Nota do tradutor
Antes de tudo, pontuo que o seguinte texto é uma extensão do escrito “Transição” (1969). Portanto, assinalo que é recomendável a leitura deste para uma compreensão completa das seguintes notas.
Com grande felicidade, trago a tradução de mais um texto de Jacques Camatte para o pt-br. Dessa vez, 2 notas de seminal importância para seu texto “Transição”, de 1969, aprofundando sua análise do conteúdo da luta de classes na sociedade capitalista sob a dominação real do capital. Bom texto!
O capital subsume a classe operária em si mesma como trabalho produtivo através de um duplo movimento:
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Por um lado, "capitaliza o trabalhador", isto é, impõe-lhe, como autoconsciência, considerar-se como um capital que deve dar frutos; o trabalho deve ser uma atividade com objetivo de benefício e nada mais. Este fenômeno é contemporâneo ao da metamorfose do capital, isto é, como afirmou Marx, o próprio capital se converte em homem e, consequentemente, sua dominação se converte em mais que natural: “No curso da produção capitalista, desenvolve-se uma classe trabalhadora que, por educação, tradição e hábito reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais, evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda resistência; a geração constante de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e demanda do trabalho e, portanto, o salário, dentro das faixas que convém às necessidades de valorização do capital; a coerção surda das relações econômicas põe seu selo à dominação do capitalista sobre o operário.” (O Capital, Livro 1, Vol. 3, cap. 24), mas também se humaniza e, mediante esta última generalização de seu ser, parece desaparecer. Quando isto acontece, o capital acaba glorificando aquilo que havia sido seu principal inimigo: o “trabalho”.
Na época da dominação formal, o trabalho produtivo, encarnado na persona do operário, existia, por um lado, como determinação essencial da vida do capital e, por outro, como sua possível negação; a ambiguidade estava presente no próprio ser do trabalhador (Grundrisse).
Na medida em que o capital afirma a si mesmo como ser total, consegue resolver esta ambiguidade convertendo-a em uma divisão interna do próprio proletariado, dividido por sua vez em partes imediatamente heterogêneas. Por um lado, uma parte cada vez mais importante do que permanece como trabalho produtivo é subsumido como sujeito estável do processo de valorização, especificando-se como atividade “qualificada”, a níveis hierarquicamente diferentes, mas unificados como “potências intelectuais” do valor autonomizado; por outro, o capital exclui radicalmente, no campo da produção, os proletários cuja atividade se torna aparentemente insignificante do ponto de vista da valorização global, constituídos assim em algo absolutamente “não qualificado” e intercambiável. Assim, os restos do “ser clássico” do proletariado passam a ser rigorosamente separados e a “quantidade de mais-valor criado” deixa de determinar o grau de exclusão nas comparações do capital.
A nível social global, este trabalho de separação e destruição se completa com a expulsão da produção propriamente dita de uma massa crescente de proletários “potencialmente produtivos”, de acordo com a irresistível tendência do capital a reduzir a incidência do trabalho produtor de mais-valor no tempo global de sua própria vida (tudo isso é essencialmente baseado na terrível derrota do proletariado durante a passagem da dominação formal à real do capital em 1914-1945).
Assim, o que alguns definem estupidamente como “subproletariado” não é mais que o proletariado absoluto, produto da contradição final e insuperável do valor em processo: a contradição valorização-desvalorização. Suas lutas são a primeira afirmação do comunismo como necessidade imediata.
(Nos Estados Unidos, onde este processo chegou até o final, a divisão entre os trabalhadores “produtivos” como sujeitos do capital e o proletariado excluído dentro e fora da produção é imediatamente perceptível, no sentido de que produz-se ao colocar em jogo os fatores étnicos e de nacionalidade, completando assim o processo iniciado com a não constituição do proletariado estadunidense depois da guerra de secessão).
A exaltação do “operário” se converte na apologia do capital e em raiva contra os proletários que recusam cada vez mais a lei de troca do trabalho-sobrevivência.
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Por outro lado, com a generalização do trabalho assalariado (trabalho necessário para o capital), mesmo que seja improdutivo, com a consequente formação de novas camadas de trabalhadores, generaliza-se o tipo de atividade fictícia que tende a manter e proteger a dominação do capital sobre a sociedade. Produz-se assim um vasto processo de criação de uma vida proletarizada (sem autonomia) e também a diminuição relativa do proletariado “clássico”.
Dito de outro modo, na atualidade existe uma enorme classe de trabalhadores assalariados em cujo seio o proletariado, no antigo sentido da palavra, é minoritário. O mundo inteiro está governado pelo trabalho “reduzindo à pura abstração” (Grundrisse) e, segundo a ideologia oficial, quem não trabalha “não é um homem”. O conteúdo do trabalho não tem importância; aparece como um meio de opressão e repressão que tem por finalidade conservar a sociedade contemporânea, ou seja, o processo do capital. A inércia das formas de “vida” permite penetrar todo o campo da “consciência” e lançar o indivíduo ao círculo vicioso e infame de trabalhar (para ganhar dinheiro) para viver para trabalhar (para ganhar dinheiro).
Assim, na situação atual, a sociedade do capital não domina em nome do “valor”, mas em nome do “trabalho”.
Paradoxalmente, isto supõe a satisfação da reinvidicação dos socialistas ricardianos, de Proudhon e de todos aqueles que viam a emancipação do homem como o triunfo do trabalho (a ideologia conselhista clássica, toda a patologia leninista e trotskista etc).
Certamente, este não era o objetivo da crítica da economia política, pense o que pense M. Rubel, por exemplo, quando disse: “O final do primeiro livro é a conclusão de toda a Economia onde Marx não ocultou a tendência “subjetiva”: o triunfo do trabalho sobre o capital”. Pelo contrário, Marx só se ocupou do triunfo da revolução. No momento histórico em questão, “trabalho” significava a revolução, e “trabalho produtivo” era a outra cara do capital.
Assim, só se pode falar do triunfo do proletariado na medida em que se afirme, ao mesmo tempo, que estes o realizam como proletários, mas negando a si mesmos como tais.
Testemunhamos hoje, após a separação de seu ser tradicional, a dominação em forma mistificada do proletariado como trabalho produtivo. É uma mistificação porque é o ser imediato do proletariado o que domina e perpetua o capital: “adicionando um novo valor a um velho, o trabalho conserva e eterniza o capital” (Grundrisse). Para Marx, a afirmação do proletariado só podia ser a de seu ser “mediato”, a classe para si, que tendia a se apoderar do processo socioeconômico para facilitar seu desenvolvimento comunista.
Graças ao fascismo, o capital alcançou a dominação real, na que domina sob o aspecto do trabalho. O fascismo foi o movimento necessário para destruir a força do proletariado como possibilidade de negação e fazer triunfar o trabalho produtivo como sujeito do projeto de vida do capital. Daí a exaltação do “trabalhador” por parte dos fascistas, desde Hitler até George Wallace.
O resultado do movimento total do capital é a produção de uma classe universal, de um proletariado imenso, de um proletariado no sentido do conjunto de seres humanos sem reservas nem vida real alguma, mas cuja existência “normal” é um pálido reflexo e imitação das todas-poderosas formas inorgânicas através das quais se “manifesta” o valor autonomizado. É a classe universal da que falou Marx em A Ideologia Alemã, cuja unificação o capital faz todo o possível para impedir, opondo proletários que têm trabalho aos que não têm, proletários “de cor” de fora ou de dentro de sua metrópole aos trabalhadores “nacionais” (em ambos os casos, desvela-se a função do racismo como produto real do poder do capital), novas camadas de trabalhadores aos operários e, finalmente, impedindo aos estudantes, que não constituem uma situação social definida, sair do gueto da ideologia em todas as suas formas. Não se trata de proclamar contra tudo isto a frente única de todos os trabalhadores, já que isso levaria à sufocação da minoria imediatamente revolucionária, formada por aqueles que estão radicalmente excluídos dentro da produção ou totalmente fora dela e que afirmam imediatamente o comunismo, entre a massa dos que não têm um interesse “imediato” em superar a sociedade. Atualmente, só se pode levar os segundos ao campo de luta dos primeiros através do choque entre estes dois elementos. Durante e depois deste choque que poderá produzir-se realmente a ionização da consciência da fase revolucionária final.
A recusa do trabalho, do trabalho assalariado, meio de opressão e modo de capitalização dos homens e eternização do capital, é o elemento fundamental de unificação da classe universal. Já não se trata de reconstruir a velha classe proletária, isso equivaleria a desejar uma regressão, o retorno a uma etapa já superada; seria como querer pôr fim ao que Marx considerava como a maior possibilidade criada pelo capital no século XIX: a desaparição do proletariado. Nesse sentido, o Direito à Preguiça, que Lafargue escreveu como refutação do direito ao trabalho, é o primeiro momento essencial da reinvidicação de uma atividade humana liberta, que começa a partir do momento em que inclui em si mesma toda a riqueza humana do passado.
No período da dominação real, a revolução se manifestava no interior da própria sociedade: a luta do “trabalho” dentro do capital; hoje se manifesta, e o fará cada vez mais claramente, fora e contra a própria sociedade. Trata-se, pois, da luta contra o capital e o trabalho como dois aspectos de uma mesma realidade, isto é, que o proletariado deve lutar contra sua própria dominação aparente para poder negar a si mesmo como classe e, assim, destruir definitivamente o capital e as classes. A classe universal, na medida em que se afirma, só pode desaparecer, pois pode somente se afirmar como regeneração do ser humano. Não haverá outros grupos fora dela, do mesmo modo que tampouco será necessário que se realiza algum “socialismo inferior”, na medida em que a fase de “ditadura do proletariado” se limitará simplesmente ao período necessário para destruir a força de inércia do capital e todas as suas manifestações: o poder das fantasias da comunidade material sobre os desejos dos seres humanos.