Combater as instituições antidemocráticas da 5ª República(1)

Pierre Lambert


Primeira publicação: trechos da brochura das “Jornadas de Estudo sobre a 4ª Internacional e a Democracia”, de 1985. Texto transcrito é a apresentação da palestra de Pierre Lambert.

Fonte: Revista A Verdade n.º 60/61 - Especial Pierre Lambert (junho de 2008).

Tradução: Comissão de tradutores da Revista A Verdade.

HTML: G. P.


As Constituições e as instituições são sempre o invólucro institucional de relações de forças entre as classes ao nível do Estado. As instituições estão sempre em correspondência com a natureza de classe do Estado. Há igualmente a forma política que assume essas relações de forças entre as classes, em relação com a natureza de classe do Estado, das quais as Constituições prestam mais ou menos contas. Sob esse ângulo, é claro que se a democracia pode ser qualificada de burguesa, essa é uma forma institucional diferente de um regime fascista, que é igualmente burguês. O regime bonapartista é igualmente burguês. Juntamente com os militantes e os fundadores do marxismo, sabemos que não somos indiferentes à forma de Estado, mesmo se esse Estado é o Estado da classe dominante.

O que é o bonapartismo? Quando a classe burguesa era classe revolucionária, dizia sempre aquilo que era. Até a Revolução Francesa. E na Revolução Francesa, ela disse, sempre, procurou dizer aquilo que era. A partir do momento em que a burguesia assegurou sua dominação sobre a sociedade - essa sociedade que engendra a classe que se tornará o seu coveiro, a saber, a classe operária -, os regimes burgueses manipularam sempre o equívoco. A expressão mais elevada desse equívoco é o bonapartismo. Assinalemos de passagem que não se pode esquecer que Hitler tomou o poder da maneira mais legal e que nunca revogou a Constituição de Weimar. Na Constituição “democrática” de Weimar, havia toda uma série de elementos bonapartistas. No entanto, é evidente que a Alemanha de 1919 a 1933 não era a Alemanha de 1933 a 1945(2).

Napoleão Bonaparte, o primeiro, teve a missão de garantir as conquistas burguesas da Revolução Francesa contra a Europa feudal. Isso em luta contra os representantes do Antigo Regime, mas igualmente para lhes permitir integrarem-se à classe burguesa. Com Napoleão III (Luís Napoleão Bonaparte), trata-se do combate contra a classe operária, para o qual a burguesia usava o recurso de um sistema político antidemocrático.

A 5ª República foi por nós qualificada como bonapartista. Há diferentes formas de bonapartismo, que são o produto de relações de força particulares. É claro que o bonapartismo de De Gaulle não é o de Napoleão III, ainda que a Constituição de 1958-1962 seja calcada na Constituição de Luís Napoleão Bonaparte(3). É claro que há uma diferença entre o Império, ao menos até o Império liberal, e o regime no qual vivemos desde 1958. É verdade que as liberdades democráticas formais foram respeitadas desde 1958. Todavia, é necessário precisar o que distingue o bonapartismo da democracia. O bonapartismo é um sistema no qual o poder não emana de representantes eleitos. O poder está nas mãos do presidente, o “Napoleão”, o imperador ou o presidente da República, que gere o Estado elevando-se acima da representação parlamentar.

Conhecemos atualmente, desde De Gaulle, um regime de tal natureza. É claro que ninguém pode falar em democracia parlamentar ou em Parlamento na França. Não é por acaso que o falecido Sanguinetti qualificava o partido no poder de “partido godillot” [expressão francesa que designa aquele que segue ordens sem questionar - NdT]. No quadro da Constituição da 5ª República, desde que esteja no poder, um partido torna-se “godillot”(4).

O camarada indica que a Constituição gaullista faz referência à república laica. Isso é, do ponto de vista da democracia, a mesma tapeação que considerar a Assembléia Nacional como uma assembléia parlamentar. Para Napoleão III, o regime estava edificado sobre o sufrágio universal, livre e igual. É algum acaso o fato de que, desde a chegada de De Gaulle ao poder, tivemos a Lei Debré, a Lei Guermeur, e ultimamente a Lei Savary, que ainda não foi aprovada, mas que é aplicada assim mesmo com Chevènement(5)? Ou seja, leis inteiramente contraditórias com a laicidade do Estado, mesmo se a Constituição faz referência formal a ela.

Do ponto de vista da democracia, essas instituições devem ser destruídas. Eu me explico: somos favoráveis à democracia representativa, mas não somos favoráveis à democracia em geral. De minha parte, sou a favor de uma democracia representativa, como dizia Aristóteles, dos pobres, ou seja, hoje, dos explorados e dos trabalhadores. E é porque não somos favoráveis à democracia “em geral” que pensamos que um mandato deve ser respeitado.

E consideramos que, em 1981, os trabalhadores, as massas laboriosas votaram por uma maioria PS-PCF na Assembléia Nacional, por um governo que não aplique essa política de destruição da escola, de liquidação dos direitos e das garantias da classe operária. Em 1981, os trabalhadores votaram contra Giscard [Valéry Giscard d’Estaing, candidato da direita - NdT] e investiram uma maioria PS-PCF contra a política de direita que Giscard procurava impor, utilizando as instituições antidemocráticas da 5ª República, feitas sob medida para a defesa dos interesses burgueses. Eu constato, como os trabalhadores constatam, que a maioria PS-PCF na Assembléia Nacional e os dois governos Mitterrand-Mauroy-Fiterman e Mitterrand-Fabius, para conduzir essa política de direita, tiveram de utilizar as instituições antidemocráticas da 5ª República(6).

Para a defesa dos interesses dos trabalhadores, para que os trabalhadores possam exprimir os seus interesses, é preciso destruir essas instituições e edificar instituições representativas. Evidentemente, para mim, trata-se de edificar instituições representativas da classe operária. E não é por acaso que De Gaulle, em 1969 e mesmo antes, em 1959, visava a liquidar o lugar das organizações sindicais independentes(7). Porque há incompatibilidade entre as instituições de tipo bonapartista e antidemocráticas e os sindicatos independentes ou a laicidade(8). É o que confirmam as leis Auroux e a política antilaica dos governos desde 1981(9).

As relações entre a democracia e o poder operário

(...) Se tomo uma experiência recente, a da Revolução Portuguesa, creio que ela nos permite talvez meditar sobre as relações entre a democracia e o poder operário. A Revolução Portuguesa, que, aliás, ainda que tenha recuado muito - não sabemos ainda, mas assim espero -, retomará sua força e o avanço que representou para as massas trabalhadoras(10).

A Revolução Portuguesa de 1974 combinou algo de muito particular sob formas particulares: um desabamento total do Estado burguês salazarista [de Antônio de Oliveira Salazar, nome do ditador que instaurou o regime - NdT], porque as instituições salazaristas não podiam, como instituições bonapartistas, evoluir democraticamente. E esse desabamento levou ao desabamento do Exército, da polícia, do Estado. Não ficou nada de pé. Ao mesmo tempo, vimos as massas, os camponeses, resolverem da maneira que sabiam, de forma séria, o problema da reforma agrária, em particular nas grandes propriedades do Alentejo.

A questão agrária, aliás, continua a ser um dos pontos centrais que concentra ainda hoje toda a crise que sacode Portugal. As classes privilegiadas querem recuperar essas grandes propriedades. E nas empresas, durante a Revolução de 1974, os trabalhadores formaram, junto com os sindicatos independentes - liquidando os sindicatos integracionistas (salazaristas) -, as comissões internas, que representavam uma forma de poder operário.

Ao mesmo tempo, havia a Assembleia da República, que era um Parlamento com poder. Diante dela, havia a Presidência da República. Onde estava o poder? Onde está ainda o poder? Não estava, e continua a não estar na Presidência. O poder está na Assembleia da República.

Nesse sentido, há a combinação extremamente interessante de uma Assembleia da República eleita pelo sufrágio universal, tendo todas as características de um Parlamento e que, ao mesmo tempo, é a sede do poder. O que as massas procuravam impor em suas comissões, na reforma agrária etc., encontrava sua expressão deformada na maioria PS-PCF, que controlava a Assembleia da República. Essa questão, aliás, foi levantada há muito tempo. Trotsky a levantou, e, antes dele, mesmo Lênin, quando dizia que a forma mais pacífica da Revolução Russa de 1917 teria sido a combinação entre os sovietes e a Constituinte. Há, portanto, sobre as bases teóricas fundamentais definidas com justeza pelo camarada Bloch, uma maneira sempre complexa e original dos acontecimentos. É claro que a linha da democracia permite agir sobre o conjunto dos elementos de uma situação política complexa, muito rica, que merece, com o marxismo, ser interpretada para que se possa agir (...).

O que significa “a linha da democracia”

Na exposição do camarada Bloch, há toda essa parte histórica que, em minha opinião, é fundamental, estabelecendo as relações que existem entre democracia e comunismo. Essas relações, claro, são relações de natureza particular, pois a democracia, sob que forma esteja, é sempre uma forma de governo, uma forma de Estado. O comunismo é uma sociedade sem classes e sem Estado. Isso dito, o problema, eu creio, não está resolvido. Acredito que Gérard Bloch o colocou. Ele lembrou a formulação de Engels: “A democracia é o comunismo”. Claro, ele acrescentou, em um contexto preciso(11). Mas creio que há, sobre essa questão, matéria para reflexão. A história carregou essa discussão de um conteúdo sobre o qual é necessário falar novamente.

Até a Revolução de 1848, Marx e Engels eram favoráveis a uma revolução burguesa para acabar com os 36 Estados e para constituir a nação alemã, resolver a questão agrária, ou seja, uma revolução que constituísse a nação, do mesmo modo que a revolução burguesa francesa constituiu a nação francesa.

Na “Gazeta Renana”, Marx e Engels subordinavam, no início da Revolução de 1848, o conjunto da vida política a esses objetivos, que tinham geralmente o conteúdo da realização da revolução burguesa, revolução nacional democrática. Eles se dirigiam aos partidos democráticos para exigir que assumissem o lugar que deviam ter, a saber, o de acabar com a monarquia, resolver a questão agrária, derrubar os obstáculos dos 36 Estados para constituir a nação alemã.

No próprio curso dessa Revolução de 1848, a burguesia alemã demonstrou sua incapacidade de ir até o fim de sua própria revolução. Como lembrou Gérard Bloch, Marx e Engels tiraram desse fato uma conclusão, na famosa circular(12) sobre a revolução permanente. Mas creio que é necessário retomar o debate a partir dessa circular, para compreender bem que a Revolução Francesa não foi uma revolução proletária abortada.

Na primeira fase da Revolução de 1848, Marx e Engels situavam-se totalmente no terreno da democracia e não levantavam os objetivos proletários, ainda que o proletariado tivesse começado a se constituir. E foi somente após a “falência” da burguesia que eles começaram nesta circular a colocar o problema.

A Revolução Francesa não foi uma revolução proletária abortada, contrariamente ao que Daniel Guérin tentou explicar em “Bourgeois et bras nus” (“Burgueses e Braços Nus”); se se diz que a Revolução Francesa foi uma revolução proletária abortada, não há mais transcrescimento da democracia, há outra coisa, um desenvolvimento contínuo, e isso lembra a Frente Popular, mas antes - o que dizia Dimitrov em 1935, no 7º Congresso da Internacional Comunista(13). Essa é uma maneira de colocar o problema da democracia que conduziu, em particular na Espanha, ao apoio à burguesia contra a revolução proletária de 1936.

Essa questão é, na minha opinião, extremamente importante, e não se deveria deduzir, do fato que houve a Comuna de 1793 e a Comuna de Paris, que haja identidade entre a Comuna do Ano II e a Comuna de 1871. Mesmo se os revolucionários da Comuna de Paris avaliassem dever “calçar” os sapatos dos revolucionários de 1793, a analogia sob esse ângulo é sempre historicamente limitada. Há “comunas” e “comunas”, é preciso sempre procurar o conteúdo de classe dos fenômenos.

É que a Comuna de Paris, mesmo se retomou aparentemente as formas da Comuna de 1793, não tinha absolutamente a mesma natureza e o mesmo conteúdo.

A democracia, a utilização de todas as formas da democracia, para um outro conteúdo: o sufrágio universal para um outro conteúdo, o conteúdo operário, o conteúdo proletário. É a razão pela qual eu estimo que essa questão é muito importante, porque nos permite medir as contradições e as nuances à luz de uma história prática, aquela que é o produto da luta de classes, em uma fase precisa do movimento histórico de emancipação da classe operária.

Eu não falei disso ontem: a Assembleia da República em Portugal, em 1974 e 1975, era e não era uma assembléia parlamentar clássica; isso porque, nas relações que existiam entre as classes, nas relações políticas concretas, para barrar o caminho rumo ao desenvolvimento da Revolução Portuguesa, os dirigentes do PS e do PC instituíram um presidente da República contra a Assembleia da República; mas esse presidente da República não podia dispor, e não pode ainda, do poder. A sede do poder não era e continua não sendo a Presidência da República, a sede do poder estava na Assembleia da República.

Aliás, os trabalhadores compreendiam isso tão bem que, em 1975, os operários da construção civil tomaram de assalto a Assembleia da República para exigir de seus representantes: tomem o poder, assumam o poder, aprovem as leis para o povo. As direções do Partido Comunista Português e do Partido Socialista foram em seguida conduzidas ao palácio Belém, sede da Presidência da República, precisamente para desviar seu combate do poder real. Vê-se a que ponto as combinações políticas são de uma riqueza excepcional, e quanto isso exige que sejam banidos os esquemas sem vida, a fim de que seja procurado a cada momento o que permite avançar, ajudando a luta dos trabalhadores contra a exploração.

Democracia, democracia operária não são simplesmente esquemas, mas, a cada momento, é preciso procurar o conteúdo de classe, analisar a luta de classes real, para agir. Isso é a base há muitos anos de toda a batalha do PCI sobre a linha da democracia. Para nós, claro, a linha da democracia é o combate para ajudar os trabalhadores a assumir seu próprio poder.

Isso conduz, na França, a se colocar o problema da sede real do poder, que não é o Parlamento, ainda que ali haja uma maioria PS-PCF investida pelos trabalhadores à Assembléia Nacional. Colocar o problema da democracia, para destruir as instituições antidemocráticas bonapartistas, é ajudar os trabalhadores a reconhecerem-se nela. Essas questões são, em minha opinião, muito importantes. Em sua circular sobre a revolução em permanência, Marx e Engels abriram um campo de reflexão muito vasto. Isso dito, Marx e Engels apoiaram, todavia, todos os passos adiante rumo à constituição da unidade alemã. Não havia nada de contraditório com a circular sobre a revolução permanente, porque, como combatentes revolucionários, Marx e Engels sabiam da importância de retirar os obstáculos ao proletariado.