado e Revolução, cuja construção teórica reivindicamos integralmente. “Que existem classes”, diz Marx, “não fui eu quem descobriu, mas muitos escritores e historiadores burgueses” (a partir de 1852). Também não descobri a luta de classes, mas muitos outros, que não são por isso nem comunistas nem revolucionários”. “O conteúdo de minha doutrina está no conceito histórico da ‘ditadura’ do proletariado, estágio necessário na passagem do capitalismo ao socialismo”. Assim fala Marx, e é um dos raros momentos em que ele fala de si mesmo.

Não estamos, portanto, particularmente interessados em uma classe trabalhadora que seja definida estatisticamente e também não estamos particularmente interessados em tentativas de resolver onde os interesses da classe trabalhadora divergem de outras classes (há sempre mais de duas). O que nos interessa é a classe que instalou sua ditadura, ou seja, que tomou o poder, destruiu o Estado burguês e instalou seu próprio Estado: é assim que Lenin, como um maestro, explica, envergonhando aqueles da 2ª Internacional que tinham “esquecido” o marxismo. Como é que essa classe pode formar a base de um poder estatal ditatorial e totalitário, de uma nova máquina estatal oposta à velha como um exército vitorioso que ocupa as posições do inimigo derrotado? Através de que órgão? A resposta imediata do filisteu é: um homem, e, na Rússia, Lenin foi esse homem (a quem eles têm o descaramento de juntar ao miserável Stalin, negado hoje e talvez assassinado ontem por seus adoradores). Nossa resposta é bem diferente.

O órgão da ditadura e operador da arma-Estado é o Partido político de classe; o partido que, através de sua doutrina e de sua contínua ação histórica, tem sido potencialmente incumbido, próprio da classe proletária, da tarefa de transformar a sociedade. Não dizemos apenas que a luta e a tarefa histórica da classe não pode ser alcançada sem as duas formas: Estado ditatorial, (ou seja, a exclusão, enquanto existirem, das outras classes que doravante são derrotadas e subjugadas) e do partido político, dizemos também, em nossa habitual dialética e linguagem revolucionária, que só se pode começar a falar de classe, de estabelecer um elo dinâmico entre uma classe reprimida na sociedade de hoje e uma futura forma social revolucionária, levando em consideração a luta entre a classe que detém o Estado e a classe que vai derrubá-lo, somente quando a classe não é mais um termo estatístico frio no nível miserável do pensamento burguês, mas uma realidade, manifestada em seu órgão, o Partido, sem o qual não tem vida nem força para lutar.

Não se pode, portanto, separar o partido da classe como se a classe fosse o elemento principal e o partido meramente acessório a ela. Ao proporem a ideia de um proletariado sem partido, um partido esterilizado e impotente, ou ao procurarem substitutos para ele, os últimos corruptores do marxismo aniquilaram a classe, matando qualquer possibilidade da luta pelo socialismo, ou até mesmo por uma casca de pão.

Erro Desmascarado Um Século Atrás

Como resultado de sua crítica confusa, os enriquecedores do marxismo de hoje cometeram erros semelhantes e acabaram inadvertidamente adotando as mesmas insinuações burguesas e pequeno-burguesas que foram feitas quando a Revolução Russa ainda seguia a linha marxista clássica — admirada até mesmo pelos “enriquecedores” — em que Classe, Estado, Partido e membros do Partido estavam juntos no mesmo plano revolucionário, justamente porque nesses pontos essenciais não havia hesitações de qualquer tipo.

Não percebem que ao diluir o partido e sua função como principal órgão revolucionário, declaram o proletariado; que privado da capacidade de derrubar a classe dominante, ou mesmo de mitigar seus efeitos em campos restritos de atividade, acabam sendo acorrentados a ela. Eles realmente acham que melhoraram o marxismo por terem aprendido da história um lugar comum banal de “não exagere”! Digno do mais mesquinho lojista. O que eles não veem é que não é uma correção que estamos tratando aqui, mas uma liquidação; ou melhor, um complexo de inferioridade nascido de uma impotente falta de compreensão.

A forma-Partido e a forma-Estado são elementos-chave nos primeiros textos marxistas; e são duas etapas fundamentais no desenvolvimento épico que o Manifesto Comunista descreve.

Há duas etapas revolucionárias referidas no capítulo “Proletários e Comunistas”. A primeira etapa, já abordada anteriormente no primeiro capítulo “Burgueses e Proletários”, é a organização do proletariado num partido político. Isto segue outra afirmação muito famosa: toda luta de classes é uma luta política, mas é muito mais clara, e está relacionada com nossa tese que diz: o proletariado é uma classe no sentido histórico quando começou a lutar politicamente como um partido. Na verdade, o Manifesto afirma: Esta organização dos proletários numa classe e, consequentemente, dentro dum partido político.

A segunda etapa revolucionária é a organização do proletariado numa classe dominante. Aqui surge a questão do poder e do Estado. “Já vimos, acima, que o primeiro passo da revolução dos trabalhadores é alçar o proletariado à condição de classe dominante”(4)

Talvez não precisemos ressaltar aqui que outra das teses essenciais reintegradas por Lenin, o eventual desaparecimento do Estado, também está incluída neste famoso texto inicial. A definição geral: “O poder político, em seu sentido real, é o poder organizado de uma classe para a opressão de outra.”(5) ressalta as afirmações clássicas: o poder público perderá seu caráter político, as classes e toda a dominação de classe desaparecerá, inclusive a do proletariado.

Portanto, Partido e Estado estão no coração do ponto de vista marxista. Ou se aceita ou se rejeita. Procurar a classe fora de seu Partido e de seu Estado é um desperdício de energia, e privar a classe deles significa virar as costas ao comunismo e à revolução.

Mas essa tentativa tola, que os “modernizadores” consideram uma descoberta original pós-Segunda Guerra Mundial, já havia sido feita antes do Manifesto, quando foi roteada por Marx em seu formidável panfleto polêmico contra Proudhon: A Miséria da Filosofia. Esse trabalho central destruiu a noção (que, de fato, estava muito à frente de seu tempo) de que a transformação social e a abolição da propriedade privada poderiam ser alcançadas sem a necessidade de se engajar em uma luta pelo poder político. Finalmente há a famosa frase: “Não diga que o movimento social exclui o movimento político”, o que leva à nossa tese inequívoca: por Política não entendemos uma disputa ideológica pacífica, ou pior ainda, um debate constitucional; entendemos “conflito mão a mão”, “revolução total”, e finalmente, como disse a poetisa George Sand: “O combate ou a morte”.

Proudhon rejeita a ideia de conflito político porque sua visão de como as sociedades mudam é fundamentalmente falha: não envolve a completa derrubada das relações capitalistas de produção; é orientada para a concorrência, localizada e cooperativista, e está presa dentro de uma visão burguesa de empresa e mercado. Ele poderia ter proclamado que a propriedade era roubo, mas seu sistema, permanecendo um sistema mercantil, continua sendo um sistema orientado à propriedade e burguês. A miopia de Proudhon sobre a revolução econômica é a mesma dos “socialistas de fábrica” de hoje, que duplicam de forma menos vigorosa a velha Utopia de Robert Owen; que queria libertar os trabalhadores entregando-lhes a gestão das fábricas, bem no meio da sociedade burguesa. Quer se autodenominem ordinovistas na Itália, ou barbaristas na França, no final, todos eles são, todos eles, setores do mesmo bloco Proudhoniano e merecem a mesma invectiva de Stalin: Oh, a miséria dos enriquecedores!

Proudhonismo Ressuscitado e Tenaz!

No sistema de Proudhon encontramos a troca individual, o mercado e o livre arbítrio do comprador e do vendedor exaltado acima de tudo. Afirma-se que, para eliminar a injustiça social, basta relacionar o valor de troca de cada mercadoria com o valor do trabalho nela contido. Marx mostra — e mostrará mais tarde, se colocando contra Bakunin, contra Lassalle, contra Dühring, contra Sorel e contra todos os mencionados acima — que o que está por baixo de tudo isso nada mais é do que a apologia e a preservação da economia burguesa; aliás, não há nada diferente na afirmação estalinista de que, numa sociedade socialista que a Rússia afirma ser, a lei da troca de valores equivalentes continuará a existir.

N’A Miséria da Filosofia, em algumas linhas sucintas, Marx aponta o abismo que existe entre esses subprodutos do sistema capitalista e a tremenda visão da sociedade comunista do futuro. É sua resposta à sociedade “construída” por Proudhon, onde a concorrência ilimitada e o equilíbrio entre a oferta e a demanda conseguem o milagre de garantir a todos o bem mais útil e essencial a “custo mínimo”, o eterno sonho mesquinho e burguês dos servos idiotas do capital. Marx se livra facilmente de tais sofismas e ridiculariza-os contando que “quando o tempo está bom todos saem para uma caminhada, mas os proudhonianos saem para uma caminhada para garantir o bom tempo”.

Numa sociedade futura, na qual tivesse cessado o antagonismo das classes, na qual não houvesse mais classes, o uso não seria mais determinado pelo mínimo do tempo de produção, mas o tempo de produção social que se consagraria aos diferentes objetos seria determinado pelo seu grau de utilidade social.(6)

Este trecho é uma das muitas joias que podem ser encontradas nos escritos clássicos de nossa grande escola e que provam a natureza ofensiva do lugar-comum: Marx gostava de descrever o capitalismo e suas leis, mas nunca descreveu a sociedade socialista: ele recairia… no utopismo. Uma visão compartilhada tanto por Stalin quanto por antistalinistas de segunda categoria.

Na verdade, em seu desejo de emancipar o proletariado preservando o intercâmbio mercantil, são os Proudhons e Stalins os utópicos; e a última versão de tais tentativas é a reforma da indústria russa de Khrushchev.

A troca livre e individual, na qual se baseia a metafísica de Proudhon, leva à troca entre fábricas, oficinas e empresas administradas pelos trabalhadores, e resulta na banalidade rançosa que situa o conteúdo do socialismo na conquista da fábrica pelos trabalhadores locais.

Em sua cruzada em defesa da concorrência, o velho Proudhon foi o precursor dessa superstição moderna — a “emulação produtiva”. Em sua época, os pensadores ortodoxos, inconscientes de serem menos reacionários que os de Khrushchev de hoje, costumavam dizer que o progresso advém de uma saudável ‘emulação’. Mas Proudhon identifica a emulação produtiva ‘industrial’ com a própria competição. Rivais para o mesmo objeto, como ‘a mulher para o amante’, tendem a emular um ao outro. Com uma nota de sarcasmo, Marx observa: se o objeto imediato do amante é a mulher, então o objeto imediato da rivalidade industrial deve ser o produto, e não o lucro. Mas como no mundo burguês o lucro é o nome do jogo (e isto é verdade cem anos depois) a suposta emulação produtiva acaba se transformando em competição comercial. E por baixo dos sorrisos sedutores que os americanos e moscovitas estão lançando na direção um do outro, o lucro ainda é o que ambos querem.

Junto com sua visão defeituosa da sociedade revolucionária, Proudhon é o precursor dos piores aspectos dos “socialistas de fábrica” da moda de hoje: a rejeição do Partido e do Estado porque se criam dirigentes, chefes e corretores de poder, que, devido à fraqueza da natureza humana, serão inevitavelmente transformados num grupo privilegiado; numa nova classe (ou casta?) dominante para viver às custas do proletariado.

Essas superstições sobre a “natureza humana” foram ridicularizadas por Marx há muito tempo, quando ele escreveu em uma frase curta e incisiva: “O sr. Proudhon ignora que a história inteira não é senão uma transformação contínua da natureza humana(7).

Sob essa enorme pedra tumular podem ser colocadas inúmeras multidões de idiotas antimarxistas do passado, presente e futuro.

Em apoio à nossa declaração de que nem mesmo as menores restrições podem ser colocadas ao uso pleno e irrestrito das armas do Partido e do Estado na revolução operária, e para nos livrarmos desses escrúpulos hipócritas, devemos acrescentar que, para lidar com as inevitáveis manifestações individuais da patologia psicológica que proletários e comunistas herdaram, não da natureza humana, mas da sociedade capitalista, com sua horrível ideologia e sua mitologia individualista da “dignidade da pessoa humana”, existe apenas uma organização capaz de proporcionar um remédio eficaz e radical. Essa organização é especificamente o partido político comunista, tanto durante a luta revolucionária, quanto depois dela, quando assume sua função mais definitiva — a de empunhar a ditadura do proletariado. Outros tipos de organizações que pensam poder substituí-la devem ser rejeitados não só por sua impotência revolucionária, mas porque são cem vezes mais suscetíveis à influência degenerativa da burguesia e da pequena burguesia. E, no entanto, a crítica a essas organizações, a que são submetidas de todos os lados desde tempos imemoriais, deve adotar uma abordagem histórica e não “filosófica”. E, ainda assim, é de primordial importância fazer uma análise marxista das justificativas apresentadas pelos proponentes desses esquemas, e demonstrar claramente que são influenciadas por uma ideologia essencialmente de visão burguesa, ou mesmo menos que burguesa, como as visões propostas pelos pseudointelectuais que tão perigosamente infestam as margens do movimento operário.

A forma-partido, que em nível organizacional coloca o não-proletariado no mesmo nível que o proletário, é a única forma de organização que pode permitir que os não-proletários cheguem à posição teórica e histórica que se baseia nos interesses revolucionários da classe trabalhadora; finalmente, embora só depois de muita angústia e tormento, esses renegados de outras classes servirão como minas revolucionárias e não como armadilhas burguesas em nossas próprias fileiras.

A superioridade do partido reside precisamente na superação da doença do trabalhismo e do operaísmo(8). Você se une ao partido como consequência de sua própria posição na luta de mãos dadas entre forças históricas por uma forma social revolucionária; e sua posição como membro e militante do partido não é apenas uma cópia servil de sua posição “em relação ao mecanismo produtivo”, ou seja, aquele mecanismo que é criado pela sociedade burguesa e relacionado “fisiologicamente” a essa sociedade e à sua classe dominante.

II. As organizações econômicas do proletariado: substitutos pálidos do partido revolucionário

Uma História de Sistemas Impotentes

Em nossa luta contra a traição estalinista, sempre consideramos suas distorções da teoria econômica como mil vezes mais graves do que o “abuso de poder” que tanto escandalizou trotskistas e khruschevianos, ou os famosos “crimes” de que o filisteísmo mundial continua a falar. Para combater essas distorções, recorremos sempre à tese clássica de Marx contra Proudhon, que aparece no primeiro livro d’O capital, capítulo XXIV, nota: “Admira-nos, por isso, a astúcia de Proudhon, que quer abolir a propriedade capitalista contrapondo-lhe — as leis eternas de propriedade da produção de mercadorias!”(9).

Toda crítica e todo programa “melhorado” lançado por todos os vários grupos chamados anti-stalinistas se baseia na ridícula noção de que precisa haver uma desintoxicação — esterilização no que diz respeito à revolução — do Partido e do Estado, formas (de acordo com a tese extremamente preguiçosa da existência “tirana e seus companheiros”) que foram supostamente abusados por Stalin por causa de sua insaciável libido pelo poder. É importante mostrar que todos aqueles que alimentam essa preocupação fanática (e que provavelmente querem ser líderes e almejam sucesso pessoal) sucumbiram, em matéria econômica e social, à mesma ilusão reacionária de Proudhon: estão cegos para o fato de que a oposição histórica entre comunismo e capitalismo significa que comunismo e socialismo são opostos ao mercantilismo.

Antes de mais nada, precisamos considerar as evidências históricas. Isso nos mostra que toda interpretação que tentou repelir os monstros do partido e do Estado político, ao propor novos tipos de organização para mobilizar a classe proletária em sua luta contra o capital e estabelecer uma sociedade pós-capitalista, foi um fracasso miserável.

Na terceira parte deste relatório, trataremos da economia, ou melhor, demonstraremos que o objetivo, o programa, em que todos esses movimentos “não-partidários” e “não-Estatais” se fixaram, não é uma sociedade socialista e comunista, mas sim um pequeno modelo econômico burguês, que fez com que todos eles acabassem atolados no jogo dos partidos e dos Estados do capitalismo moderno.

Em primeiro lugar, deve-se reconhecer que todas essas tentativas baseadas em fórmulas ou “receitas” de curas milagrosas organizacionais são claramente não marxistas. Elas ecoam as banalidades obsoletas dos golpistas políticos de cinquenta anos atrás, que costumavam tratar os eventos da luta histórica como se tivessem sido selecionados de uma revista de moda. Segundo esses fofoqueiros, o clube político foi a força motriz da Revolução Francesa (girondinos, jacobinos), depois vieram os partidos eleitorais, seguidos pelas organizações locais defendidas pelos anarquistas. Depois (digamos, por volta de 1900) o que está na moda se transforma em sindicatos de trabalhadores, com uma tendência inerente de substituir todas as outras formas de organização e usar seu potencial revolucionário para se instalar em oposição ao Partido e ao Estado (Georges Sorel). Um refrão muito vulgar. Hoje (1957), outra forma “autossuficiente” — o conselho de fábrica — é dada com orgulho sob vários disfarces pelos “tribunistas” holandeses, os gramscistas italianos, os titoístas iugoslavos, os chamados trotskistas, e uma série de outros grupos paródia(10) “de esquerda”.

Apenas uma das teses de Marx, Engels e Lenin é suficiente para enterrar toda essa conversa vazia: “A revolução não é uma questão de formas de organização”.

A verdadeira questão é o choque de forças históricas e o novo programa social que vai substituir o capitalismo quando seu longo ciclo terminar. Em vez de descobrir o objetivo cientificamente, na determinação de fatores do passado e do presente, foi o velho utopismo pré-marxista que o inventou. A nova utopia pós-marxista elimina o objetivo e o substitui pela organização freneticamente ativa (ou, nas palavras de Bernstein, principal revisionista socialdemocrata: “O objetivo não é nada: o movimento é tudo”).

Vamos registrar brevemente as “propostas” desses estilistas, que querem desfilar o proletariado cansado da batalha pela passarela política com um novo conjunto de correntes que o empurram para o capital.

A Superstição da ‘Comuna’ Local

As doutrinas anarquistas são a expressão da seguinte tese: o poder centralizado é mau; e assumem que toda a questão da libertação da classe oprimida pode ser resolvida livrando-se dela. Mas, para o anarquista, a classe é apenas um conceito acessório. Ele deseja libertar o indivíduo, a pessoa, e assim se conforma com o programa da revolução liberal e burguesa. Ele só reprova esta última por ter instalado uma nova forma de poder, deixando de ver que esta é apenas a consequência necessária do fato de não ter tido como conteúdo e motivo-forçar a libertação da pessoa ou do cidadão, mas a conquista do domínio de uma nova classe social sobre os meios de produção. Anarquismo, liberalismo — e até mesmo estalinismo, na sua roupagem ocidentalizada — nada mais é do que liberalismo burguês revolucionário clássico mais algo mais (que chamam de autonomia local, Estado administrativo e entrada da classe trabalhadora nos poderes constitucionais). Quando tais pecadilhos pequeno-burgueses são enxertados nele, o liberalismo burguês, que em seu tempo era um assunto real e sério, torna-se apenas uma ilusão com a qual se castra a revolução operária.

O marxismo, por outro lado, é a negação dialética do liberalismo capitalista. Não quer manter parte do capitalismo para melhorá-lo aqui e ali, mas esmagá-lo com as instituições de classe que produziu no nível local, e principalmente centralizado. Tal tarefa não pode ser alcançada com o incentivo à autonomia e à independência totais, mas apenas com a formação de um poder centralizado e destrutivo, cujas formas essenciais e específicas são o Partido e o Estado, e apenas essas formas.

A ideia de libertar o indivíduo, a pessoa, e torná-lo autônomo, resume-se à fórmula ridícula do indivíduo subjetivo refratário, que fecha os olhos para a sociedade e sua estrutura opressiva porque está convencido de que não pode mudá-la, ou então sonha em um dia plantar uma bomba em algum lugar; o resultado final é o existencialismo contemporâneo, incapaz de afetar minimamente a sociedade.

Essa demanda pequeno-burguesa, que surge da raiva do pequeno produtor autônomo expropriado pelo grande capital e, portanto, da defesa da propriedade (que Stirner e outros individualistas consideram uma “extensão do indivíduo” inviolável) se adaptou ao grande avanço histórico das massas trabalhadoras, e ao longo do tempo reconheceu algumas formas de organização. Na época da crise da 1ª Internacional (depois de 1870) houve uma cisão entre os marxistas e os anarquistas sobre a recusa destes últimos em reconhecer organizações econômicas, ou mesmo greves. Engels estabeleceu que sindicatos e greves econômicas não eram suficientes para resolver a questão da revolução, mas que o partido revolucionário deveria apoiá-los, na medida em que o seu valor (como já afirmado no Manifesto Comunista) reside na extensão da organização proletária para uma forma única e centralizada, que é política.

Nesta fase, os libertários proporiam uma “comuna” local, revolucionária e mal definida, às vezes descrita como uma força que luta contra o poder constituído e afirmar sua autonomia rompendo todos os vínculos com o Estado central, e às vezes como uma forma de administrar uma nova economia. Essa ideia não era nova, mas remetia às primeiras formas capitalistas que surgiram no final da Idade Média: as comunas autônomas, que existiam na Itália e no Flandres alemão, onde uma jovem burguesia lutava contra o Império. Como sempre, acontecimentos então revolucionários, em termos de desenvolvimento econômico, tornaram-se hoje uma repetição vazia, disfarçada de falso extremismo.

Para os anarquistas, durante mais de cinquenta anos de comemorações, o modelo para este órgão local foi a Comuna de Paris de 1871. Na análise de Marx e Lênin, muito mais poderosa e irrevogável, a comuna foi primeiro grande exemplo histórico da Ditadura do Proletariado, de um Estado proletário centralizado, embora aqui apenas territorial.

O Estado capitalista francês, tal como encarnado na 3ª República de Thiers, moveu-se para esmagar Paris proletária e expulsá-la de sua capital, tendo preparado seu assalto por trás das linhas do exército prussiano. Após a desesperada resistência e o horrível massacre, Marx pôde escrever que a partir daquele dia todos os exércitos nacionais burgueses estavam na disputa contra o proletariado.

Não se tratava de reduzir o conflito histórico de um nível nacional para o comunitário (basta pensar na inanidade de uma cidade de província pobre e indefesa!), mas de estendê-lo a uma escala internacional. Na época da 2ª Internacional surgiu mesmo uma nova versão do socialismo (impressionando a mente inquieta do jovem Mussolini) chamada “comunalismo”, que visava criar células da futura sociedade conquistando administrações municipais: não — infelizmente — com dinamite como os anarquistas, mas ganhando eleições locais. Desde então, as forças implacáveis do desenvolvimento econômico, bem conhecidas dos marxistas, garantiram que cada estrutura local se enredasse em uma teia cada vez mais inextricável de laços econômicos, administrativos e políticos com o governo central: basta pensar no ridículo de cada pequena câmara municipal rebelde, criando suas próprias estações de rádio e TV para irritar o odiado Estado central!

A ideia de organizações que formam confederações de trabalhadores em cada cidade e cada cidade se declara politicamente independente está agora defunta. As ilusões burguesas sobre o autogoverno ainda sobrevivem, no entanto, e continuarão a confundir as mentes e a paralisar as mãos dos militantes da classe trabalhadora por muito tempo.

As outras formas de organização “imediata” dos trabalhadores teriam uma história mais longa e complexa, com tendência a se envolverem com os sindicatos artesanais e profissionais, sindicatos industriais e com os conselhos de fábrica. Na medida em que tais formas são propostas como alternativas ao partido político revolucionário, a história desses movimentos e as doutrinas mais ou menos confusas baseadas neles, coincidem com a história do oportunismo durante a 2ª e 3ª Internacionais. Como já abordamos o assunto em várias outras ocasiões, faremos aqui apenas um breve resumo, mas observemos que as massas europeias ainda desconhecem em grande parte a história de sua classe, e realmente precisarão aprender com os imensos sacrifícios que um dia foram feitos, e os preservar.

A história do localismo, do chamado comunismo anarquista e libertário, é a história do oportunismo dentro da I Internacional. Marx lutou para libertar a Internacional dessas tendências por meio de críticas teóricas e de dura luta organizacional contra Bakunin e seus intratáveis apoiadores na França, Suíça, Espanha e Itália.

Apesar de poderem aproveitar a rica experiência histórica da Revolução Russa, muitos “esquerdistas”, e declarados inimigos do estalinismo, ainda assim olham para os anarquistas em busca de apoio potencial. Precisamos, portanto, reiterar que o libertário foi a primeira das doenças a infectar o movimento proletário, e foi o precursor de todos os oportunismos posteriores (inclusive o estalinismo) na medida em que falsificou política e história para atrair os pequenos e médios estratos burgueses da sociedade para o lado proletário — apesar do fato de que essas classes sempre arruinaram tudo, e foram a fonte de todo tipo de calamidade e erro. O que resultou dessa abordagem não foi a liderança proletária sobre as “massas populares”, mas a destruição de quaisquer características proletárias do movimento geral, e uma escravidão reforçada do proletariado ao capital.

Este perigo tem sido denunciado pelo marxismo desde os seus primórdios, e é extremamente triste ouvir as pessoas dizerem que ele pode ser tratado com mais eficácia agora do que na época de Marx, porque há mais fatos disponíveis, enquanto eles entretanto interpretam mal o que já era claro há mais de um século. A versão “popular” da revolução da classe trabalhadora costumava horrorizar Engels, e ele a condenava com frequência. No prefácio d’As Lutas de Classe na França: Após as derrotas de 1849, de modo algum compartilhávamos as ilusões da democracia vulgar (…). Estes contavam com uma vitória para breve, uma vitória de uma vez por todas do “povo” contra os “opressores”; nós contávamos com uma luta longa, após a eliminação dos “opressores”, entre os elementos antagônicos que se escondem justamente dentro desse “povo”(11).

No que diz respeito à doutrina marxista, a partir dessa época ela passou a estar equipada com os conceitos e princípios básicos necessários para criticar todas as variantes populares do oportunismo de hoje; incluindo os modelos colocados à frente por grupos como os Barbaristas que em sua longa prosa dedicadas aos eventos húngaros apresentaram um movimento “popular” como um movimento de classe.

Aqueles que substituem “povo” por classe, dando prioridade à classe proletária acima do partido, acreditam que estão tornando-a uma suprema homenagem, enquanto na realidade apagam sua classe, afogando-a em confusão “popular”, e sacrificando-a no altar da contrarrevolução.

O Mito do Sindicato Revolucionário

No final do século XIX, os partidos políticos da classe proletária na Europa tinham se tornado grandes e poderosas organizações. Seu modelo era o alemão “Sozialdemokratie”, que depois de uma longa luta tinha forçado o Estado burguês kaiserista a revogar as leis especiais antissocialistas de Bismarck, e tinha também aumentado constantemente sua participação nos votos e nas cadeiras parlamentares a cada eleição geral sucessiva. Este partido deveria ser o depositário da tradição de Marx e Engels, e a este fato se deve o prestígio que desfrutava dentro da nova 2ª Internacional, quando foi criada em 1889.

Mas nessa festa uma nova corrente, o Revisionismo, vinha crescendo com Eduard Bernstein como seu principal teórico. Esta tendência afirmava abertamente que a sociedade burguesa, durante o período internacional e social relativamente pacífico que se seguiu à Guerra Franco-Prussiana, tinha desenvolvido novos aspectos que apontavam para “novos caminhos para o socialismo”, diferentes dos de Marx.

Não é de admirar para os jovens militantes de hoje que foi esta mesma frase que foi usada para lançar o 20º Congresso do PCUS em 1956: exatamente as mesmas palavras, mas com todos pensando que eram novinhos em folha e quentes na imprensa! O revisionista italiano Bonomi, expulso do partido em 1912 e mais tarde nomeado Secretário de Estado da Guerra no gabinete de Giolitti, acabaria atirando não nos fascistas, mas nos proletários que estavam lutando contra eles. Mais tarde, ele se tornaria até um dos líderes da República antifascista. Antes de sua expulsão, ele escreveu um livro que ostentava o título: Os Novos Caminhos para o Socialismo. Giolitti concluiu com a bela frase que os socialistas haviam relegado Marx ao sótão a partir desse mesmo livro. O movimento de esquerda comunista internacional de hoje deriva diretamente dos grupos da fração esquerda que, todos esses anos atrás, responderam a essa provocação, nomeando sua revista “O Sótão”.

Os revisionistas sustentavam que, dados os novos desenvolvimentos do capitalismo europeu e mundial, nem as lutas insurrecionais, nem o uso da violência armada e a conquista revolucionária do poder, eram necessários para a passagem ao socialismo e à emancipação da classe trabalhadora; portanto, excluíam totalmente a tese central de Marx: a Ditadura do Proletariado.

Ao invés da “visão catastrófica” de Marx, haveria atividade jurídica e eleitoral e mudanças legislativas no Parlamento. Chegou mesmo ao estágio em que os parlamentares socialistas participavam dos gabinetes burgueses (possibilismo, millerandismo) para aprovar leis favoráveis à classe trabalhadora, apesar de todos os congressos internacionais até a 1ª Guerra Mundial terem condenado consistentemente tais táticas, e apesar da expulsão dos partidos de colaboracionistas como Bonomi (embora não os Bernsteins, nem os Turatis na Itália).

Essa degeneração política e teórica dos partidos socialistas, sobre a qual não entraremos em detalhes aqui, levou a uma onda de desconfiança em relação à forma organizacional do partido entre grandes setores do proletariado, e proporcionou um ambiente favorável a uma série de críticos anarquistas e antimarxistas. Para começar, apenas algumas correntes de menor importância combateram os revisionistas com base na estrita conformidade com a doutrina original de Marx (radicais na Alemanha, revolucionários intransigentes na Itália; e grupos em outros lugares ditos “duros”, “estritos”, “ortodoxos” etc.).

Essas correntes, que na Rússia foram representadas pelo bolchevismo de Plekhanov e Lênin (embora durante a guerra Plekhanov tenha se mostrado tão ruim quanto o alemão Kautsky) nunca cessaram por um instante de defender a forma do Partido (embora apenas Lênin defendesse claramente a forma do Estado, ou seja, a forma da Ditadura). Mas há cerca de dez anos, mais ou menos, havia outra luta atual contra o revisionismo socialdemocrata, a saber, o sindicalismo revolucionário. Georges Sorel foi seu principal teórico e líder, mesmo que antecedentes certamente existissem. Era um movimento particularmente forte nos países latinos: para começar, eles lutaram dentro dos partidos socialistas, mas depois se separaram, ambos por causa das vicissitudes da luta e para ser coerente com uma doutrina que rejeitava a necessidade do partido como um órgão de classe revolucionário.

A principal forma de organização proletária dos sindicalistas era o sindicato econômico, cuja principal tarefa deveria ser não apenas liderar a luta de classes para defender os interesses imediatos da classe trabalhadora, mas também preparar-se, sem estar sujeito a nenhum partido político, para liderar a guerra revolucionária final contra o sistema capitalista.

Sorelianos e Marxismo

Uma análise completa das origens e da evolução desta doutrina, tanto como a encontramos na obra de Sorel, como nos diversos grupos que em vários países a subscreveram, nos afastaria demasiado do nosso caminho; neste ponto, portanto, vamos apenas discutir o seu balanço histórico e a sua visão muito questionável de uma futura sociedade não capitalista.

Sorel e muitos de seus seguidores, também na Itália, começaram por declarar que eram os verdadeiros sucessores de Marx na luta contra o revisionismo legalista em sua roupagem pacifista e evolucionista. Eventualmente foram forçados a admitir que sua tendência representava um novo revisionismo; de esquerda em vez de direita na aparência, mas na verdade emitindo da mesma fonte, e contendo os mesmos perigos.

A parte da doutrina de Marx que Sorel considerou ter retido foi o uso da violência e a luta da classe proletária contra as instituições e a autoridade burguesas, especialmente o Estado. Assim, ele parecia estar em estrita conformidade com a crítica histórica marxista, segundo a qual o Estado contemporâneo que surgiu da revolução burguesa, em suas formas democrática e parlamentar, continua sendo uma organização perfeitamente adaptada para a defesa da classe dominante, cujo poder não pode ser retirado por meios legais. Os Sorelianos defenderam o uso da ação ilegal, da violência e da greve geral revolucionária, e elevaram esta última à categoria do ideal supremo, justamente numa época em que na maioria dos partidos socialistas tais slogans estavam sendo ferozmente repudiados.

O auge da teoria soreliana da “ação direta” — ou seja, sem intermediários legalmente eleitos entre proletários e a burguesia — é a greve geral. Mas, apesar de ser concebida como ocorrendo simultaneamente em todos os ofícios, em todas as cidades de um determinado país, ou mesmo em escala internacional, na realidade a insurreição dos sindicalistas ainda é restrita, na medida em que assume a forma de ações individuais, ou no máximo, ações de grupos isolados; em nenhum dos casos atinge o nível de ação de classe. Isso se deveu ao horror de Sorel por uma organização política revolucionária que necessariamente assumiu uma forma militar e, após a vitória, uma forma de Estado (Estado proletário, Ditadura); e como os sorelianos não concordam com Partido, Estado e Ditadura, acabariam trilhando o mesmo caminho que Bakunin tinha trinta anos antes. A greve geral nacional, assumindo-a como vitoriosa, supostamente coincidiria (no mesmo dia?) com uma expropriação geral (a “greve expropriatória”), mas tal visão da passagem de uma forma social para outra é tão nebulosa e fraca quanto decepcionante e efêmera.

Na Itália em 1920 — num clima de entusiasmo geral por Lenin, pelo partido, por tomar o poder e pela “ditadura expropriadora” — este slogan superficialmente extremo da “greve expropriadora” foi adotado tanto por maximalistas quanto por ordinovistas; esta foi uma das muitas ocasiões em que tivemos que defender as posições marxistas de forma enérgica e impiedosa, mesmo correndo o risco de sermos acusados de estarmos sendo empecilhos ao movimento.

Sorel e seus seguidores estão na verdade muito longe do determinismo marxista, e a interação que ocorre entre as esferas econômica e política é uma letra morta para eles. Por serem individualistas e voluntaristas, eles veem a revolução como um ato de força que só pode ocorrer após um ato de consciência impossível. Como Lênin demonstrou em O que deve ser feito? Eles viram o marxismo de cabeça para baixo. Tratam a consciência e a vontade como se viesse do interior, da “pessoa”, e assim, em um movimento hábil, varrem o Estado burguês, as divisões de classe, a psicologia de classe. Como não conseguem entender a alternativa inevitável — a ditadura capitalista ou a ditadura comunista -, evadem o dilema da única maneira que é historicamente possível: restabelecendo a primeira. E se isso é feito de forma consciente ou não, pode ser uma questão candente para eles, mas, francamente, não estamos tão interessados nisso.

Não estamos realmente interessados em seguir a evolução lógica do pensamento de Georges Sorel depois disso: idealismo, espiritualismo, e depois um retorno ao seio da Igreja Católica.

O Teste da Primeira Guerra Mundial

Como já foi dito acima, certamente não podemos fornecer aqui uma análise profunda da crise do socialismo que ocorreu em agosto de 1914, na deflagração da Primeira Guerra Mundial. Basta ver se a crise afetou apenas os partidos políticos, ou os sindicatos, e também os ideólogos sindicalistas. E estes últimos, embora nunca pensando em si mesmos como partido, eram precisamente isso; de fato, seus membros eram oriundos principalmente da classe pequeno-burguesa, apesar de seu apego supersticioso a noções de pureza da classe trabalhadora. Naquela época, de maneira tipicamente anarquista, os sindicalistas consistiam em uma variedade de “grupos” mal definidos que se declaravam não políticos, não eleitorais, não parlamentares, não partidários, etc., etc. E temos muitos exemplos contemporâneos para mostrar que esse espetáculo exclusivo em relação aos partidos políticos e à política revolucionária não impede que esses “grupistas” livres e leves se unam a partidos burgueses e oportunistas, ou mesmo lutem em campanhas eleitorais por traidores de classe imundos. A autonomia impera!

Não há dúvida — na verdade seria a base para a restauração do marxismo revolucionário na época de Lenin — de que os maiores partidos socialistas europeus haviam exibido uma bancarrota sem vergonha. Não precisamos lembrar que Lênin, incapaz de aceitar as notícias, esmagaria os jornais enquanto passeava furiosamente pelo seu pequeno quarto suíço como um animal selvagem enjaulado, inatingível até mesmo para sua incomparável esposa por três semanas inteiras.

Não nos retraímos nem uma única palavra que já dissemos, ou ação que tomamos, contra esses traidores do socialismo, que votaram pelos créditos de guerra, e que entraram nos gabinetes da “union sacrée”. Mas na Itália, facilitada por um atraso de nove meses (a Itália entrou na guerra em 24 de maio de 1915), a luta para impedir que os líderes partidários abandonassem as posições proletárias durou até poucos dias antes de ser emitida a ordem de mobilização. A liderança do partido socialista se manteve firme e, embora a corrente reformista predominasse no grupo parlamentar e se opusesse à convocação de uma greve geral, prometeu, no entanto, votar contra o governo e seus créditos de guerra e o fez, e por unanimidade. De fato, foram os dirigentes da Confederação Geral do Trabalho (CGL — amplamente o equivalente italiano do TUC) que assumiram a posição mais derrotista, e foram eles que tivemos que desmascarar em sua sabotagem da proposta de greve: embora tenham dito que temiam o fracasso da greve, na verdade temiam seu sucesso, e puramente por razões burguesas patrióticas.

Em todos os países foram os grandes sindicatos que arrastaram os partidos políticos por esse caminho de vergonha incomensurável. Assim foi na França, na Alemanha e na Áustria. Na Inglaterra, o Partido Trabalhista, aquele perene urso e campeão da contrarrevolução ao qual os sindicatos se filiaram, entrou fisicamente nas fileiras dos belicistas, enquanto o pequeno partido socialista britânico assumiu uma firme posição de oposição.

Os críticos sorelianos do parlamentarismo haviam denunciado, com razão, as manobras vergonhosas dos parlamentares operários, mas não perceberam que esses senhores, enquanto perambulavam pelos lobbies burgueses do governo, estavam sendo solicitados à força por organizadores sindicais para obter concessões materiais para seus associados. Lênin advertiu que a traição e a covardia dos líderes revolucionários não era uma causa do oportunismo, que era o mais virulento durante a crise de 1914, mas uma manifestação inseparável de oportunismo, e na verdade esta tinha sido a opinião de Marx e Engels desde suas cartas sobre a contrarrevolução alemã em 1850. O oportunismo é um fato social, um compromisso profundamente arraigado entre as classes, e seria pura loucura ignorá-lo. O capitalismo, mais tarde, ofereceria um pacto de colaboração mútua a certos setores de trabalhadores industriais que estavam isentos do serviço militar. O Sindicato dos Trabalhadores Ferroviários na Itália se oporia ao repúdio da CGL à greve geral (e, ao fazê-lo, colocaria em jogo a isenção do serviço militar de seus integrantes) e só o poderia fazer por causa de sua força política e dos estreitos laços que essa combativa organização operária havia forjado com a ala radical do partido marxista.

Durante a crise de 1914 e durante muitas outras análogos, embora menos sensacionais, os sindicatos (nos referimos às suas lideranças, das quais os trabalhadores só podem se livrar após anos de luta, dizemos o mesmo sobre os militantes partidários e seus líderes e eleitores socialistas e seus parlamentares) foram verdadeiros grilhões nos partidos de classe. Os sorelianos, obviamente não tendo visto esse impressionante conjunto de evidências, propuseram remediar o revisionismo boicotando os partidos e buscando refúgio nos sindicatos de trabalhadores.

A situação era pior na França e na Itália, onde havia até confederações sindicais anarcossindicalistas. Na França eram maioria e liderados por Jouhaux, sorelianos até a medula, e inimigos jurados do partido e do grupo dos parlamentares socialistas. Mas, quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, Jouhaux subscreveu a política jingoísta dos deputados socialistas e arrastou sua organização e seus membros de massa atrás dele, salvo algumas exceções, insignificantes. Mas ele não era o único. A ele se juntaria o famoso estudioso anarquista Elisée Reclus, e o ainda mais famoso (idiota total) Gustave Hervé, líder dos antimilitares europeus, editor do La Guerre Sociale, e organizador do “citoyen Browning” (cidadão revólver), que antes se sentira obrigado a enfiar o drapeau tricolore dans le fumier, a bandeira francesa, no esterco. Hervé mudaria o título de sua revista para “Victoire”, iniciaria uma campanha incrivelmente venenosa contra os “boches”, e finalmente acabaria se juntando ao próprio Le Fumier; o melhor lugar para ele.

Nada melhor surgiu das fileiras sorelianas do que do Partido Socialista Francês (S.F.I.O.) que, mesmo assim, não valia nada no que diz respeito ao marxismo. Os sindicalistas “anti-partidários” acabaram como os messieurs Guesde e Cachin; que vieram comprar o jornal de Mussolini com os Francos do Estado francês (Cachin mais tarde se tornou comunista, e depois apoiador de Hitler, e depois um antifascista convicto).

Na Itália, a Confederação do Trabalho foi confrontada com pelo Sindicato Sindicalista Italiano. Embora profundamente imbuída de um reformismo pouco profundo, a primeira nunca havia aderido à política de guerra. Mas o sindicato anarcossindicalista havia se dividido em duas correntes, uma contra a guerra, a outra com De Ambris e Corridoni abertamente intervencionistas.

O partido socialista se posicionou muito melhor: quando Mussolini saiu em outubro de 1914, na reunião de expulsão da seção de Milão, não se levantou uma só voz em seu nome.

A Organização da Fábrica

Em primeiro lugar, a ideia de que o partido político proletário deve ser sacrificado para deslocar o centro de gravidade revolucionário para os sindicatos envolve um abandono completo dos princípios básicos da teoria marxista. É, portanto, uma visão que só recebe apoio daqueles que abjuraram o credo filosófico e econômico do marxismo (como fizeram os sorelianos, eventualmente, e os bakunianos desde o início); é uma visão, aliás, que a história tem demonstrado ser totalmente infundada. O argumento de que os partidos políticos permitem a adesão de elementos de classe não trabalhadora, e que esses elementos acabam nos cargos executivos, enquanto isso nunca ocorre (simplesmente não é verdade) nos sindicatos, contraria as evidências históricas mais retumbantes.

A estreiteza da perspectiva sindicalista, quando comparada à política, reside no fato de ser restrita dentro de um comércio, e não de uma classe, contexto, e é afetada por uma separação rígida e medieval do artesanato. A recente transformação do comércio, das profissões e dos sindicatos em sindicatos industriais também não deve ser considerada um passo significativo. Nesta última forma, por exemplo, um operário carpinteiro que trabalha em uma fábrica de automóveis tem que se unir ao sindicato dos metalúrgicos e não ao sindicato dos carpinteiros. Mas ambas as formas são igualmente caracterizadas pelo fato de que, entre as fileiras, o contato entre os membros do sindicato é restrito ao tratamento dos problemas de apenas um setor restrito da produção e não do da sociedade como um todo. Fazer uma síntese dos vários interesses dos grupos proletários locais, profissionais e industriais, só pode ser realizado por um aparato que inclua funcionários das diversas organizações.

Os diferentes interesses seccionais da classe proletária só podem, portanto, ser superados na organização partidária, o que evita dividir seus membros de acordo com o ofício ou profissão.

Não muito depois da Primeira Guerra Mundial, com os grandes sindicatos e confederações claramente corresponsáveis com os parlamentares e partidos socialistas pela traição à causa socialista, havia uma tendência generalizada de superestimar uma nova forma de organização imediatista que havia surgido entre o proletariado industrial: o conselho de fábrica.

Os teorizadores deste sistema sustentaram que ele expressava, melhor do que qualquer outro, a função histórica da classe trabalhadora moderna. A defesa dos interesses dos trabalhadores passaria das mãos do ofício e ser confiada ao conselho da fábrica local, sendo este último ligado a outros conselhos através de um “sistema de conselhos”, operando a nível local, regional e nacional, bem como dentro dos diferentes sectores da indústria. Houve, porém, uma nova demanda que surgiu: o controle, e eventualmente a gestão, da produção. Os conselhos de fábrica exigiam uma palavra não só na fixação de salários, horas e tudo mais que tivesse a ver com as relações gestão-trabalho, mas também uma palavra nas operações técnico-econômicas decididas até então pela direção, ou seja, cotas de produção, aquisição de matéria-prima e descarte dos produtos. Todo um conjunto de “conquistas” dessa natureza levaria à gestão total pelos trabalhadores, ou seja, à efetiva eliminação e expropriação dos empregadores.

Pelo menos na Itália, essa miragem sedutora foi imediatamente descrita pelos marxistas revolucionários como extremamente enganosa. Era uma visão que ignorava a questão do poder centralizado, na medida em que o Estado burguês deveria coexistir (um exemplo precoce de convivência entre lobos e cordeiros!) com um grau avançado de controle dos trabalhadores; ou mesmo com uma rede de gestão dos trabalhadores espalhada por uma série de preocupações industriais.

Tudo isso não foi nada além de um novo revisionismo, uma versão pior do reformismo. Esse esquema hipotético, na medida em que envolvia uma rede de operações administradas localmente, era ainda pior que o dos revisionistas clássicos, que ao menos aceitavam a necessidade de uma produção socialmente planejada, ainda que a confiassem a um Estado político que deveria ser conquistado pela classe trabalhadora por meios pacíficos.

De uma perspectiva doutrinária é fácil estabelecer que tal sistema é tão antimarxista quanto o sindicalismo soreliano. De maneira muito semelhante vemos esses dois personagens suspeitos — partido de classe e Estado de classe — totalmente banidos do palco político; pelo menos os revisionistas clássicos se limitaram apenas a abrir a sabotagem da violência de classe e da ditadura de classe! Em essência, porém, são a revolução e o socialismo que são eliminados em ambos os casos.

Essa desconfiança banal das formas do Partido e do Estado continuou a ganhar terreno nas décadas seguintes, e o “conteúdo do socialismo” veio a ser confundido com esses dois postulados: o controle da produção pelos trabalhadores e a gestão da produção pelos trabalhadores. E tudo isso foi supostamente o “novo marxismo”.

Marx já disse o que era “o conteúdo do socialismo”? Não. Marx nunca respondeu a uma pergunta tão metafísica. O conteúdo de um recipiente pode tão bem ser água quanto vinho, ou mesmo um líquido bastante mais desagradável. Como marxistas, é apropriado perguntar: qual é o processo histórico que leva ao socialismo? Que relações existirão entre os indivíduos “sob o socialismo”, ou seja, dentro de uma sociedade que não é mais capitalista?

A tais perguntas seria um absurdo responder: controle da produção, gestão da fábrica, ou como é tão frequentemente dito: autonomia da classe trabalhadora.

Há mais de um século, temos definido o processo histórico que conduz da sociedade capitalista plenamente industrializada ao Socialismo da seguinte forma: formação da classe proletária, organização do proletariado em partido político de classe, organização do proletariado em classe dominante. O controle e a gestão da produção só podem começar depois de chegar a esta última etapa. Isso não ocorrerá em fábricas individuais administradas por conselhos de funcionários, mas na sociedade como um todo, administrada pelo Estado de classe com o partido de classe no seu comando.

Se a ridícula busca por “conteúdo” é aplicada a uma sociedade plenamente socialista, temos ainda mais motivos para dizer que as fórmulas “controle dos trabalhadores” e “gestão dos trabalhadores” são carentes de qualquer conteúdo. Sob o socialismo, a sociedade não está mais dividida em produtores e não-produtores, porque a sociedade não está mais dividida em classes. O “conteúdo” (se tivermos que usar uma expressão tão insípida) não será a autonomia proletária, o controle e a gestão da produção, mas o desaparecimento da classe proletária; do sistema assalariado; da troca — mesmo em sua última forma de sobrevivência como a troca de dinheiro por mão-de-obra; e, finalmente, a empresa individual também desaparecerá. Não haverá nada para controlar e administrar, e ninguém para exigir-se autonomia de.

Aqueles que abraçaram essas ideologias demonstraram sua total incapacidade, tanto em teoria como na prática, de lutar por qualquer coisa além de uma pálida imitação da sociedade burguesa. O que eles realmente querem é sua própria autonomia em relação ao poder do partido de classe e à ditadura revolucionária. Quando Marx ainda era muito jovem, e imbuído de ideias hegelianas (ideias em que essas pessoas ainda acreditam até hoje), ele teria respondido que aqueles que buscam a autonomia proletária encontram em vez disso a autonomia burguesa, levantada como um modelo eterno de humanidade (ver Sobre a Questão Judaica).

História do ‘Socialismo de Fábrica’

Os antepassados dos conselhos de fábrica ordinovistas italianos são as velhas corporações artesanais anglo-saxônicas, que foram formadas não para lutar contra patrões burgueses, mas contra senhores feudais e guildas rivais.

Assim que a Revolução Russa passou a ser considerada não mais como uma fase inicial da revolução proletária europeia, mas como uma luta dos camponeses para “confiscar a terra”, esta distorção miserável daria origem ao paralelo superficial de “confiscar as fábricas”. De tal forma que se acaba vagando pela via da maestra que leva à conquista do poder e à conquista da sociedade.

Em outra parte de nossa imprensa, examinamos como Lenin resolveu as questões agrárias e industriais russas, e não entraremos em detalhes aqui. Sindicalistas e anarquistas de todos os lugares retirariam seu apoio à revolução russa quando perceberam que Lênin via “o controle dos trabalhadores e camponeses” como subsidiário ao objetivo principal de obter o controle do poder central; como um slogan para invocar em empresas que o Estado russo ainda não havia conseguido expropriar. Tentativas de conseguir uma gestão autônoma das fábricas por parte de seus operadores tinham que ser reprimidas, às vezes pela força, a fim de evitar danos econômicos inúteis; danos que eram antissocialistas, na medida em que afetavam negativamente a direção militar e política da guerra civil.

A confusão entre o Estado dos conselhos de trabalhadores, com os conselhos funcionando como órgãos políticos e territoriais, e o fictício Estado dos conselhos de fábrica ordinovistas, com cada conselho se administrando de forma independente, foi rapidamente dissipada. Sobre este assunto basta ler as teses do 2º Congresso da Internacional Comunista sobre Sindicatos e Conselhos de Fábrica, que definem as atribuições de tais órgãos antes e depois da revolução. A solução marxista para o problema é a penetração desses organismos pelo partido revolucionário, e sua subordinação (e não a autonomia!) ao Estado revolucionário.

Vamos agora fazer uma breve referência à experiência italiana. Em 1920, aconteceu o famoso episódio das ocupações da fábrica. Os trabalhadores, abertamente insatisfeitos com a atitude covarde das grandes federações sindicais, e forçados à ação pela situação econômica e pelas exigências injuriosas impostas pelos industriais após a euforia inicial do pós-guerra, se barricaram dentro das fábricas, se puseram a organizar sua defesa e expulsaram a direção. Em alguns lugares eles tentaram manter as fábricas em funcionamento e até mesmo se desfazer dos produtos que haviam fabricado através da venda regular.

Este movimento poderia ter continuado para alcançar grandes coisas neste momento crucial se o proletariado italiano tivesse tido um partido revolucionário forte e resoluto. Ao invés disso, após o congresso unitário de Bolonha de 1919 e a sensacional vitória eleitoral com 150 deputados socialistas eleitos ao parlamento, o Partido Socialista atravessava uma profunda crise com o falso extremismo dos “maximalistas” de Serrati. Era uma crise que só seria resolvida em janeiro de 1921, quando a corrente comunista se separou para formar um novo partido em Livorno.

No PSI (Partido Socialista Italiano) da época, o procedimento era sempre encaminhar as decisões para vários comitês híbridos. Estes incluiriam representantes da direção do partido (juntamente com algumas de suas organizações periféricas, contestadas pelas diversas correntes), deputados socialistas e os líderes da Confederação do Trabalho. Em vão, a esquerda declarou que só o partido estava autorizado a lidar com problemas relacionados com a luta política da classe trabalhadora. Os deputados socialistas e os líderes sindicais deveriam estar vinculados às suas instruções, uma vez que eram membros do partido. Era um caso de necessidade de ação em escala nacional, ação que era o mais político que se podia ter.

Além disso, como uma verdadeira orgia de falsas posições extremistas varreu o país, tivemos provas de quão prejudicial foi para o partido a falta de uma sólida plataforma doutrinária. O grande movimento de ocupação de fábricas da época levou à noção equivocada de que o sistema soviético, ou conselho de trabalhadores, como estabelecido na Rússia, poderia ser imediatamente estendido à Itália; de fato, até mesmo os adversários declarados à conquista do poder falaram em proclamá-la. Mas Lênin e os congressos mundiais haviam tomado uma posição muito clara sobre o assunto, e afirmaram que os sovietes não são órgãos que podem coexistir com o Estado tradicional. Pelo contrário, eles surgem quando há uma luta aberta pelo poder, quando sua função é substituir os órgãos executivo e legislativo de um Estado burguês à beira do colapso. Mas tudo isso seria esquecido e, em meio a uma confusão geral e a uma aliança absurda entre pacifistas e revolucionários, o movimento entraria em impotência.

O líder burguês Giolitti era muito mais lúcido, porém. Apesar da Lei lhe permitir o envio de tropas para expulsar os trabalhadores que ocupavam as plantas industriais, e apesar de ser incentivado pelas forças da direita e do fascismo nascente, ele propositalmente se absteve de emitir tais ordens. Os trabalhadores e suas organizações, ocupando fábricas que tinham chegado a um impasse virtual, não pareciam estar prestes a sair das fábricas com as armas na mão, atacar as forças burguesas e ocupar o quartel-general do Estado e da Polícia; só a fome seria suficiente para minar sua posição insustentável. Com o Giolitti quase não precisando disparar um único tiro, o movimento desmoronou por sua própria vontade. Após alguns incidentes isolados, os gerentes e chefes burgueses logo voltaram ao comando das fábricas e as dirigiam exatamente da mesma forma que antes. A tempestade havia diminuído e o poder e privilégio burguês havia escapado relativamente incólume.

Toda a história da Itália do pós-guerra mostra claramente que a luta proletária, mesmo em condições favoráveis, está condenada ao fracasso, a menos que seja liderada por um partido revolucionário capaz de resolver a questão do poder de forma radical; fato igualmente corroborado pela história do fascismo.

Foi a falência final desse sistema de ideias que rejeita a revolução como meio de obter o controle político da sociedade; que rejeita lançar o ataque ao Estado burguês e estabelecer a Ditadura do Proletariado; que deseja substituir essas medidas pela pequena ilusão de que os trabalhadores irão conquistar e controlar as fábricas, e supostamente se organizar em conselhos de fábrica que abarquem toda a força de trabalho, sem tomar em conta posições políticas ou posições partidárias.

A corrente ordinovista italiana ainda não havia chegado ao ponto de declarar desnecessário o partido político, pois concordava amplamente com a tática da Terceira Internacional de estabelecer contatos com outros partidos proletários, mesmo reformistas e oportunistas, pois apoiava a ideia de uma frente de classe composta por trabalhadores braçais, industriais e a pequena burguesia. Mas os eventos futuros, e o triunfo do oportunismo dentro da Itália e da Internacional Comunista, mostrariam que a doutrina dos conselhos de fábrica autossuficientes (com suas próprias pequenas revoluções autocontidas), era um ponto de partida muito perigoso; como também era a ilusão de que a vitória comunista estava assegurada tão logo as empresas individuais passassem das mãos da direção para as de seus funcionários. Na verdade, o comunismo envolve a reorganização de toda a vida humana, e o velho modelo produtivo — ao qual as redes espontâneas de organizações sindicais e de fábricas surgiram — precisa ser denunciado, e depois totalmente destruído de cima para baixo.

Um Retorno Fútil às Fórmulas Vazias

A grande tragédia russa tem sido acompanhada em cada etapa de sua involução por tentativas de dar vida a novas formas de organização proletária. E isto apesar de o partido político e a ditadura do Proletariado terem sido considerados fatores centrais pelos grandes pioneiros da Revolução de outubro; centrais para seu imenso esforço organizacional que os levou à vanguarda do avanço proletário, anticapitalista, que ameaçou o capitalismo no final da Primeira Guerra Mundial.

Nenhuma contribuição útil para um renascimento teórico e prático do movimento de classes surgirá de uma desconfiança ansiosa sobre as formas de organização do Partido e do Estado. Estas são formas absolutamente indispensáveis para que as relações de dominação de classe possam ser anuladas de uma vez por todas. A objeção infantil a essas formas resume-se à ideia de que o homem está condenado por sua própria natureza a recorrer ao exercício do poder, seja para defender a causa das forças dentro da sociedade (como parte de um sistema “hierárquico” autorizado a protegê-la), seja para defender os interesses dos indivíduos, seja simplesmente para satisfazer um desejo insaciável de poder por parte daqueles que são investidos com poder dentro do partido e do Estado.

O marxismo demonstra a inexistência de um destino tão ridículo; além disso, afirma que as ações dos indivíduos dependem de forças desenvolvidas por interesses gerais, mais amplos, e isto é tanto quando os indivíduos reagem como moléculas únicas da massa agindo em conjunto com outras, quanto — e acima de tudo — quando são reunidos em grupos, em momentos cruciais da luta histórica, pela dinâmica geral da sociedade.

Ou lemos a história como marxistas, ou recaímos em devaneios auto gratificantes escolásticos que explicam grandes acontecimentos como as manobras monárquicas sobre reivindicações hereditárias e a transmissão da coroa aos herdeiros, ou como as façanhas de bucaneiros afoitosos, incitados a realizar grandes façanhas na busca da glória pessoal e da imortalidade póstumo!

Para nós, e para Marx, não é possível para o único indivíduo, tomando a previsão consciente como ponto de partida, sair e ‘moldar’ a sociedade e a História em conformidade com a sua vontade motivadora. E isso não só para o pobre diabo de uma molécula que se agita no magma social, mas ainda mais para os reis e rainhas, para os investidos com alto cargo e honras, para aqueles com dezenas de títulos e iniciais depois de seus nomes. São, de fato, particularmente essas pessoas que não sabem o que querem, não conseguem o que pensavam, e a quem, se me permitem a nobre expressão, o determinismo histórico reserva o seu maior pontapé de saída. Na verdade, se você aceitar nossa doutrina, os líderes são mais marionetes da história do que qualquer outra pessoa.

Quando vistas no contexto de uma sucessão de formas produtivas, cada uma substituindo a anterior, ver-se-á que todas as revoluções passam por uma etapa particularmente dinâmica, na qual os combatentes, que neste momento aparecem como expressão de forças socialmente determinadas empurrando-os para um bem maior, irão, como regra geral, suportar qualquer número de sacrifícios e privações: haverá aqueles, tanto nas fileiras como nos papéis mais elevados, que desistirão de suas vidas e de sua “fome de poder”, enquanto obedecem às forças ainda não decifradas que acompanham o nascimento de cada nova forma social.

Na fase final de cada forma, esse dinamismo social evapora devido ao fato de que uma nova forma social, oposta, está surgindo dentro da antiga. Neste ponto, surge uma defesa conservadora da forma tradicional, que tende a se manifestar como uma subscrição dos egoísmos pessoais, do ventre individual e da corrupção aberta; subornadores, pretorianos, cortesãos feudais, clérigos debochados, especuladores sombrios e contadores corruptos do regime burguês de hoje são alguns exemplos.

Mas, embora os bandidos e as empregadas do capitalismo possam estar atolados em uma lama social de cinismo e arrogância existencial, o trabalho de defender o capitalismo e evitar seu colapso continua como antes. As redes do Estado organizado e dos partidos políticos estão fortemente comprometidas com essa tarefa e, em momentos históricos importantes, demonstraram que são bastante capazes de se soldar numa força unificada, centralizada e contrarrevolucionária (e, se você pode ver além de toda a hipocrisia intelectual falsa, isso é claramente também o caso da Grã-Bretanha contemporânea, da América e da Rússia, e não apenas da Alemanha e da Itália fascistas). E como sabem que a fonte do nosso poder é o conhecimento que temos da “estratificação geológica” do subsolo histórico, tentam até mesmo roubar-nos isso também!

Nós, de todas as pessoas, devemos realmente ser tão indiferentes a ponto de desonrar o poder e a forma que essa nossa energia imparável terá de assumir, a saber: o partido revolucionário e o estado de ferro da Ditadura? Dentro dessas estruturas organizacionais, indivíduos particulares ocuparão certamente posições-chave, é claro, mas seu dever, longe de se envolverem em manobras pessoais e intrigas e conspirações secretas, será o de cumprir rigorosamente as tarefas que o processo histórico estabeleceu para esses órgãos de revolucionar irreversivelmente as formas econômicas e sociais.

A afirmação de certas organizações, diferentes do partido, de que podem garantir contra a degeneração de líderes, ou outros nomeados oficiais, equivale a um repúdio a todo o nosso edifício doutrinário.

De fato, a rede de “líderes” e “hierarquias” nestas organizações é a mesma do partido e, em geral, nem sequer é composta apenas por trabalhadores. E mesmo que fossem, a História nos ensinou a infeliz verdade de que o ex-trabalhador que deixa seu trabalho para trabalhar na burocracia sindical é geralmente mais propenso a trair sua classe do que alguém oriundo das classes não-letarianas. Exemplos? Poderíamos fornecer milhares deles.

Toda essa prosa é geralmente apresentado como um movimento de aproximação, um estabelecimento de vínculos mais estreitos, de laços mais estreitos, com as “massas”. Mas quem são as massas? São a classe trabalhadora quando privada de energia histórica, ou seja, sem partido para colocá-la no caminho histórico revolucionário; uma classe, portanto, atada e resignada ao seu estado de sujeição e atada à forma como acontece de ser distribuída pelo organismo social burguês. E, em certas situações históricas, as massas podem incluir também as camadas semiproletárias que transbordaram da “classe” trabalhadora.

Nossa abordagem a esta questão, em total conformidade com os ditames da escola marxista, é mostrar que em tais situações ocorre um duplo momento histórico e, fazendo a devida distinção entre os dois aspectos, podemos sintetizar tudo o que já dissemos anteriormente.

No período anterior à revolução burguesa propriamente dita, quando as formas feudais ainda precisam ser derrubadas, como por exemplo na Rússia em 1917, elementos entre esses “povos” ainda não proletários enfrentam o poder do Estado e disputam a liderança da sociedade. Em certos momentos decisivos, esses estratos tendem a se colocar ao lado da classe proletária, agregando não apenas uma vantagem numérica, mas também contribuindo com um fator potencialmente revolucionário que pode ser utilizado durante a fase de transição; na condição, isto é, de que o partido da ditadura operária tenha uma visão histórica clara, uma organização poderosa e autônoma, e tenha garantido sua hegemonia ao manter laços estreitos com a classe proletária em todo o mundo. A situação muda quando a pressão revolucionária antifeudal diminui: o “quadro” popular que encerrava o proletariado revolucionário e classista se torna agora não apenas reacionário, mas ainda mais reacionário do que a própria burguesia. Agora, quaisquer passos para manter vínculos com ele levam ao oportunismo, à destruição do poder revolucionário e à solidariedade com o conservadorismo capitalista. Hoje, em todo o “mundo branco”, esse princípio ainda é válido.

Os atuais oportunistas russos, em sua louca corrida para o repúdio total de tudo o que cheira a revolução, ainda não abandonaram — ainda — a forma de partido, mas ainda procuram justificar cada etapa sucessiva de sua involução com um Apelo às Massas, e de vez em quando para proclamar sua solidariedade com elas.

Nenhuma evidência a posteriori ou histórica é necessária para mostrar a pura inconsistência deste slogan cego, insidioso e irritante, e o papel essencial que ele tem desempenhado na liquidação do partido revolucionário.

III. A distorção pequeno-burguesa das características da sociedade comunista nas concepções de organização proletária “sindicalista” e em “empreendimentos socialistas”

O partido político é insubstituível

A visão de que as organizações formadas por trabalhadores para conduzir suas lutas devem ser completamente estruturadas em torno da rede de produção da economia industrial burguesa — uma visão levada ao seu mais extremo no sistema de Gramsci e ressuscitada hoje por vários grupos anti-stalinistas — se provou completamente ineficiente na prática e invariavelmente caminha de mãos dadas com um fracasso em identificar as diferenças fundamentais entre a estrutura econômica de hoje e a de amanhã: entre a sociedade capitalista atual e a sociedade comunista que tomará o lugar dessa após a vitória do proletariado. Qualquer teoria assim ficará aquém da crítica marxista do sistema econômico capitalista atual.

Os anti-stalinistas, stalinistas e os pós-stalinistas do 20º Congresso cometem o mesmo erro. Todos compartilham a ilusão de uma sociedade em que os trabalhadores derrotaram seus empregador num nível local, no seu ramo, ou em sua empresa, mas permaneceram presos na rede de uma economia de mercado sobrevivente. Eles não parecem perceber que essa economia de mercado é a mesma coisa que o capitalismo.

As características de uma sociedade não-capitalista e não-mercantil que surgem de uma análise genuinamente marxista, decorrente de uma previsão crítica e científica que é livre de qualquer traço de utopia, só são completamente compreendidas e formadas em um programa pelo partido político da classe trabalhadora. Precisamente porque o partido não adere servilmente ao sistema de organização que o mundo capitalista impõe na classe produtora. Qualquer hesitação sobre a necessidade de as formas partido e Estado leva a uma perda total das conquistas programáticas do movimento marxista sobre a completa antítese das formas capitalista e comunista; conquistas completamente dominadas pelo partido da escola marxista. Se considerarmos alguns postulados marxistas chave, como a abolição da divisão técnica e social do trabalho, significando a derrubada de barreiras entre empreendimentos separados; a abolição da contradição entre campo e cidade; e a síntese social entre ciência e atividade humana prática, poderemos ver imediatamente que qualquer plano “concreto” para organizar a ação proletária que se empenha em espelhar a estrutura do mundo econômico do presente está condenado a permanecer preso nas limitações características das formas capitalistas de hoje, e a ser contrarrevolucionário sem sequer percebê-lo.

A maneira de superar essa lacuna — que envolverá muitas batalhas pelo caminho — é através da formação de organizações que evitam se moldar naquelas do mundo burguês. Estas organizações são o partido e o Estado proletários, nos quais a sociedade de amanhã cristaliza antes de sua existência num sentido histórico. Nestas organizações que definimos como “imediatistas”, que copiam e carregam as marcas fisiológicas da sociedade atual, tudo que podem fazer é cristalizar e perpetuar esta sociedade.

A forma “comuna”

É um fato estranho que os libertários, que por volta de 1870 se engajaram em suas polêmicas contra Marx na 1ª Internacional, e a cuja visão limitada já nos referimos, ainda são amplamente considerados como estando “à esquerda” de Marx. Na verdade, apesar de sua oposição verbal ao militarismo e ao patriotismo, nunca compreenderam a importância de ir além do nível puramente nacional ao criticar a economia burguesa e estudar como ela se espalha na escala global.

Marx descreveu a formação do mercado internacional como a tarefa última e suprema da burguesia moderna; após isso, só restava lutar para se estabelecer a ditadura proletária nos países que eram mais avançados e, após a destruição dos Estados nacionais que surgiu junto com o capitalismo, uma expansão em uma escala cada vez maior da força da classe proletária internacional. A proposta anarquista, quando não defendia de fato autonomia ilimitada para todos os indivíduos, independentemente de sua classe, era de destruir o Estado capitalista para substitui-lo com pequenas unidades sociais, as famosas comunidades de produtores, que após o colapso do governo central seriam, supostamente, completamente autônomas, mesmo com relação uma à outra.

A forma um tanto abstrata da sociedade futura baseada em “comunas” locais não parece tão diferente da sociedade burguesa de hoje, e seus procedimentos econômicos também não. Aqueles que se empenharam em descrever esta sociedade futura, como Bakunin e Kropotkin, acharam que era o bastante simplesmente ligá-la a um conjunto de ideologias filosóficas, ao invés de uma análise de leis historicamente verificadas da produção social. Quando se dedicaram à crítica de Marx, foi somente da maneira menor e mais seletiva uma vez que não foram capazes de deduzir as conclusões implicadas pela teoria: ficaram impressionados com o conceito de mais-valor (que é um teorema econômico), mas usaram-no simplesmente para suportar sua condenação moral da exploração, que viam como tendo origem de seres humanos exercendo o “poder” uns sobre os outros. Incapazes de alcançar o nível teórico da dialética, eles foram impedidos de compreender, por exemplo, que na transição da apropriação do produto físico do trabalho do servo pelo proprietário à produção de mais-valor no sistema capitalista, ocorreu uma “libertação” real de formas mais esmagadoras de servidão e opressão; pois, mesmo que a divisão em classes, e a existência de um poder estatal, ainda tenham permanecido uma necessidade histórica e beneficiado a classe burguesa, nesse período isto também beneficiou todo o resto da sociedade.

Uma das principais causas da maior produtividade do trabalho como um todo e da maior média de remuneração pela mesma quantidade de trabalho foi a criação de um mercado nacional e a divisão do trabalho produtivo em ramos diferentes da indústria, com a última podendo trocar seus produtos completos e quase completos numa zona de circulação livre de mercadorias e cada vez mais estimulada a estender esta zona para além das fronteiras do Estado.

Este aumento (comprovando completamente a visão marxista) na riqueza da burguesia e no poder de cada um de seus Estados e junto com isto a produção de mais-valor não significa que um aumento imediato na renda bruta extraída à custa das classes inferiores. Até certo ponto, ainda é compatível com uma redução das horas de trabalho e com uma melhoria geral na satisfação das necessidades. Portanto, a ideia de desmontar o capitalismo ao separar o Estado nacional em pequenas ilhas de poder, características da Idade Média pré-burguesa, não faz o menor sentido. Forçar a economia a retornar a estas fronteiras limitadas seria claramente um passo atrás, mesmo que o único objetivo fosse evitar que alguns poucos não trabalhadores preguiçosos se apropriassem de quaisquer recursos de cada uma das pequenas comunas.

Neste sistema de comunas igualitárias, é certo que o custo da oferta diária de alimentos, calculado em termos das horas de trabalho de todos os membros adultos da comunidade (deixando de lado a teimosa questão daqueles que não quisessem trabalhar e quem os obrigaria a fazê-lo) seria maior do que se a produção fosse organizada no nível da nação; peguemos a França dos dias de hoje, por exemplo, onde há um tráfego econômico contínuo e regular entre as diferentes comunas, e determinado artigo manufaturado é obtido de lugares onde é produzido com a menor das dificuldades; mesmo que as “cem famílias” ainda devorem tudo de graça.

De fato, estas várias comunas não teriam opção senão trocar entre si na base do livre intercâmbio. E mesmo que admitíssemos que uma “consciência universal” seria o suficiente para regular pacificamente estas relações entre os diferentes núcleos econômicos estabelecidos localmente, ainda não haveria nada que evitasse que uma comuna extraísse mais-valor de outra devido a uma equivalência flutuante entre uma mercadoria e outra.

Este sistema imaginário de pequenas comunas econômicas não é nada mais que uma caricatura filosófica daquele antigo sonho pequeno burguês de autogoverno. Pode se ver facilmente que este sistema é tão mercantil quanto aquele que existiu na Rússia de Stalin ou na Rússia pós-Stalin cada vez mais antiproletária, e está igualmente claro que envolve um sistema totalmente burguês de equivalentes monetários (sem emissão estatal?!) que está condenado a sobrecarregar o trabalhador produtivo bem mais do que um sistema de indústria em larga escala nacional ou imperialista.

A forma “sindical”

Elaboramos, até agora, a parte político-histórica nossa crítica da concepção sindicalista da luta proletária. Usando a prova amarga da experiência passada, destacamos a insuficiência doutrinal e a inépcia da fórmula: “Sindicatos contra o Estado burguês”, uma fórmula avançada com a intenção de se livrar não só do órgão da luta política, o partido, mas também do órgão da direção social — tão indispensável quanto historicamente transitório — representado pelo Estado revolucionário que Marx imaginou.

Segundo o pensamento de Sorel e seus seguidores, o sindicato é suficiente, por si só, tanto para liderar a luta e organizar e administrar a economia proletária que não é mais capitalista. Nesta parte, demonstraremos que tal posição não faz sentido com base de uma visão a-histórica e distorcida dos aspectos característicos da forma de produção oposta, que seguirá o capitalismo. Tal visão distorcida, que nunca será realizada e nem pode sê-lo, sobrevive apenas na imaginação semi-burguesa; nutrida por certo ódio contra os grandes chefes, não consegue ver a profundidade da antítese que existe na sociedade atual, e aquela que surgirá da vitória proletária.

O oportunismo sempre causou muita confusão no tópico de qual forma a sociedade futura assumirá: só precisamos pensar naqueles partidos políticos que, embora se considerem marxistas, chegavam ao ponto de declarar que a formulação de um programa tão historicamente final — que chamavam de “máximo”, para não contrastá-lo com um programa imediato e “mínimo”, mas sim para ridicularizar da necessidade de obtê-lo — era completamente supérflua. Lutamos por muito tempo para provar que as características decisivas de tal programa nos são conhecidas desde que a corrente marxista surgiu, e precisaremos continuar lutando para prová-lo. Mas a visão do imaginário socialista que supostamente resultará da vitória das organizações sindicais sobre os chefes capitalistas e da destruição e colapso supostamente subsequentes, do Estado político burguês é muito indefinida e vaga que a nossa.

Confunde-se em grande parte da história das várias correntes socialistas, mesmo em textos importantes, as formas cooperativas simples, que são filhas do utopismo pré-marxista, com a forma econômica socialista. Mas examinaremos depois, quando descrevermos a corrente dos Conselhos de Fábrica, esta perspectiva da sociedade baseada numa rede de produtores cooperativos. Quanto à perspectiva sindicalista soreliana da sociedade subsequente ao colapso do capitalismo, a primeira pergunta que devemos nos fazer é se a unidade fundamental desta sociedade será o pequeno sindicato local, ou o sindicato nacional, potencialmente internacional.

Não devemos nos esquecer que, no âmbito das organizações de defesa econômica que a classe trabalhadora formou no final do século XIX e início do século XX, havia uma instituição, principalmente nos países latinos, que sobressairia em termos de dinamismo e energia. Na Itália, era conhecida como a Camera del Lavoro, e na França, menos adequadamente, como a Bourse du Travail. Enquanto que a denominação italiana sem dúvidas fede ao parlamentarismo burguês, a francesa é pior porque expressa a ideia de um mercado de trabalho, um lugar no qual os trabalhadores estão à venda pela melhor oferta dos empregadores; dá, portanto, a impressão de estar ainda mais afastada da luta para eliminar a ideologia capitalista.

Na medida em que uniões e ligas sindicais individuais, e mesmo em suas federações nacionais, por serem muito menos unitárias e centralizadas, sofrem as limitações de interesses comerciais particulares, que se preocupam demandas restritas e a curto-prazo, as câmaras do trabalho da cidade e do país, ao desenvolverem solidariedade entre trabalhadores de diferentes ramos e locais de trabalho, estavam mais inclinadas a considerar problemas de classe num nível mais profundo. Apesar de a natureza local destas organizações significar que elas não se livrariam completamente destes defeitos que examinamos anteriormente (em nossa crítica das formas localistas e “comunalistas”), os problemas políticos reais foram discutidos aqui, não no sentido eleitoral banal, mas nos termos da atividade revolucionária.

O vigor das formas intersindicais

Poderíamos citar vários episódios, que ocorreram no Biênio Vermelho pós-guerra, no qual o órgão específico e altamente ativo das câmaras do trabalho, o Conselho Geral das Ligas, convocou os trabalhadores italianos a movimentos massa e revoltas, frequentemente ignorando os oficiais sindicais ao emitir seus pedidos no nome de grupos socialistas e comunistas.

Na França, durante a primeira parte deste século, a Sûreté estava apavorada diante da onda de movimentos que partiam da Bourses de Travail. Sem sabê-lo, as Bourses eram órgãos políticos de luta pelo poder, mas os “bonzos” reformistas e às vezes até mesmo anarquistas do sindicato tirariam vantagem de seu isolamento local e impediriam que o movimento se espalhasse até o nível nacional (ou, como no caso da greve interrompida chamada em defesa da Rússia vermelha, que estava sendo atacada pelos exércitos burgueses da Entente, internacional).

Em setembro de 1920, durante a ocupação das fábricas, comerciantes burgueses apavorados abriram suas portas permitindo que seus bens de consumo fossem levados à Câmara do Trabalho, que então os distribuía aos desempregados: isso envolvia as Câmaras indo muito além de uma limitada preocupação sindicalista com os salários; nestas circunstâncias, o guardião supremo da ordem estabelecida, o primeiro ministro Giolitti, manteve a calma e foi inteligente o bastante para não nos indiciar por furto, como o cumprimento rigoroso da lei exigiria.

Na subsequente fase fascista, não foram os esquadrões de Mussolini, que estavam sofrendo uma série de derrotas sanguinolentas na época, mas as forças armadas regulares do Estado que foram empregadas para atacar os trabalhadores (em Empoli, Prato, Sarzana, Parma e Ancona, foi usada a artilharia, e em Bari, até mesmo a marinha), e só após assaltos repetidos derrotaram os trabalhadores armados que resistiam nas Câmaras do Trabalho profundamente fortalecidas.

A greve de agosto de 1922 fracassou porque esta defesa não foi coordenada num nível nacional, o que só o recém-formado Partido Comunista tentaria: mais uma vez os líderes sindicais e o Partido Socialista controlado por maximalista-reformistas conseguiram frear o movimento nas cidades principais, onde o movimento fascista de nada valeu, tendo obtido controle apenas em Florença e Bologna; em Milão, Roma, Genoa, Turim, Veneza e Palermo os trabalhadores seriam submetidos, pacífica e legalmente, à sua liderança paralisante. Portanto, é a partir de agosto de 1922, e não outubro de 1922, a data da ridícula “Marcha sobre Roma”, que podemos realmente datar a vitória do capitalismo italiano sobre a revolução proletária, morta pela infame praga oportunista — mas chega da Itália.

Na rede de organização sindical, portanto, podemos ver como cada ramo é totalmente impotente tanto no nível local como no nacional, e como a liderança nacional é controlada em quase todos os lugares por partidos oportunistas, enquanto que os únicos centros reais de atividade são os velhos centros interprofissionais baseados na região e na cidade.

Durante a fase atual do oportunismo stalinista, mesmo este último recurso precioso foi destruído. E uma vez que as Câmaras do Trabalho, como espaços principais para reuniões frenéticas dos trabalhadores mais combativos, não existem mais (tradicionalmente, milhares de trabalhadores iam a todas as reuniões, tornando fácil que as decisões atingissem toda a área na manhã seguinte); os otimistas oficiais sindicais de hoje as substituíram com corredores cheios de fileiras de balcões burocráticos, onde cada trabalhador isolado e intimidado vai perguntar o que devem a ele, ou aceitar ordens de cima sobre alguma ação idiota e insípida, para que depois ele possa espalhar as ordens e lamentar a última greve castrada.

A função econômica

Suponhamos que a classe trabalhadora tivesse derrotado a ordem estabelecida somente com a ação sindical e que uma nova atividade econômica e produtiva tivesse começado a se desenvolver após a eliminação do controle burguês. No caso de uma cidade com uma organização sindical forte e com um centro único, tal hipótese talvez seja a menos distante da possibilidade, mas ainda ficamos com as objeções feitas contra a forma “comunal”, e também quanto à possibilidade de se obter uma vitória definitiva em uma cidade ou região específica sem também tê-la conquistado nas áreas vizinhas do mesmo país.

Para se compreender, portanto, o que os sorelianos entendem por administração sindical da economia “futura” (sem repetir o que já dissemos sobre a ilusão de um sistema de comunas administradas localmente), temos que imaginar um sistema de administração econômica que, em qualquer país (com nossas costumeiras ressalvas sobre as perspectivas negativas de uma vitória sobre o capitalismo limitada a um país) atribui responsabilidade pelos diferentes ramos da economia aos órgãos principais dos vários sindicatos nacionais.

Para esclarecer nosso ponto, imaginemos que a organização da produção de pão e de todos os outros produtos à base de trigo seja confiada ao “Sindicato dos Padeiros”, com arranjos análogos para todos os outros ramos e indústrias. Em outras palavras, temos de imaginar que todos os produtos de um determinado ramo foram colocados à disposição de grandes organizações semelhantes a trustes nacionais. Uma vez que todos os gerentes capitalistas teriam sido há muito removidos, estas organizações precisariam tomar decisões sobre como utilizar o produto completo (em nosso exemplo: pão, massas, etc.) de modo a receber, de outras organizações paralelas, não só o que seus membros exigem para seu consumo individual, mas também novas matérias primas, instrumentos de trabalho, etc. Tal economia é uma economia de troca, e continua a sê-lo independentemente de as trocas ocorrerem nos níveis “superiores” ou “inferiores” da organização. No primeiro caso, a troca ocorre no ápice dos vários setores de produção, cada um distribuindo os diversos produtos exigidos para a produção e consumo até sua estrutura hierárquica. Aqui o sistema permanece, em seus níveis superiores, mercantil, isto é, exige alguma lei de equivalência para igualar o valor dos estoques de um sindicato com o outro; e podemos supor facilmente que estes sindicatos seriam bastante numerosos e que cada um deles precisaria negociar separadamente com todos os outros. Não vamos nem perguntar quem vai estabelecer este sistema de valores equivalentes nem o que garantiria a “atmosfera social” na qual aconteceria toda esta independência e “igualdade” fantásticas dos vários sindicatos de produtores. Mas sejamos tão “liberais” a ponto de pensarmos ser possível que os diversos valores equivalentes poderiam ser determinados pacificamente por meio de um equilíbrio atingido espontaneamente. Um sistema de medidas de tal complexidade não poderia operar sem o antigo expediente de um equivalente universal, em outras palavras, o dinheiro, a medida lógica de toda troca.

Não é menos fácil concluir que o sistema “superior” eventualmente atingira o “inferior”, já que seria impossível restringir o manuseio de dinheiro em tal sociedade apenas àquelas pessoas as quais foram confiadas com a organização das trocas entre um truste de produção e outro (e aqui a palavra sindicato é completamente apropriada); inevitavelmente, este direito se estenderia a todos os membros do truste, a todos os trabalhadores do truste, que seriam assim empoderados para “comprar” o que quisessem após receberam sua cota de dinheiro do sindicato de seu ramo específico: em outras palavras, seus salários, do mesmo modo que hoje, a única suposta diferença sendo que ele “seria integral” (como em Dühring, Lassalle, et al) pela margem de lucro dos patrões.

A ilusão burguesa e liberal de um sistema de sindicatos existindo independentemente um do outro e livres para negociar os termos sob os quais negociam seu estoque de produtos (monopolizados) está associada à ideia de que cada produtor, tendo sido remunerado com o “fruto integral do trabalho” (um absurdo ridicularizado por Marx) seria então capaz de fazer o que quisesse com este no que se refere aos bens de consumo que adquiriu. E eis o problema: se demonstra que estas “economias de produtores livres” estão tão removidas da economia social, que Marx chamou de socialismo e comunismo, quanto o capitalismo, senão mais.

Na economia socialista, não é o indivíduo que toma as decisões sobre a produção (o que e quanto é produzido) ou sobre o consumo, mas a sociedade, a espécie humana como um todo. Aqui está o ponto essencial. A independência do produtor é apenas mais um dessas frases feitas democráticas vazias que não fazem nada. Na sociedade atual, o trabalhador assalariado, o escravo do capital, pode não ser um produtor independente, mas ele é independente enquanto consumidor, na medida em que (dentro de determinado limite quantitativo que não é determinado pela fome pura como a “lei de bronze dos salários” de Lassalle afirma, mas que aumenta até certa medida conforme a sociedade burguesa se expande) ele pode gastar seu salário no que quiser.

Na sociedade burguesa, o proletário produz o que o capitalista exige (ou, de maneira mais generalizada e científica, o que as leis gerais do modo de produção capitalista exigem, independentemente do que a monstruosidade desumana do capital exige), mas no que concerne seu próprio consumo, ainda que restrito em termos de quantidade, o proletário pode consumir o que e como quiser. Na sociedade socialista, os indivíduos não serão livres para fazer escolhas “independentes” das atividades produtivas de que participarão e do que consumirão, uma vez que ambas as esferas serão ditadas pela sociedade e nos interesses da sociedade. “Por quem?” é a inevitável pergunta idiota, à qual respondemos sem hesitação: na fase inicial será a ‘ditadura’ da classe proletária revolucionária, cujo único órgão capaz de atingir uma compreensão anterior das forças que estarão em jogo é o partido revolucionário; em uma segunda fase histórica, a sociedade como um todo exercerá sua vontade espontaneamente por meio de uma economia difusa, que terá abolido tanto a independência de classes e de pessoas individuais, em todos os campos da atividade humana.

Aquela velha controvérsia

Em cada passo do caminho, nossa discussão apresentou fórmulas que parecem estranhas. Consequentemente, nos sentimos obrigados a parar de vez em quando e explicar pacientemente que nossa escola claramente definida do marxismo obedece a essas regras há mais de um século. Mas também estamos interessados em explicar que não são só os stalinistas e os raquíticos semi-stalinistas atualmente no poder que nos enojam, mas também os anti-stalinistas que são como uma praga de gafanhotos que simplesmente ecoam o corrigido e “enriquecido” marxismo antiquado de seus supostos adversários, e que estão satisfeito de, ao invés de quebrar suas lanças nos violadores da “autonomia”, atribuir tais violações a constante sequência de derrotas revolucionárias.

E o que estes incansáveis inventores da mais nova fórmula inventaram agora? Em um dos periódicos do bastante eclético quadrifoglio (um federação de pequenos grupos que se reivindica comunista de esquerda), não vemos nada mais que os escritos republicados (de 1880–1890) de Francesco Saverio Merlino, o “socialista libertário”: primeiro propagador de uma receita extremamente amarga que ainda está sendo preparada hoje, numa variedade eclética de temperos, por toda uma ninhada de pequenos jornais que se empoleiraram na janela de Palmiro Togliatti para provocá-lo com seus gorjeios atrevidos; mas o que não conseguiram compreender, no que se refere a essa receita em específico, é que o bom e velho Palmiro é um mestre-cuca! Comparados a ele são só um monte de ajudantes de copa. E aqui está a receita: a salvação está em enxertar os valores do socialismo naqueles da liberdade!

Dizem-nos hoje que as estranhas ideias do velho Merlino, o corajoso salvador do marxismo e da ciência revolucionária, foram aplicadas de maneira triunfal não só na Rússia em 1905 e 1917 (!), mas nos levantes húngaros e polonês de 1956, e até mesmo durante a assim-chamada experiência iugoslava.

As fórmulas são retiradas principalmente de um artigo que escreveu sobre o Programa de Erfurt de 1891. Razoáveis como um exemplo para modernizadores, estas velhas fórmulas simplesmente ressuscitam a notória confusão — dissipada pela escola marxista nos anos após a 2ª GM — do absurdo “Estado popular livre”, que os Socialdemocratas alemães propuseram com o poderoso pilar central da ditadura proletária; não tendo conseguido levar em consideração que foi nesta mesma edição, após 1875, que Marx e Engels estavam prestes a deserdar os socialistas alemães. Voltaremos a isso depois. Enquanto isso, aqui estão alguns trechos do artigo de Merino: “O poder de dirigir, gerir e administrar a sociedade socialista não deve pertencer a um mítico “Estado Popular e dos Trabalhadores”, mas às próprias associações dos trabalhadores confederadas mutuamente”. “Devemos submeter tudo a um poder central, ou dar às associações dos trabalhadores o direito de se organizar como quiserem, de tomar posse dos instrumentos de trabalho?” “Não queremos um governo central ou administração, o que constituiria a mais exorbitante das autocracias, mas organizações de trabalhadores própria e livremente confederadas”.

Estas fórmulas nos são adequadas na medida em que podemos demonstram como elas expressam perfeitamente o pensamento de Togliatti, Khruschov e Tito e companhia, e como expressam perfeitamente o exato oposto daquilo pelo qual estamos lutando. Deixe todos os grupos anti-stalinistas associados e confederados sentarem-se a seu lado.

Para eles, seu último grito emocionado sempre é “Centralismo burocrático ou autonomia de classe?” Se essa fosse de fato a antítese, ao invés de “ditadura capitalista ou ditadura proletária” de Marx e Lenin, não hesitaríamos por optar pelo centralismo burocrático (oh, o horror dos horrores!) que, em certas conjunturas históricas pode ser um mal necessário, e que seria facilmente controlável por um partido que não barganhasse por princípios (Marx), que fosse livre de negligência organizacional e acrobacia tática, e que fosse imune à praga da autonomia e do federalismo. Quanto à “autonomia de classe”, tudo que podemos dizer é que é uma merda completa! A sociedade socialista é uma na qual as classes foram abolidas. Mesmo que concedamos que sob um regime de dominação de classe a classe dominada possa avançar a demanda por independência como uma forma de protesto, em uma sociedade sem uma classe capitalista, “independência” só pode significar uma luta entre um grupo de trabalhadores e outro, entre uma confederação e outra, entre sindicatos diferentes, entre diferentes grupos de “produtores”. No socialismo, os produtores não são mais distintos e não são uma parte separada da sociedade.

Cada associação em posse de “seus próprios” instrumentos de trabalho e produzindo “à sua própria” maneira, não constitui socialismo! Pelo contrário, substitui a luta de classes, cujo objetivo último é a ditadura, com o absurdo bellum omnium contra omnes: a guerra de todos contra todos; um devir histórico que, felizmente, se provou tão estéril quanto absurdo.

Escravos estariam numa posição de “autonomia de classe” se declarassem: “ficamos felizes de continuar escravos, mas queremos decidir qual comida servir a nossos mestres, e qual de nossas filhas eles podem levar para a cama!” Até mesmo a posição cristã era milhares de vezes mais revolucionária que essa, pois apesar de não anunciar uma sociedade sem classes, ela, no entanto, declarou: “nenhuma diferença entre escravos e homens livres”.

Todos os conceitos expressados aqui podem ser encontrados, palavra por palavra, nos escritos de Marx, como demonstraremos agora.

Palavras inesquecíveis

As correntes sindicalista e trabalhista — todas as quais preferimos chamar de “imediatistas” porque confundem dialeticamente momentos distintos da organização atual, desenvolvimento histórico e teoria revolucionária — gostariam de restringir todo o ciclo histórico da classe proletária a um simples alistamento dos trabalhadores em fábricas, profissões ou outros pequenos setores isolados, e baseiam tudo neste modelo frio e sem-vida. E aí está seu erro fundamental. O determinismo marxista, por outro lado, destrói a ficção burguesa do “indivíduo”, da “pessoa”, do “cidadão”, e revela que os atributos filosóficos desta entidade mítica não são nada mais que uma universalização e eternização das relações que beneficiam o membro individual da classe dominante moderna, a burguesia, o capitalista, os donos de terra e dinheiro, o comerciante. Tendo virado este ídolo do avesso, o marxismo o substitui com a sociedade econômica, que é “temporariamente uma sociedade nacional”.

Todos os imediatistas — isto é, aqueles que viajaram apenas um milésimo da distância que os separa do nível do pensamento comunista — querem se livrar da sociedade e colocar em seu lugar um grupo de trabalhadores. Este grupo que escolhem dos confins de uma das várias prisões que constituem a sociedade burguesa de “homens livres”, isto é, a fábrica, a profissão, o campo territorial ou jurídico. Todo seu esforço miserável consiste de dizer aos não-livres, aos não-cidadãos, aos não-indivíduos (essa é a grande ideia com a qual a revolução burguesa os inspira inconscientemente) a invejar e a imitar seus opressores: seja independente! Livre! Sejam cidadãos! Pessoas! Em suma: sejam burgueses!

Para nós, o objetivo não simplesmente pegar um dos grupos existentes do arranjo social atual e atribuir a ele funções que já existem sob o capitalismo; nosso objetivo é uma sociedade não-capitalista. Esse é o abismo que nos separa destes grupos insignificantes com suas querelas infindáveis. Frente aos resultados abortivos de suas teorias, tagarelam sobre uma nova autocracia, um centro burocrático, uma liderança opressora terem sido criadas e que, para evitar isso, essa entidade impessoal e todo-poderosa — a sociedade — terá que ser separada em diversos fragmentos “autônomos”, livre para imitar os ignóbeis (e, além disso, já obsoletos) modelos burgueses.

Diga, mas ao menos seja como Merlino. Coloque Marx junto dos autocratas, opressores e corruptores da classe proletária; e com Lenin, é claro, embora Merlino não o conhecesse.

Antonio Labriola deu razão a Merlino quando este se rebelou contra a ideia de Lassalle (um imediatista por excelência) de “abrir o caminho à solução da questão ao estabelecer cooperativas de produtores com a ajuda do Estado sob o controle democrático do povo trabalhador”. Esta sentença sinistra de fato seria incluída no Programa de Gotha (1875), e só não apareceu no Programa de Erfurt de 1891 por causa das duras intervenções de Engels.

Em textos que ficaram escondidos por 15 anos, Marx (e Engels também) destruiu completamente esta formulação ignóbil e ao fazê-lo — na Crítica do Programa de Gotha –, ofereceu a construção dialética mais clássica da sociedade futura; nessas páginas, não só esmagou com a concepção imediatista do Estado como babá da classe trabalhadora, mas com todo federalismo e particularismo, toda noção distorcida de “esferas autônomas de organização econômica”. Olhemos, então, para estes textos, complementados pelo comentário magistral de Lenin, e provemos mais uma vez.

Hoje estamos sufocados por todas estas porras de “questões de estrutura”, “problemas a serem resolvidos” e “caminhos a serem abertos”, respiremos um pouco de oxigênio vital daquelas páginas largadas na gaveta da mesa de Bebel.

O lugar da luta de classes existente é tomado por uma fraseologia de escrevinhador de jornal — ‘a questão social’, a cuja ‘solução’ se ‘conduz’. A organização socialista do trabalho total [em uma passagem anterior, Marx já pulverizara outra expressão idiota ainda muito usada hoje — “emancipação do trabalho” — enquanto ele fala da classe trabalhadora), em vez de surgir do processo revolucionário de transformação da sociedade, surge da ‘subvenção estatal’(12).

Poucas linhas depois, Marx zomba da forma de controle democrático da classe trabalhadora: “um povo trabalhador que, ao apresentar essas exigências ao Estado, expressa sua plena consciência de que não só não está no poder, como não está maduro para ele!”(13).

Mas a passagem do mesmo texto que demonstra, para nós marxistas, a forma da sociedade do amanhã é esta: “O fato de que os trabalhadores queiram criar as condições da produção coletiva em escala social e, de início, em seu próprio país, portanto, em escala nacional, significa apenas que eles trabalham para subverter as atuais condições de produção e não têm nenhuma relação com a fundação de sociedades cooperativas subvencionadas pelo Estado!”(14).

Na escala da sociedade como um todo

Esta passagem, junto com muitas outras similares, é o suficiente para estabelecer que qualquer um que desça ao “nível da sociedade”, que em dado ponto histórico anterior à conquista do poder coincide com o “nível nacional”, aos níveis federais/ sindicatos (municipais, nível de empreendimento individual, ou ainda pior), cai no imediatismo, trai o marxismo, e não tem qualquer concepção de sociedade comunista: em outras palavras, não tem nada a ver com a luta revolucionária.

Quanto à antítese ciclópica entre a “transformação revolucionária da sociedade” e a “organização socialista do trabalho”, ela poderia igualmente ser dirigida aos construtores do socialismo de Moscou, só para podermos olhá-los nos olhos e dizer que a transição ao socialismo não é algo que se terceiriza para uma empresa. Marx, que mediu suas palavras cuidadosamente (do mesmo modo que Lenin as pesou novamente), nunca teria sonhado em usar uma expressão tão grosseiramente burguesa e vulgarmente voluntarista como “construindo o socialismo”.

Não falaremos aqui da crítica de Marx ao Estado Popular Livre, que foi depois reverberada por Lenin diante de milhões de pessoas, não mais dos confins de um escritório, mas sob os céus ardentes da maior revolução da história! E como aqueles que ignoraram a lição pela segunda vez estão mais miseráveis! Quanto mais livre o Estado, mais ele esmaga a classe trabalhadora para proteger o capitalismo! Não queremos libertar o Estado, queremos acorrentá-lo e então estrangulá-lo. E com palavras como estas, o anti-estatismo dos vários Bakunin e Merlino é devolvido aonde pertence: entre as paródias patéticas do pensamento político. No lugar do anti-Estado — e este é o auge do pensamento dialético! — será colocado o novo Estado (Engels), cujo propósito não será a liberdade, mas a repressão, mas que precisará surgir apenas para finalmente fenecer de uma vez por todas, tendo atingido a abolição das classes. O Estado Popular Livre e a autonomia de classe formam um bom casal e esperamos que sejam felizes juntos! Ambos não são nada senão formas da impotência imediatista, e da imanência do pensamento burguês.

Quanto ao conceito fundamental de uma sociedade “unitária” em lugar da antítese entre capitalistas e proletários — entre produtores e consumidores também — vale traçar a evolução desta ideia como ela apareceu nos diversos, e bastante criticados, programas do partido alemão. Era o programa lassaliano (Leipzig, 1863) que continha a fórmula que Marx se sentiu obrigado a atacar: a eliminação dos antagonismos de classe, enquanto Marx diria que as classes mesmas precisavam ser eliminadas, e os meios de realizar isso era exatamente através do antagonismo que existe entre elas.

O programa dos “marxistas” (Eisenach, 1869), que Marx considerou ter sido elaborado sem levar em consideração as conquistas teóricas do movimento socialista, exigia o fim do domínio de classe e do sistema salarial, mas falava ainda do “fruto integral do trabalho” a ser dado a cada trabalhador, e de uma organização do trabalho a ser formada na base do cooperativismo (mas sem subvenção estatal).

O programa de Gotha, que foi elaborado em 1875, após uma fusão reprovada entre eisenachianos e lassaleanos, e que permaneceu inalterado apesar das duras críticas de Marx, fala sobre os meios do trabalho se tornando “patrimônio comum de toda a sociedade”. A única crítica de Marx desta frase foi de que a expressão “elevação dos meios de trabalho a patrimônio comum da sociedade” deveria ser, obviamente, “conversão a patrimônio comum”. Supomos que a correção de Marx tinha a intenção de combater o ativismo.

O programa de Erfurt, influenciado pelas sugestões de Engels, que foram amplamente aceitas após a publicação da Crítica do Programa de Gotha, é clara neste ponto:

“[T]ransformação da propriedade privada capitalista dos meios de produção (…) em propriedade social e a transformação da produção de mercadorias em produção socialista, realizada para e pela sociedade”.(15)

Podemos, portanto, tirar certas conclusões sobre a doutrina que promoveu a visão de uma “sociedade na qual a produção é gerida pelos sindicatos dos trabalhadores”: primeiramente, isso não constitui um prenúncio da ciência proletária; segundamente, nunca acontecerá na realidade — a menos que surja um buraco negro na ciência socialista e Marx, Engels, Lenin e todo o resto de nós desapareça –; e, terceiramente, não tem nada a ver com as formas socialista e comunista, nem mesmo como uma fase de transição.

É um esquema no qual a produção e a distribuição não atingem o nível social, ou sequer o “nacional”, uma vez que são os sindicatos “livremente confederados” ou “confederadamente livres” que possuem os meios e produtos do trabalho à sua disposição e que são livres para dispor deles como quiserem. E mesmo que estas organizações seccionais conseguissem se fechar em suas respectivas esferas “independentes” de produção, uma luta competitiva se seguiria inevitavelmente e levaria a confrontos físicos, especialmente dada a “ausência” de qualquer tipo de Estado.

Neste programa fictício, não só a produção não é realizada para e pela sociedade, mas por sindicatos para sindicatos e mercadorias continuam sendo produzidas, ou seja, a produção ainda é não socialista, já que cada bem de consumo transferência de um sindicato a outro é feita como uma mercadoria, e já que isso não pode ocorrer sem a existência de um equivalente monetário, ele é necessariamente transferido, como tal, a cada produtor individual. Como sempre ocorre nestas utopias de fruto integral do trabalho, o sistema do trabalho assalariado ainda sobrevive, e a acumulação de capital nas mãos dos sindicatos autônomos, e eventualmente naquelas de indivíduos privados, também sobrevive. Se nossa crítica se baseou bastante numa “redução ao absurdo”, a culpa é completamente do conteúdo pequeno-burguês dessas várias utopias!

Encerraremos esta parte doutrinária citando outra passagem da Crítica do Programa de Gotha, dirigida tanto aos “imediatistas” e aos “capitalistas de Estado” para lembrá-los que a tarefa de nosso Estado proletário ditatorial não é libertar o capital, mas reprimi-lo ao mesmo tempo em que reprime aqueles o defendem, sejam eles burgueses, pequeno-burgueses, ou até mesmo proletários (isto é, aqueles escravizados pela tradição burguesa ou lumpen-burguesa). É uma passagem que Marx escreveu para debochar da proposta “minimalista” de “um imposto único e progressivo sobre a renda” (como existe hoje na Rússia): “O imposto sobre a renda pressupõe as diferentes fontes de renda das diferentes classes sociais, LOGO PRESSUPÕE A SOCIEDADE CAPITALISTA”.

A experiência russa e Lenin

No período entre os congressos comunistas internacionais de 1920 e 1921, ocorreu um debate no 10º congresso do partido russo (3 a 16 de março de 1921) com a assim chamada “oposição operária” (cobrimos este tópico em maiores detalhes em nosso estudo sobre a Rússia). Devemos observar que a posição de oposição avançada pela esquerda italiana em 1920/21 (veja nossa publicação La Question Parlementaire dans L’Internationale Comuniste) foi bastante diferente da linha desta oposição, que foi duramente definida por Lenin como um “desvio sindicalista e anarquista em nosso partido”.

Uma das muitas falsificações da Breve História do Partido Comunista de Stalin foi colocar Trotsky junto destes “operaístas” simplesmente porque ele estava envolvido em um debate acerca das tarefas dos sindicatos. De fato, Trotsky estava completamente do lado de Lenin naquele estágio, e a proposta genuinamente marxista que fez foi de que os sindicatos deveriam estar totalmente subordinados ao Estado e ao Partido proletários (um partido que, em 1921, ele não considerava — e nem nós — degenerado).

A “oposição operária” se baseava na concepção imediatista da economia socialista e na opinião equivocada e ingênua de que o socialismo pode se estabelecer em qualquer lugar, a qualquer momento, contanto que os trabalhadores a administração da economia seja feita pelos trabalhadores. Lenin relata a “tese” principal da oposição operária como “[o] Congresso de Produtores de Toda a Rússia organiza a direção da economia nacional; os produtores estão agrupados em sindicatos industriais, que elegem o órgão central para dirigir toda a economia nacional da República”.

Pode apostar que se Nikita Khrushchov persistir com sua Sovnarkos, não demorará muito para que ele reviva esta antiga ideia, mas de uma maneira ainda pior: mas com sindicatos regionais ao invés de uniões nacionais de produtores. Ao invés de considerar a conquista e a tomada do poder sobre um território nacional como simplesmente uma plataforma para a realização de mais conquistas internacionais (uma lei fundamental do marxismo), estas pessoas, pelo contrário, fazem questão de se apressar em estabelecer nos níveis locais e regionais, persistindo em sua louca busca por autonomia quando tudo o que terão será empreendimentos capitalistas autônomos.

Embora não proponhamos realizar uma descrição detalhada da direção econômica russa neste momento (a cobrimos de maneira aprofundada em outros textos do partido), vale a pena observar que foi neste mesmo congresso, em seu clássico discurso Sobre o Imposto em Espécie, que Lenin demonstrou que o que estava em pauta não era a transição ao socialismo, mas a transição ao capitalismo de Estado ou até mesmo, para aqueles que conseguem ver as coisas de uma maneira marxista, de uma forma atomizada de produção ao capitalismo privado. Este foi um esclarecimento poderoso das questões doutrinais que removeu qualquer dúvida, enquanto que o vil oportunismo que se seguiu poria novas dúvidas.

É importante demonstrar que os argumentos que Lenin utilizou contra os proponentes de uma economia dirigida pelos produtores são exatamente os mesmos que aqueles usados por Marx e Engels, que continuamos a usar hoje contra as distorções anarquistas e sindicalistas mais recentes — que estão surgindo até mesmo entre grupos que nunca apoiaram Stalin, Togliatti ou Thorez, ou até mesmo Khrushchov (embora gostem de Tito, considerando-o como um de seus precursores!).

Os Sindicatos dos Produtores encontram o mesmo triste destino na obra de Lenin que as cooperativas de Lassalle encontram na de Marx.

“As ideias (…) são radicalmente falsas do ponto de vista teórico, constitu[em] a ruptura completa com o marxismo e o comunismo, bem como com a soma da experiência prática de todas as revoluções semiproletárias [observe!] e da atual revolução proletária”; estas são algumas das coisas que Lenin disse sobre eles, e aqui estão mais citações dos debates do X Congresso do PC da Rússia.

“Em primeiro lugar, o conceito de “produtor” engloba o proletário, o semiproletário e o pequeno produtor de mercadorias, afastando-se radicalmente do conceito fundamental da luta de classes e da exigência básica de diferençar com precisão as classes [observe novamente e compare com as blasfêmias de Stalin, do XX Congresso, dos defensores entusiasmados dos movimentos mais recentes na Hungria e na Polônia] (…) namoricá-las, como se faz nas referidas teses, é afastar-se do marxismo de um modo não menos radical”.

Esse mesmo Lenin do qual estamos falando pode ser o mesmo Lenin que, segundo stalinistas obstinados, descobriu o recurso inestimável de “mergulhar nas massas”!?

“O marxismo ensina-nos [aqui Lenin se refere a declarações dadas em congressos mundiais anteriores] (…) que só o partido político da classe operária, isto é, o Partido Comunista, está em condições de agrupar, educar e organizar a vanguarda do proletariado e de toda a massa trabalhadora, a única capaz de resistir às inevitáveis vacilações pequeno-burguesas desta massa, às inevitáveis tradições e recaídas na estreita visão gremial ou nos preconceitos gremiais entre o proletariado”.

Esta passagem enfatiza a inferioridade de todas as organizações imediatas com relação ao partido político, bem como os graves riscos que estas organizações correm devido a seu contato inevitável historicamente com as classes semiproletária e pequeno-burguesa. Lenin novamente conclui dizendo: “sem isto [a direção política do partido] a ditadura do proletariado é irrealizável”.

Neste mesmo texto, Lenin nega que o programa de 1919 do partido russo tivesse em algum momento cedido a função da administração econômica aos sindicatos. Certamente, algumas poucas frases daquele programa falavam sobre a administração de toda a economia nacional como “uma única entidade econômica”, e dos “laços indissolúveis entre a administração estatal central, a economia nacional e as grandes de trabalhadores” como um objetivo a ser alcançado, na condição de que os sindicatos “se desfaçam do espírito gremial, e abracem a maioria e eventualmente toda a população trabalhadora”.

Sindicatos e capitalismo de Estado

A questão dos sindicatos e da administração econômica estatal centralizada voltaria à pauta na Rússia, e de fato no resto do mundo, porque constitui um expediente moderno e conveniente para o capitalismo de todos os países, especialmente nos EUA.

O critério “leninista” para lidar com este problema é que os sindicatos estão muito atrasados em relação ao partido e, se deixados por sua conta, caem nas mãos das fraquezas pequeno-burguesas e na colaboração com a economia burguesa.

Na sociedade russa entre 1919 e 1921, com a industrialização em seu menor nível, os primeiros e vacilantes passos estavam sendo tomados na administração da indústria que fora recentemente arrancada das mãos do capitalismo privado. Neste estágio, estava claro que o Partido Comunista podia estabelecer uma âncora forte e confiável nos sindicatos dos trabalhadores da indústria enquanto estes não eram autônomos, mas seriamente influenciados pelo Partido mesmo e, como Trotsky afirmou em 1926, enquanto não eram considerados como partes e órgãos do Estado centralizado.

Para compreender este problema mais claramente, precisamos ter em mente que por todo este período, estamos testemunhando não a criação de uma indústria e economia socialistas, mas sim um processo de nacionalização. Indústrias, que foram tomadas dos proprietários privados e trustes sem compensação, são administradas pelo Estado num sistema econômico que ainda é formado por transações comerciais e empreendimentos individuais. Independentemente de quão socialista este governo pode ser em termos de sua fundação de classe e sua política externa, o sistema industrial desta sociedade ainda deve ser definido como capitalista de Estado, e não socialista. Não precisamos nos basear em desenvolvimentos posteriores na economia russa para definir esta economia como capitalista de Estado. O Estado perde seu conteúdo socialista-político e de classe, quando não está mais dedicado a espalhar a revolução a outros Estados burgueses; porque faz alianças de guerra com eles; porque, nos Estados burgueses, estabelece aliança com partidos burgueses e democráticos, inclusive a ponto de compartilhar poder político; porque subordina, na Rússia, os interesses dos proletários da cidade e do campo às classes pequeno-burguesa e camponesa.

Vale a pena, portanto, perguntarmo-nos que papel os sindicatos ocupam durante a fase capitalista de Estado. Se o Estado é controlado por um partido que não só não realiza as políticas da revolução proletária mundial, mas se opõe a elas, então ainda se lida com a força de trabalho no âmbito de um sistema mercantil-comercial baseado no dinheiro e em salários, e então a existência de sindicatos como órgãos organizados para a defesa das condições de trabalho (cujo adversário — cujo chefe — é exatamente o Estado empregador) é, portanto, justificada. Mas mesmo em circunstâncias como estas, dividir a administração centralizada do Estado entre os diferentes sindicatos não é uma fórmula útil. O que se exige é que os sindicatos aceitem a liderança de um partido político proletário capaz de resolver o problema da conquista do poder central. Se tal partido não existe, ou onde apenas existe com uma concha vazia transformada em instrumento nas mãos do Estado capitalista (como na Rússia), então deve ter ocorrido uma recaída de volta ao sistema de escravidão assalariada; uma situação que nunca se resolverá através dos esforços de grupos autônomos de trabalhadores buscando conquistar o controle de setores separados da produção, e através do imbecil plano de “refazer” a revolução liberal (de fato, exatamente essa manobra vazia está sendo adotada na Rússia pelo Estado de Khrushchov). Além disso, se estes setores de produção desaparecerem e se desintegrarem, cairiam não mãos do capitalismo privado ou, em todo caso, nas mãos longas e gananciosas do capital internacional.

Na situação oposta — o estágio decididamente progressivo do capitalismo de Estado, no qual o poder político central se esforça para realizar a tarefa histórica de espalhar a revolução proletária — sindicatos, a não ser que acabem como organizações derrotistas que têm de ser reprimidas, devem ser preparados para aprender do partido de classe, o autêntico partido dos assalariados industriais de todo o mundo, como obter da classe dos operários (de cuja coragem e abnegação a história forneceu inúmeros exemplos) sua contribuição de trabalho, mais-trabalho e mais-valor para a revolução, para a guerra civil, para os exércitos vermelhos de todos os países, para a munição que será usada em um conflito de classe social que passa por cima de todas as divisas e fronteiras. Mesmo em circunstâncias históricas como estas, não seria somente antieconômico e antissocial para os sindicatos reivindicar o fruto integral do trabalho, mas derrotista também com relação à terrível tarefa que história atribuiu à classe dos assalariados puros, e somente a essa classe: aquela de promover a entrega sangrenta da nova sociedade.

Esta tarefa — o desfecho de séculos e séculos de história torturada — é exatamente o oposto aos sonhos e superstições da escola “imediatista” de contadores e negociantes de segunda-mão, em que cada geração quer pôr suas mãos raquíticas nas vantagens dos que se “confederam autonomamente”.

A forma fabril/corporativa

Após nosso exame detalhado da visão imediatista de uma sociedade pós-capitalista administrada por sindicatos, todos os defeitos da forma “conselho de fábrica” podem ser claramente vistos.

A corrente da esquerda italiana soou o alarme quando os primeiros sintomas de fé neste mito ressuscitado tomaram forma: no momento dos congressos dos “representantes sindicais” da FIAT realizados em Turim e da crítica de Antonio Gramsci ao Ordine Nuovo (Nova Ordem). Tanto admoestamos como acolhemos a segunda na medida em que corajosa e resolutamente se colocava contra o oportunismo menchevique dos sindicatos italianos tradicionais e a inconsistência do Partido Socialista que, em 1919, se dizia pró-bolchevique.

Gramsci estava então no começo de sua evolução ideológica — uma evolução que nunca dissimulou, dada sua clareza –, passando de filósofo idealista e intervencionista de guerra ao marxismo antidefencista restaurado por Lenin, e deu a seu jornal um título honesto. Ele não falava de domínio político pela nova classe, ou pelo novo Estado-classe, e só aceitou lentamente os princípios marxistas acerca da ditadura do partido e da influência da visão marxista nas relações reais ocorrendo no mundo natural e humano fora dos estreitos limites da simples economia fabril. Admitiu isto abertamente no congresso do PCI de 1926, em Lyon. Sempre preferiremos aqueles que aprendem novos capítulos do marxismo àqueles que os esquecem. Em 1919, Gramsci estava vindo de uma avaliação da Revolução de Outubro que detectou nela uma inversão do determinismo; como o milagre da vontade humana viola condições econômicas adversas. Depois, ver Lenin — o milagreiro — defender o determinismo marxista na forma mais estrita, não deixou de afetá-lo: tanto o mestre como o pupilo foram fantásticos.

O sistema fabril apelou ao espírito ágil de Gramsci e ele ficou comovido com sua construção ideal, quase literária, e até mesmo artística. E estava certo de chamá-la de a Nova Ordem na medida em que abrangia a ideia do proletário fabril estabelecer, em sua fundação imediata, uma Nova Ordem, semelhante àqueles que existiam antes da revolução liberal, como os três estamentos da sociedade francesa pré-1789. Isto não é uma surpresa: todos os “imediatistas” que analisamos até agora não fizeram nada senão traduzir o pedido de uma classe ditadora que suprime as classes, e que não sonha em ser a Única Classe, em um pedido pedestre a ser elevada ao Quarto Estado. Os imediatistas não conseguem deixar de imaginar passivamente a Nova no molde da Antiga. Gramsci chamaria este tipo de imediatismo de “concretismo”, tirando esta palavra das atitudes de intelectuais burgueses inimigos da revolução: ele não percebia, e não tinha muito que pudesse fazer para perceber, que o “concretismo” é a mesma coisa que contrarrevolução.

Se a Humanidade tivesse tido de confiar nos imediatistas, nunca teria descoberto que a terra é redonda e que se movimenta, que o ar tem peso, que os átomos de Epicuro existem, que as recém-descobertas partículas subatômicas existem, nunca teria descoberto as teorias da relatividade de Galileu e Einstein… e nunca poderia ter previsto qualquer revolução social, passada ou futura.

Gramsci não sabia (e não por causa de nenhuma falta de leitura… ele teve o azar de ser uma daquelas pessoas que lia tudo) que o conceito de “Ordens” havia sido deixado para trás tão cedo quanto 1847, quando Marx escreveu sobre isso no seu livro contra o proudhonismo, A Miséria da Filosofia: “Quererá isto dizer que depois da queda da antiga sociedade haverá uma nova dominação de classe, resumindo-se num novo poder político? Não”. (Ah, se algum de nossos muitos contraditores tivesse pelo menos lido esse monossílabo).

Mas por que não?

Porque “A condição de libertação da classe trabalhadora é a abolição de todas as classes, do mesmo modo como a condição de libertação do Terceiro-Estado, da ordem burguesa, foi a abolição de todos os estados e de todas as ordens”.

Muitas gerações se passaram, três Internacionais viveram e morreram. Vimos centenas de pessoas se livrarem dessa espiral letal que pensavam que podiam ir além de Marx e Lenin, sem sequer atingir o nível daquele burguês incorruptível, Maximilien Roberspierre, que por está deitado há 160 sob a lápide que marca a morte de todas as Ordens!

Marxismo e a “economia de conselhos”

Nosso texto demonstra a antítese irreconciliável entre o marxismo e o gramcismo. Este é um assunto que não nos interessa tanto por causa da história das polêmicas entre ele e nós, mas porque há grupos de anti-stalinistas confusos e epígonos esquálidos que ainda querem ressuscitar essas posições.

O empreendimento local e independente é a menor unidade social que podemos imaginar, sendo limitada tanto pela natureza de seu ramo em particular e a área local. Mesmo que aceitemos, como fizemos antes, que era de alguma maneira possível eliminar o privilégio e a exploração de dentro de tal empreendimento com a distribuição a seus trabalhadores daquele elusivo “valor total do trabalho”, ainda, fora de suas quatro paredes, os tentáculos do mercado e da troca continuariam a existir. E continuariam a existir em sua pior forma, com a praga da anarquia econômica capitalista infetando tudo em seu caminho. Mas este sistema sem partido e sem Estado de conselho incita a pergunta: quem, antes da eliminação das classes ser realizada, vai administrar as funções que não dizem respeito estritamente com o aspecto técnico da produção? E, para considerar apenas um ponto, quem cuidará daqueles que não estão incluídos em um desses empreendimentos: e quanto aos desempregados? Em tal sistema, e muito mais do que em qualquer outro sistema sindical ou comunitário, seria possível que o ciclo de acumulação se reiniciasse (supondo que tivesse parado em algum momento) na forma da acumulação de dinheiro ou de enormes estoques de matérias-primas ou de produtos acabados. Dentro deste sistema hipotético, as condições são particularmente férteis para economias astutamente acumuladas crescerem se transformarem no capital dominante.

O perigo real está no próprio empreendimento individual, não no fato de ele ter um chefe. Como se calculará equivalentes econômicos entre um empreendimento e outro, especialmente quando os maiores estarão sufocando os menores, quando alguns terão mais equipamento produtivo que outros, quando alguns estarão usando instrumentos de produção “convencionais” e outros a energia nuclear? Este sistema, cujo ponto de partido é um fetichismo sobre a igualdade e justiça entre indivíduos, bem como um pavor cômico do privilégio, exploração e opressão, seria um terreno fértil ainda pior para todos estes horrores do que a sociedade atual.

De fato, é tão difícil acreditar que essas grandes palavras, “privilégio” e “exploração”, estão excluídas do léxico marxista? Olhemos mais uma vez para a Crítica do Programa de Gotha. A passagem que realmente faz Marx cuspir sangue, contendo uma baboseira lassaliana sobre o “Estado livre” e a “lei de bronze dos salários”, termina com o que Marx (e Engels noutra passagem) chama de “vaga fraseologia que conclui o parágrafo”: “[O] Partido (…) ambiciona (…) a superação (…) da exploração em todas as suas formas, a eliminação de toda desigualdade social e política”.

Isso é o que deveriam ter dito, segundo Marx e Engels: “com a abolição das diferenças de classes, desaparece por si mesma toda desigualdade social e política delas derivada”.

Esta maneira científica de se falar — para não mencionarmos a extensa nota crítica sobre a fórmula de distribuição igualitária, que é comparada à insinuação burguesa de que o socialismo não pode abolir a pobreza mas só pode generalizá-la para todos — é o suficiente para eliminar toda uma gama de críticas e artigos que — ai de mim! — estão sendo escritos, nos anos 1956–7, sobre o conteúdo do socialismo como uma filosofia de exploração.

Na mesma passagem, Marx também lida com as limitações da visão de Lassalle — que, significativamente, ele liga às teorias malthusianas, hoje ressuscitadas pelas escolas “bem-estaristas” americanas e antimarxistas –, segundo a qual o socialismo é levado à ação apenas na medida em que os salários dos trabalhadores são congelados em um nível muito baixo, quando, na verdade, é uma questão da supressão do trabalho assalariado porque “é um sistema de escravidão e, mais precisamente, de uma escravidão que se torna tanto mais cruel na medida em que as forças produtivas sociais do trabalho se desenvolvem, sendo indiferente se o trabalhador recebe um pagamento maior ou menor”.

Aqui Marx traça um paralelo histórico com a economia escrava (na qual tocamos anteriormente, ao discutirmos a demanda imbecil por autonomia dos assalariados): “É como se, entre escravos que tivessem desvendado o segredo da escravidão e iniciado uma rebelião, um escravo preso às concepções ultrapassadas escrevesse no programa da rebelião: ‘A escravidão tem de ser abolida, pois o custo de manutenção dos escravos não pode, no sistema de escravidão, ultrapassar certo limite máximo, bastante baixo’”.

Aos cavalheiros bem-estaristas, dizemos: mesmo que o capitalismo pudesse aumentar os padrões de vida médios à enésima potência, reiteramos nossa previsão histórica: a morte do capitalismo!

Os padrões oferecidos pelos conjuntos industriais da FIAT pareceram, para Gramsci, uma ordem nobre, se comparados à existência triste e brutalizada do pastor da Sardenha, ainda pior que a do Quarto Estado.

No plano quinquenal — moldado ao padrão da economia da URSS — que apresentamos à grande FIAT, previmos, para o ano de 1956, um aumento de 15,6% nas vendas em relação a 1955, de 310 bilhões a 358 bilhões de liras. Apesar de apenas 340 bilhões de liras terem sido anunciadas, o capital nominal foi elevado de 76 para 100 bilhões, ou seja, em 32% em dois anos.

Será que a nova ordem, em Turim e Moscou, já está começando a mostrar curvas menos brilhantes?

Conclusão

Nos concentramos em comparar a visão marxista e socialista da futura sociedade com a “visão” dos imediatistas (isto é, daqueles que desconfiam da forma-Estado e da forma-partido como vistas por Marx, Lenin e nós mesmos como os pré-requisitos essenciais da revolução), mas ainda não paramos, apesar de termos folheado a parte das “Notas Marginais” da Crítica do Programa de Gotha, para examinar as fases inferior e superior do socialismo, classicamente recuperadas por Lenin.

A superioridade óbvia do sistema econômico no qual a produção e a distribuição não são realizadas por “unidades autônomas” no padrão dos “campos de concentração” capitalistas atuais (com base em empregos, empreendimentos, e várias jurisdições incluindo a nação — cujos muros de arame farpado eliminaremos à força algum dia), mas para e pela sociedade, e numa escala social, já está evidente na fase inferior das duas imaginadas por Marx.

Na fase inferior do socialismo, diferenças de classe ainda não foram eliminadas; não se pode falar ainda da abolição do Estado; ainda assim, as tradições patológicas de uma sociedade dividida em Ordens, até a terceira e a última, sobrevivem; a cidade e o campo ainda estão separados; a divisão social de deveres e tarefas, a separação de mão e cérebro, de trabalho manual e técnico, ainda não foi abolida.

Contudo, no nível econômico, os setores da sociedade que até o momento eram independentes e estavam guardados no armário são postos na panela social fervente. As pequenas comunas, confederações de comércio e empreendimentos individuais, aos quais não é permitida sequer uma existência transitória, já estão desfeitos.

A partir do momento que “ela [a sociedade comunista] acaba de sair da sociedade capitalista”, não há mais lugar para mercados, para a troca entre os “setores autônomos” cercados por arame farpado. “No interior da sociedade cooperativa, fundada na propriedade comum dos meios de produção, os produtores não trocam seus produtos; do mesmo modo, o trabalho transformado em produtos não aparece aqui como valor [destacada por Marx] desses produtos, como uma qualidade material que eles possuem, pois agora, em oposição à sociedade capitalista, os trabalhos individuais existem não mais como um desvio, mas imediatamente [como seria o caso nos esquemas comunal, sindical e do conselho de fábricas] como parte integrante do trabalho total”.

Nas páginas que concluem nosso estudo da estrutura econômica e política da Rússia, desenvolvemos o ponto de que mesmo durante a primeira fase, a inferior, as limitações mercantis da produção mercantil são ultrapassadas. Nela, nenhum indivíduo pode mais adquirir e vincular nada à sua pessoa ou família através do dinheiro: pelo contrário, a ele é garantido o direito a um cupom não-permanente e não-cumulativo que lhe permite um consumo limitado pelo tempo, e que lhe é concedido dentro de limites restritos calculados socialmente.

Nossa concepção de uma ditadura sobre o consumo (isto é, a primeira fase, a qual se seguirá uma racionalidade social e de espécie) significa isto: não estará escrito em cada cupom uma unidade monetária que pode ser convertida em qualquer coisa, digamos, só tabaco e álcool e não pão ou leite, mas nomes de produtos específicos como os famigerados “cartões de racionamento”.

A lei burguesa sobreviverá, contudo, na medida em que a quantidade de consumo corresponder à quantidade de trabalho fornecido à sociedade — após as conhecidas deduções ao fundo comum terem sido feitas — e este cálculo terá de se basear na disponibilidade, bem como na utilidade e necessidade.

Ao invés de os produtos do trabalho humano serem comprados e vendidos e estarem sujeitos à lei do valor (como seria o caso se fossem trocados entre comunas “autônomas”, sindicatos ou empreendimentos), eles formarão uma única massa social. Finalmente, apenas uma conexão similar à troca mercantil permanecerá: aquela que existe que a quantidade de trabalho fornecida e o consumo diário individual.

Um erro crasso que corremos o risco de ouvir nos dá uma oportunidade maravilhosa de explicar este conceito. Alguém — um magnífico imediatista, sem dúvidas! — está dizendo por aí que “numa economia socialista o mercado permanecerá, mas será, é claro, limitado a produtos. O trabalho não será mais uma mercadoria”(16).

Pessoas assim às vezes nos ajudam a expressar uma ideia corretamente — contanto que viremos o que disseram do avesso. Isso é o que devem ter dito: “Na economia socialista não haverá mais um mercado” ou, melhor ainda, “uma economia é socialista quando o mercado não existe mais”. Na primeira fase, no entanto, “uma quantidade econômica ainda será medida como uma mercadoria: trabalho humano”. Na fase superior, o trabalho humano será nada mais senão um modo de vida, ele se tornará um prazer. Marx coloca assim: “o trabalho (…) se torna[rá] a primeira necessidade vital(17).

Para libertar o trabalho do homem de ser uma mercadoria é necessário destruir todo o sistema mercantil! Não era essa a primeira objeção de Marx a Proudhon?

Mencionamos uma asneira que roda por aí, e aqui está outra que desmontaremos assim que possível num estudo futuro: “é necessário aumentar muito as forças produtivas antes de ser possível eliminar o mercado”. Isto não é de modo algum verdadeiro: Marx considera o aumento das forças produtivas a base da fase superior, isto é, na qual o consumo não é limitado socialmente por uma produção insuficiente, mas não como uma condição para o fim da sociedade mercantil e da anarquia capitalista.

No programa de 1891, numa passagem que deve ter sido ditada por Engels, se diz: “As forças produtivas já se desenvolveram a tal medida que o regime da propriedade privada não é mais compatível com o emprego inteligente delas”(18).

Está na hora de as monstruosas forças produtivas do capitalismo se prostrarem perante o controle ditatorial da produção e do consumo. É simplesmente uma questão de força revolucionária para a classe que, mesmo quando seu padrão de vida está melhorando (que Marx, como demonstramos acima, nunca negou) sente o peso constante da insegurança e da incerteza quanto ao futuro. É uma incerteza que também assola toda a sociedade, e daqui a algumas décadas se manifestará como uma alternativa entre a crise global e a guerra — ou a revolução comunista internacional.

A classe proletária precisará se equipar com a força necessária para realizar sua tarefa histórica. Primeiro, isso envolverá uma reconstrução — uma reinstituição — da teoria revolucionária, e então será uma questão de reconstruir um Partido Comunista numa base internacional: um partido sem fronteiras.