Nota do tradutor
Com muita felicidade, trago a tradução para o pt-br de mais um texto extraordinário de Jacques Camatte. Mais do que isso, um texto em que o autor se propõe a reconstituir o legado teórico de um dos maiores e mais importantes pensadores da história do movimento revolucionário (Amadeo Bordiga), tecendo uma brilhante e robusta análise deste, também dando um amplo panorama das lutas e dilemas que tocaram o movimento revolucionário desde a revolução russa de 1917.
Em geral, vejo nesse texto uma exposição magistral do pensamento do teórico italiano, demonstrando sua apreensão particular da teoria marxista e contextualizando-a em sua época histórica; mas, em minha visão, acima de tudo, o grande valor do texto reside no fato de que Camatte, com excelência, nos mune com as armas da crítica para possibilitar uma superação revolucionária de Bordiga e do capital, além de trazer reflexões fundamentais para a interpretação da teoria revolucionária e seu papel, a luta de classes — seja em seu período de dominação formal (passado) ou real (contemporâneo) — e muitas outras coisas.
Enfim, novamente estou muito feliz por divulgar textos desse autor que me é tão importante e, de forma muito injusta, também esquecido em grande parte do debate revolucionário. A divulgação de sua obra é sempre essencial. Bom texto!
Bordiga e a paixão pelo comunismo
“A paixão é a força essencial do homem que tende energicamente a alcançar seu objetivo” (K. Marx)
Os homens são produto de sua época: alguns são aptos para representá-la, porque a invariância de seu pensamento se sobrepõe à ideologia da classe dominante ou expressa os ataques da classe dominada; outros a dominam, porque são capazes de perceber os momentos de descontinuidade a partir dos quais começam as novas fases do devir de um determinado modo de produção — especialmente os novos modos de produção. No primeiro caso, temos o pensamento tradicional — em sentido não pejorativo — e o revolucionário. Raros são os homens aptos para pensar segundo as duas modalidades, já que não se trata de uma dualidade que forma uma justaposição espacial, mas a de uma dualidade contraditória. Com muita frequência, o passado, a tradição, pesam como um pesadelo sobre o cérebro dos vivos e impedem o surgimento, a irrupção do presente e do futuro — que operam, no entanto, na realidade — no pensamento. Isto é verdade tanto em períodos de paz social como em períodos de turbulências revolucionárias, o primeiro favorecendo mais a expressão tradicionalista e o segundo a expressão revolucionária.
A. Bordiga expressou perfeitamente as ideias dominantes do movimento comunista tal qual se desenvolveu após a Revolução Russa e, ao mesmo tempo, expressou o que é este movimento convertido em diafragma ideológico: o devir real, ou seja, não interpretado pelo bolchevismo ou o leninismo, da sociedade. Mas sua luta contra as deformações leninistas, trotskistas e stalinistas inibiu finalmente sua investigação. Sua vontade de não inovar nem um ponto, de limitar-se a comentar, de provar que tufo já havia sido explicado, o fez permanecer dentro de seus limites. Não é um desses homens que dão o golpe porque conseguem apresentar-se como sendo mais do que são ou porque as condições históricas lhe permitiram ir além de si mesmos, enchendo-se de uma substância que não lhe é própria. Bordiga foi totalmente o oposto. Ele se limitou voluntariamente, não produziu o que tinha potencialmente em si. Por essa razão sua obra, que está voltada para o futuro, foi inibida ou mascarada por uma espécie de hermenêutica revolucionária. Refreou constantemente sua vontade de definir a especificidade da época em que a dominação do capital se fortaleceu ainda mais. Daí, considerando a posteriori, o caráter trágico de sua existência.
Esta hermenêutica não se preocupa tanto de evidenciar o sentido oculto de palavras e textos, mas em reestabelecer o vínculo exato entre proletariado e teoria, vista como um conjunto de leis que regem o devir da humanidade em direção ao comunismo, assim como sua descrição; é necessário, para Bordiga, desfazer os falsos sentidos acumulados e as contradições que fundam todos os desvios da luta proletária. Graças à teoria, a consciência imediata da classe pode ser tomada como um todo e enraizada, por assim dizer, de forma instantânea. Infelizmente, a simples hermenêutica não pode bastar quando deve lidar com a novidade. Aí está o complicado. Estudar esta última pode levar a um enriquecimento da teoria. Mas, uma vez que a causa seria aqui uma pessoa bem determinada, ainda havia a possibilidade de personalizar e de dar um nome a um complemento teórico. É preciso eliminar a pessoa como sujeito. O partido é o único órgão que deve e é capaz de levar a bom termo a tarefa de clarificação e de enriquecimento — em um sentido bem delimitado. É por isso que somente no momento em que o Partido Comunista Internacional tomou uma certa importância (embora sempre fortemente minoritária), Bordiga saiu um pouco de sua hermenêutica.
A melhor manifestação disto se encontra, talvez, em sua teorização dos “produtos semiacabados”:
“Se expôs assim o material tal qual é. De outra forma, é coerente com nossa firma afirmação de que não há nada de literário, escolástico ou acadêmico em nossa forma de operar; não temos esquemas ou programas oficiais e não produzimos textos elegantes e acabados, mas que avançamos lutando entre os males e os choques. É por isso que podemos caracterizá-los como somente produtos semiacabados e quase crus, os quais seriam suficientes aos camaradas para seguir em frente. Tudo isto está também em consonância com nossa doutrina, para a que o tempo de descobertas e de sistematizações luminosas é o do progresso, e não o da monotonia cinzenta e sinistra. Não pretendemos dizer nada novo e nem original; mais ainda, rejeitamos todo mérito que não seja o de ser totalmente fiel ao programa revolucionário integral, bem conhecido e claro para quem não foi envolto ou obscurecido pela fumaça obscena da traição.
O critério de nossa concepção de partido — em períodos de dominação da classe inimiga e, infelizmente, também em períodos defensivos sem lutas reais da classe amiga — não aspira à ordem fria e professoral de rigor científico, mas que alimenta-se somente de uma convicção obstinada, até sectária, impermeável aos rufiões do lado contrário. Este critério encontra ainda um apoio na conclusão de nossa investigação, que pode ser caracterizada menos como investigação propriamente dita do que uma reinvidicação e restauração de uma fé inabalável que ignora as precisões, documentos e modernizações imbecis com que charlatães nos infestam por todos os lados.
Trabalhamos com fragmentos, não estamos edificando uma enciclopédia comunista. Isto não pode ser de outra forma, dado que nossa obra está condicionada pelo alinhamento da sociedade inimiga e a deserção de dezenas de nossas forças. […] Se foi impossível estabelecer a enciclopédia quando éramos tão fortes, não podemos pretender fazê-lo quando estamos tão débeis; as tábuas sobre as quais se fundou os textos foram reduzidas a pedaços cuja substância é rígida e poderosa, mas cujos desenvolvimentos são às vezes incompletos e descontínuos. A revolução das gerações vindouras juntará os pedaços que nossos esforços limitados, mas não tímidos, ligam à trama do quadro original, já perfeito — como não deixaremos de repetir — há mais de um século.”(1)
Não se trata, e hoje menos ainda, de fazer uma enciclopédia, mas de compreender o devir da sociedade atual, que só pode ser estudado com a teoria marxista enquanto “trama do quadro original” e, ao mesmo tempo, estar em condições de apreender as transformações operadas há 50 anos. Aqui, o método dos “produtos semiacabados” corria o risco de tranformar-se em uma bricolagem teórica: à medida que se produz um evento com frequência inesperada, corrigi-se a teoria com o fim de fazê-la se adequar na realidade. É por isso que a hermenêutica teria de se revelar insuficiente. Por outro lado, a revolução se voltou a fazer sua aparição e o momento que vivemos é descontínuo em relação à fase revolucionária de 1917–1923. O capital foi além de seus limites: efetivamente, K. Marx havia contado com isso, mas não teria explicado de forma exaustiva. Atualmente, há tantos charlatães e tantas obscenidades teóricas como há dez anos, mas a exigência de um trabalho teórico que se atreva a afrontar o novo como tal é mais urgente que naquela altura. Em todo caso, não se trata de descobrir uma nova teoria, mas de desenvolvê-la sobre a surgida em 1848, o que não implica a necessidade de exibir qualquer nome. Em suma, sobre este ponto específico, o discurso de Bordiga, possível em um período de recuo, é totalmente inadequado no momento atual.
A hermenêutica de Bordiga é, de certa maneira, o complemento de sua visão profética — em sentido literal.
“Temos gritado tantas vezes àquelas pessoas ávidas de vitórias políticas palpáveis, mas contingentes, que somos revolucionários não porque precisamos viver e ver a revolução em nossos tempos, mas porque já a vemos hoje, para os diferentes países, para os “âmbitos” e as “áreas” de evolução social que o marxismo classifica a terra habitada, como um acontecimento já suscetível de verificação científica. As seguras coordenadas da revolução comunista estão escritas, como soluções de leis demonstradas, no espaço-tempo da história.”(2)
Defender a teoria é defender o elemento que corrige a lacuna criada pela contrarrevolução, a divisão entre a última fase revolucionária e a que está por vir. É por isso que este apóstrofe ecoa de uma afirmação de 1960:
“É revolucionário — segundo a gente — aquele para quem a revolução é tão certa quanto um fato já ocorrido.”(3)
E a de 1952:
“Em consequência, o problema da práxis do partido não é o de saber o futuro, que seria pouco, nem de querer o futuro, que seria demais, mas de preservar a linha do futuro de sua própria classe.”(4)
Através de sua hermenêutica e seu profetismo, Bordiga afirma o grande potencial revolucionário da classe no momento em que esta trava sua última grande luta. Trata-se de preservá-la e, se possível, de fazê-la crescer; Devemos recordar à classe sua missão e simultaneamente ceiticá-la de forma virulenta por ter aceitado a direção de chefes covardes, pusilânimes e traidores, e por entregar-se ao mercantilismo e ao imediatismo desta “sórdida civilização de quiz”(5); esta classe que já não reage, como no século passado, à menor indignação revolucionária, que, de certa forma, permite o assassinato e o massacre de amarelos, negros, árabes, embrutecida como está por um culto a Mammon(6) interiorizado.
Alguém é prisioneiro, em certa medida, da causa que abraça. Ela liberta e encadeia, às vezes paralisa e inibe. Em Bordiga, a velha problemática do partido se assenta sobre uma ampla visão do partido como classe(7), sobre a visão de uma multidão humana entrando em revolução sem apelar a nenhum grande homem ou messias, sem enaltecer ninguém. Toda reverência, seja qual for, aproxima-nos da terra, da tumba; a vitória é impossível sem uma correção completa. E é que em Bordiga encontramos irrupções visionárias do futuro, a percepção da totalidade dos homens, da espécie: daí seu discurso multiforme e torrencial. Daí também a utilização de uma linguagem não expurgada, não estritamente definida nem estatizada. Toma emprestado uma infinidade de palavras e expressões dos diferentes dialetos italianos, com o fim de fazer mais expressivo seu discurso, da mesma forma que salpica seus escritos de locuções estrangeiras que expressam de forma mais clara o que quer explicar e encarnam melhor seu pensamento, o qual é o de um ser que ainda escapa, mesmo que parcialmente, ao despotismo linguístico do capital:
“Eles podem inclinar suas testas, incapazes de qualquer rubor, para o mesmo rebanho, os falsos porta-vozes do proletariado moderno que jogaram fora as verdades que, em Münzer, tinham o poder de fazer vislumbrar um K. Marx, um F. Engels, um V. Lenin. Estas verdades de doutrina e de vida, das que hoje se renega, são a guerra de classe e o extermínio do opressor, a ditadura do partido dos oprimidos, o magnífico ciclo que vai da fé — etapa não inútil há dois mil anos — à razão — etapa não inútil há dois séculos — e a força de classe que vence o saber da classe dos tiranos modernos, os vampiros de hoje, a burguesia mercantil.
Mais que a fé da Idade Média e a razão das revoluções liberais, deverá vencer a ditadura dos ignorantes e miseráveis que luminosamente se erigiu nos tempos de Lenin, durante os concílios da revolução comunista.
[…] Não temos nenhuma preferência particular pelo laicismo contra o clericalismo papal. Somente registramos a passagem histórica da fé à razão. Mas desejamos e prevemos também a derrota da razão científica, abjeta simonia da forma capitalista, e nesta sinistra atmosfera gritamos ao proletariado: nem fé cristã e nem ciência burguesa, mas ditadura de sua força virgem e bruta, de sua força que libertará um dia ao homem da ditadura de toda a escuridão!
Depois será a luz.”(8)
“Os trabalhadores vencerão se compreenderem que não deve vir ninguém. A espera do Messias e o culto ao gênio, concebíveis para Pierre e Carlyle, são unicamente, para um marxismo de 1953, uma fachada miserável de impotência. A revolução se alçará terrível, mas anônima.”(9)
Bordiga busca sempre um apoio em K. Marx e quer provar constantemente que Marx tratou melhor que ele a questão concreta que está afrontando nesse momento. Só se permite fazer melhorias: no que concerne aos três casos do capítulo XVII d’O Capital, Bordiga acreditava ter encontrado de fato a conclusão deste primeiro livro no final do capítulo XXXII, com a famosa frase sobre a expropriação dos expropriadores, rigorosa matemática simbólica, com o fim de expor melhor a obra de K. Marx. Além do mais, ele sempre necessita exaltar a coerência da teoria, inclusive daquela que chamava escola marxista e que seria melhor chamar partido histórico.
A vontade de coerência opera às vezes como uma inércia. O discurso fecha-se sobre si mesmo para recuperar seu ponto de partida e incluir nele as diferentes partes, de tal forma que se tornem compatíveis com o todo, não contraditórias. O discurso já não está aberto e existe como um medo à errância. No entanto, através desta hermenêutica teve a possibilidade de manter o discurso teórico.
O impetuoso desenvolvimento do capital obrigaria Bordiga a ir ao encontro dessas posições. A partir de 1957, após a descoberta dos Grundrisse e os Manuscritos de 44, sobretudo dos trabalhos preparatórios, feito por intermédio de R. Dangeville(10) — o qual tem por ele um grande mérito, assim como o de ter traduzido os Grundrisse ao francês, mesmo se muito vezes a tradução deixe a desejar —, propunha-se o caráter não fechado do discurso de K. Marx. Em ditos textos aparecem, de fato, temas que não tinham sido tratados ou que haviam sido abordados superficialmente na obra de K. Marx conhecida até então. Por outro lado, o desafio do capital na época em que se produzia o lançamento do Sputnik, sua vontade de resolver as dificuldade de seu processo vital em uma indeterminação realizada ao escapar da atração terrestre, da gravidade humana que o limita, conduziram Bordiga a superar sua perspectiva às vezes cietificista e demasiado rígida em algumas questões.
Temos que apreender este revolucionário, este homem de partido, em seu vínculo com o futuro, já que viveu deste mais que qualquer outra pessoa e, no entanto, simultaneamente, foi responsável da sobrevivência de um passado mistificador que ocultava este futuro.
“O marxismo é justamente, em essência, uma previsão do futuro. O utopismo, em sentido estrito, não é uma previsão do futuro, mas uma proposta pra moldar o futuro.”(11)
É certamente neste último trabalho onde ele proporciona uma demonstração magistral de sua afirmação sobre a previsão da revolução russa.
“Quando venceu a grande revolução bolchevique, a maioria dos velhos camaradas e dos neófitos, perplexos os primeiros, inclinados ao entusiasmo os segundos, não duvidaram em lançar seus louvores, convencidos como estavam de que as afirmações teóricas do velho K. Marx e do velho Engels haviam recebido um golpe terrível.
Os que aqui escrevemos nos contamos entre os poucos que, na glória do vitorioso acontecimento que fez tremer os alicerces do mundo capitalista, não viram mais que a luminosa confirmação de uma doutrina completa e harmoniosa, a realização de uma espera longa e difícil, mas certa.
Após mais de trinta anos cheios de acontecimentos difíceis e menos propícios ao entusiasmo revolucionário, havendo resistido o colosso mundial do capitalismo ao abalo subterrâneo e ainda dominante após a segunda e mais bestial guerra mundial, revisando o curso áspero e difícil de interpretar e ligando-o — como reinvidica o marxismo que sabe fazê-lo (renunciar a ele supõe admitir que se perdeu toda a linha) — à cadeia de construções de dois séculos ou pouco menos, nos sentimos cem vezes mais seguros, de fato, de uma confirmação da doutrina, mais seguros de não ter murmurado as estúpidas, precipitadas, presunçosas e, sobretudo, covardes negações feitas à inflexível linha que, uma vez encontrada e aceita, não pode ser transformada sem traí-la.”(12)
É longa a espera que previa Bordiga para a revolução vindoura. Em 1957, na ocasião do 40º aniversário da Revolução de Outubro, em “7 de novembro de 1917–1957 — Quarenta anos de uma avaliação orgânica dos acontecimentos na Rússia no dramático desenvolvimento social e histórico internacional”(13), prognosticava uma fase revolucionária para 1975. Em 1958, precisou:
“É evidente que não estamos em vésperas da terceira guerra mundial, nem em vésperas da grande crise de entre-guerras que só poderá se desenvolver em alguns anos, quando a consigna da emulação e da paz tenha desvelado seu conteúdo econômico: mercado mundial único. A crise não perdoará então a nenhum Estado.
Uma só vitória é concebível hoje para a classe trabalhadora: a vitória doutrinária da economia marxista sobre a economia mercantilista comum a americanos e russos.
Em um segundo período, a tarefa para o partido marxista mundial consistirá na vitória da organização, em oposição aos esquemas demopopulares e democlassistas.
É só em uma terceira fase histórica — não podendo a unidade de tempo ser inferior a um quinquênio — quando a questão do poder de classe poderá ser colocada sobre a mesa. Nestas três etapas, o termômetro será a ruptura de equilíbrio, em primeiro lugar e sobretudo — do que os imbecis podem nos desculpar — no seio dos EUA e não no da URSS.”(14)
Isto expressa, ao mesmo tempo, a potência e os limites do pensamento teórico de Bordiga. Os limites, porque o desenvolvimento da revolução é concebido ainda segundo a velha perspectiva e, por outro lado, a terminologia se mostra de uma delimitação não rigorosa: não existe economia marxista — infelizmente, esta expressão se encontra com bastante frequência em Bordiga, mesmo em textos de grande valor como Elementos da Economia Marxista —, mas uma crítica da economia política, uma crítica do capital. Sua potência é a de ter indicado os pontos débeis determinantes do sistema capitalista mundial e de haver discernido a tendência essencial do capital: a formação de um mercado mundial. Embora é preciso acrescentar que, atualmente, este já não se apresenta sob uma forma puramente material, mas sob a forma dificilmente apreensível do capital fictício que é investido não só na área ocidental, mas que se concentra cada vez mais nos países do Leste e tende a englobar a China.
Nos referimos a esta previsão em nosso tratado difundido em maio de 1968, L’être humain est la véritable Gemeinwesen de l’homme(15) [O ser humano é a verdadeira Gemeinwesen do homem], por duas razões: (1) porque 1968 abre a nova fase revolucionária, (2) porque, de forma contraditória, Bordiga não reconheceu a emergência da revolução. A impossibilidade em que se encontrou de percebê-la desprende-se de sua própria visão do desenvolvimento da reativação revolucionária. É sobretudo “o segundo tempo” que mais sofre com a antiga concepção: é necessário uma vanguarda, mesmo que não lhe dê esse nome. Assim, perde-se de vista que o partido é a classe que se constitui em partido. As organizações que desejam estruturar uma consciência, suas depositárias ou, talvez, as defensoras de uma teoria restaurada, terminam sempre por ser superadas e convertem-se em obstáculos para o movimento revolucionário.
Empregamos, então, esta citação com o fim de afirmar um elemento de continuidade na descontinuidade operada por Maio. Com Bordiga, tinha-se podido delimitar corretamente os pontos fundamentais da reativação, afrontar o momento de sua manifestação, mas o peso do passado impedia que se pensasse este momento da revolução em sua nova realidade. O movimento de Maio era necessário para mandar ao inferno as velharias sobre a organização e para refletir, inclusive a nível do rigor linguístico, sobre a expressão teórica. Em Maio de 1968, o essencial foi a emergência do comunismo, a manifestação anônima da revolução, apesar de toda a agitação recuperadora dos grupúsculos que se encontravam fora do fenômeno, e isso mesmo se dita emergência tomou emprestado alguns discursos inadequados, por não terem sido expurgados das antigas crenças democráticas. A explosão de Maio foi a afirmação de um rechaço total da sociedade do capital e a apelação a uma afirmação dos homens, um lançamento até outro tipo de comunidade. Assim, muitas das afirmações-reinvidicações de Maio de 1968 — o fim da política, a destruição de toda separação, a rejeição do militante-escravo e mártir (nós não temos nenhum mérito, dizia frequentemente Bordiga) — estavam presentes no discurso deste último, mas estavam sustentados por uma visão retrógrada; o vínculo entre estas afirmações do futuro e a práxis do momento era feita através de um esquema já superado da revolução, que retomava glorificando de forma acrítica todos os fatores da revolução de 1917; daí sua imersão e sua ineficácia, que permitiu sua negação por parte dos epígonos do Partido Comunista Internacional.(16)
O importante nesta afirmação do futuro, esta não aceitação da derrota, que só pode ser real porque foi reconhecida como tal. Esta certeza do porvir se deprende da percepção do devir comunista de nossa sociedade. O ato revolucionário futuro simplesmente fará possível a plena consecução deste devir e o fará efetivo. A maioria dos revolucionários só o são pela revolução mesma, são sua encarnação imediata, ou são, talvez, a personificação de um discurso sobre a revolução. Por regra geral, estes pensam o comunismo como algo que se situa obrigatoriamente além de um momento particular: a revolução. O que então importa é esta última e não o comunismo. O comunismo somente permite proporcionar uma determinação à revolução e evitar sua confusão com outras.
Para Bordiga, dado que a revolução é o choque entre duas formas de produção, o modo de produção capitalista e o comunismo, é preciso situar-se em relação à totalidade da nova forma social.
Não se trata de apresentar a totalidade do ser humano, homem social se algum vez o foi, dentro dos limites do que era possível na época em que viveu. Ser humano, ou seja, homem de partido, de um partido cujo programa é o comunismo. Queremos simplesmente apresentar, enfrentar a determinação fundamental: sua relação com o comunismo. Bordiga disse e escreveu sobre K. Marx e F. Engels que toda sua obra consistia na luta pelo comunismo e sua descrição apaixonada. E ele, contra toda afirmação segundo a qual K. Marx simplesmente teria descrito o capitalismo em sua fase liberal — grasnidos destes senhores! É o elemento fundamental, graças ao qual Bordiga é sempre atual, contemporâneo. Isto não elimina outros aspectos retrógrados e que participam de todas as preocupações errôneas de uma época histórica já passada.
No entanto, se esta afirmação é válida ao longo de sua vida, só adquire toda sua validez bastante mais tarde e isso ligado ao desenvolvimento mesmo do movimento proletário. Antes de 1914, não se encontram análises notáveis por parte de Bordiga sobre o comunismo. Encontra-se ocupado pela luta para endireitar, regenerar o partido: luta contra o frentismo, o eleitoraliomo etc. Com a revolução russa e o surgimento dos sovietes se afirma a tese antigestionária: o socialismo é a destruição dos limites da empresa, o que diretamente implica que não se trata de criar conselhos de fábrica que se modelem de certa forma sob as formas de organização econômica do capital para dirigir a revolução, mas que é necessária uma organização que as negue: o partido político de classe.
“Sustentar, como o fazem os camaradas do L’Ordine Nuovo de Turim, que os conselhos operários, antes mesmo da queda da burguesia, já são órgãos não só de luta política mas da organização econômico-técnica do sistema comunista, é também pura e simplesmente um regresso ao gradualismo socialista. Seja chamado reformismo ou sindicalismo, define-se pelo erro de acreditar que o proletariado pode emancipar-se ganhando terreno nas relações econômicas, enquanto o capitalismo ainda detém o Estado e o poder político.”(17)
Aqui se afirma uma invariante no pensamento de Bordiga, o antigradualismo: a revolução se apresenta como uma catástrofe para o modo de produção em vigor. Isto se acompanha da rejeição de todo concretismo, que é, na verdade, a armadilha na que caem os que acreditam poder tomar atalhos históricos e evitar a catástrofe.
“O duro esforço para continuar fiel à implacável dialética marxista do processo revolucionário cedeu frequentemente a desvios, através das quais a ação dos comunistas se extraviou e esmigalhou em supostas realizações concretas e na superestimação de atividades especiais, ou de instituições particulares, que deviam construir uma ponte até o socialismo e não um aterrador salto ao abismo da revolução, a catástrofe marxista a que devia surgir a renovação da humanidade. O reformismo, o sindicalismo ou o cooperativismo não são de outra natureza.
As tendências atuais segundo as quais certos maximalistas, ante as dificuldades de destruição do poder burguês, buscam um terreno de realização, de concretização, uma tentativa de tornar técnica sua atividade, assim como as iniciativas que superestimam a criação antecipada de órgãos da economia futura tais como os comitês de fábrica, caem nos mesmos erros.”(18)
Durante todo este período, sua atividade se orienta até a formação do partido que deve intervir diretamente nas lutas em curso, seja para a revolução na Itália, seja para o apoio à revolução russa. Neste plano teórico, há uma defesa desta última ao mesmo tempo que uma tentativa de fundar o que é o movimento no ocidente. A pergunta pelo comunismo é abordada de forma indireta, por exemplo, com ocasião da crítica de um livro de Graziadei no L’Ordine Nuovo de 1924, nº 3–6: “La teoria del plusvalore di Carlo Marx, base viva et vitale del comunismo” [A teoria do mais-valor de Karl Marx, fundamento vivo e vital do comunismo].
Ou bem como em tática frente ao movimento campesino — a questão agrária de 1921, onde se enfrenta o problema da transformação socialista da agricultura. Encontram-se aqui considerações muito importantes na matéria, mas não há uma autêntica descrição da sociedade comunista. Fica nas relações sociais genéricas, muito importantes, mas não se veem todas as transformações que afetam aos homens.
É depois da Segunda Guerra Mundial quando Bordiga enfrente da maneira mais detalhada a periodização pós-capitalista e tenta definir de forma mais incisiva o que é o comunismo.
“Passando por cima de todo o ciclo, o comunismo é o conhecimento de um plano de vida para a espécie. Isto é, para a espécie humana.”(19)
Bordiga reafirma aqui outra constante comum em K. Marx e a todos aqueles que operam com a ajuda da teoria produzida por este último.
“Nossa fórmula é a abolição do salário; demonstramos que a fórmula de abolição da propriedade privada dos meios de produção é uma simples paráfrase…”(20)
“O socialismo se encontra inteiramente na negação da empresa capitalista, não em sua conquista por parte do trabalhador.”(21)
Depois, a polêmica que se abre novamente no seio do Partido Comunista Internacional sobre a natureza social da Rússia e seu devir obriga a retomar a sucessão de estágios entre capitalismo e comunismo dada por K. Marx na Crítica do Programa de Gotha. No entanto, naquela momento há algo a mais: uma tentativa de tomar em consideração o desenvolvimento excepcional do capital desde o começo do século XX.
“A. «Desinvestimento de capitais», ou seja, atribuição de uma parte muito menor do produto para bens instrumentais e não de consumo.
B. «Aumento dos custos de produção» para poder dar, enquanto subsistem o salário, o mercado e a moeda, pagamentos mais altos por menos tempo de trabalho.
C. «Redução drástica da jornada de trabalho» pela metade das horas atuais pelo menos, absorvendo o desemprego e as atividades antissociais.
D. Uma vez reduzido o volume da produção com um plano de «subprodução» que a concentre nas áreas mais necessárias, «controle autoritário do consumo», combatendo a moda publicitária do consumo inútil, nocivo e de luxo, e abolindo à força atividades destinadas à propaganda de uma mentalidade reacionária.
E. Rápida «ruptura dos limites da empresa», em que as decisões sobre a produção não são atribuídas à força de trabalho, mas o novo plano de consumo determina o que deve ser produzido.
F. «Rápida abolição da seguridade social» de tipo comercial, para substituí-la pela alimentação social dos não trabalhadores a partir de um mínimo social.
G. «Parar a construção» de casas e espaços de trabalho ao redor de grandes cidades, e mesmo pequenas, como ponto de partida para avançar para uma distribuição uniforme da população no campo. Redução do congestionamento, da velocidade e do volume de tráfego proibindo a circulação inútil.
H. «Luta determinada contra a especialização» profissional e a divisão social do trabalho através da abolição de carreiras e títulos acadêmicos.
I. Medidas imediatas óbvias, mais próximas das políticas, para submeter ao Estado comunista a escola, a imprensa, todos os meios de comunicação, divulgação, informação e rede de espetáculos e entretenimento.”(22)
A publicação do texto de Stalin “Os problemas econômicos do socialismo na URSS” foi novamente a ocasião de uma redefinição dos diferentes estágios. Não há grandes variações em relação à ata da reunião de Nápoles de 1 de setembro de 1951 (“Lezzioni delle contrarivoluzioni. Doppie rivoluzioni. Natura capitalistica rivoluzionaria della economia russa”, tese 45).(23)
“Concluiremos a argumentação econômica com uma síntese dos estágios da sociedade futura, já que é uma questão em que o “documento” de Stalin causa certa confusão. France-Presse lhe acusou a este respeito de ter plagiado o escrito de Nikolái Bukharin sobre as leis econômicas do período de transição. Na realidade, Stalin cita várias vezes este escrito, valendo-se inclusive de uma crítica que Lenin o fez. Encarregado de preparar o programa da Internacional comunista, o qual, em consequência, ficou em forma de projeto, Bukharin teve o grande mérito de pôr em primeiríssimo plano o postulado antimercantilista da revolução socialista. Depois, na análise do período de transição na Rússia, seguiu Lenin, reconhecendo que era necessário sofrer as formas mercantis durante a ditadura do proletariado. Tudo fica claro se se indica que este estágio analisado por Lenin e Bukharin precede os dois estágios da sociedade comunista de que fala K. Marx e de que Lenin dá uma magnífica ilustração em um capítulo de O Estado e a Revolução.
O esquema seguinte poderá recapitular o difícil tema do diálogo de hoje:
— Estágio de transição: o proletariado conquistou o poder e deve deixar as classes não proletárias fora da lei, precisamente porque não pode “abolí-las” de um só golpe. Isso significa que o Estado proletário controla uma economia de cuja parte, de uma forma sempre descrescente, conhece a distribuição mercantil, inclusive as formas de disposição privada do produto e dos meios de produção (sejam esses concentrados ou dispersos). Economia ainda não socialista, economia de transição.
— Estágio inferior do comunismo ou, se preferir, do socialismo. A sociedade já conseguiu a disposição dos produtos em geral e atribui-os a seus membros por meio de um plano de “racionamento”. A troca e a moeda deixaram de assegurar esta função. Só pode se conceder a Stalin que a troca simples sem moeda, mas sempre segundo a lei do valor, pode ser uma perspectiva de encaminhamento ao comunismo; isto representaria, ao contrário, uma forma de recaída no sistema de troca. A atribuição dos produtos, ao contrário, parte do centro e se efetua, por sua vez, sem equivalentes. Exemplo: quando explode uma crise de malária, distribui-se quinina grátis na zona danificada, mas a razão de um tubo por habitante.
Neste estágio, não só é necessária a obrigação do trabalho, mas também um registro do tempo de trabalho fornecido e um certificado que comprove dito fornecimento, ou seja, o famoso bônus tão discutido há um século. O bônus possui a característica de não poder ser acumulado. Toda tentativa de fazê-lo supõe a perda de uma certa quantidade de trabalho sem equivalente. A lei do valor fica enterrada (Engels: a sociedade já não atribui “valor” aos produtos).
— Estágio do comunismo superior, que pode chamar-se também, sem dúvida alguma, socialismo pleno. A produtividade do trabalho tornou-se tal que nem a constrição e nem o regime de racionamento são já necessários (salvo casos patológicos) para evitar o desperdício de produtos e da força humana. Liberdade a cada um para tomar o que seja para seu consumo.
Exemplo: as farmácias distribuem gratuitamente e sem restrição a quinina. E se alguém toma seis tubos para se envenenar? Será efetivamente tão estúpido como aqueles que confundem uma infectada sociedade burguesa com o socialismo.
Em que estágio chegou Stalin? A nenhum dos três. Não está no estágio de transição do capitalismo ao socialismo, mas no de transição ao capitalismo. Coisa quase respeitável e que não tem nada de suicida!”(24)
Há um certo absurdo em polemizar com Stalin, como se este, após a derrota da revolução, não tivera adquirido o direito de fazer o que quisera com a teoria; só uma luta vitoriosa podia reestabelecê-la. É verdade que refutar Stalin podia ser útil para reafirmar os fatores fundamentais, não falsificados da teoria. A refutação de Stalin é, assim, um capítulo na hermenêutica de Bordiga; era preciso, por outro lado, determinar a necessidade da mistificação e suas características. No entanto, não podia deixar de considerar a pergunta: como era possível que toda uma nação se colocasse a fazer distorções com a teoria marxista? E, além do mais, para o Ocidente, podia ser válido ainda em sua totalidade o que K. Marx contemplou no século XIX? A sociedade já não estava mais madura? Mas isto não se pensou.
Posteriormente, Bordiga abandonaria esta polêmica. Teve então a vontade de se considerar como afirmação positiva e reconhecimento do vazio, da ausência de qualquer movimento revolucionário, à exceção de alguns poucos grupos. No entanto, a polêmica com outras correntes tinha cessado há algum tempo. Esta tornou-se desde então sobre si mesma; daí o discurso convertido em diálogo, no que o autor não revela seu contraditório. Não ao personalismo! Bordiga dizia estar contra a polêmica, mas para superá-la teria sido necessário fundar algo que fosse descontinuidade, criar um campo que o adversário dificilmente pudesse abordar, por estar ocupado pelo comunismo; isto se tentou e contribuiu para uma certa superação da hermenêutica.
A polêmica interiorizada foi frequentemente uma justificação interna. A esquerda não é um simples movimento cultural, um círculo de estudos, não rejeita a ação (cf. a posição diante os sindicatos). Isto refere-se fundamentalmente a Onorato Damen(25), da mesma forma que no que diz respeito ao congresso de Bolonha, a referência a Lenin, a questão da tática etc.
Finalmente, havia uma necessidade de se distinguir da esquerda germano-holandesa, do KAPD em particular. A isto se deve os comentários e os ataques que são incompreensíveis para quem não conhece todas as vicissitudes da esquerda italiana e de Bordiga.
Existe um ponto, no entanto, em que realmente a polêmica não está interiorizada, em que se dá uma manifestação não manchada por uma justificação qualquer: quando se trata de comunismo.
No Diálogo com os Mortos, não se retoma o estudo das fases pós-capitalistas. Mas é a partir do momento da publicação deste texto quando se coloca em primeiro plano o seguinte teorema: o socialismo não se constrói. Desde então, não se trata mais de refutar Stalin ou seus sucessores respondendo negativamente à pergunta de se existe o socialismo na URSS, mas de destruir a própria base desta pergunta. Construir o socialismo é uma afirmação de um claro estilo utopista que evoca irresistivelmente as diversas propostas de construir a cidade radiante. Esta implica um plano pré-estabelecido, concebido e conhecido unicamente por alguns chefes, alguns gênios etc. Na realidade, o comunismo se desenvolve a partir de elementos que já existem no modo de produção capitalista e somente a atividade dos proletários, ao abater o capitalismo, permitirá o devir do comunismo até sua plenitude. Para Bordiga, o partido é, nesta corrente, uma força que guia; aquele que dirige um processo que não criou e, sobretudo, opõe-se às direções que gostariam de desviar a generosa força do proletariado. É a partir de 1957, em particular durante a reunião de Paris — cuja ata foi publicada com o título de Les fondements du communisme révolutionnaire dans l’histoire de la lutte prolétarienne internationale [Os fundamentos do comunismo revolucionária na história da luta proletária internacional] — e por ocasião do estudo da polêmica russo-iugoslava, quando isto se enunciou com ainda maior clareza. No primeiro texto já mencionado, Bordiga retoma, em certa medida, o que sempre afirmou contra as diversas vias de acesso ao comunismo; encontram-se ecos disto em seus artigos dos anos 1920 sobre os sovietes, nos escritos contra a política de fundar a atividade revolucionária sobre a base da empresa (durante a bolchevização da IC): “As organizações econômicas do proletariado escravo são pálidos substitutos do partido revolucionário”:
“A besta é a empresa, não o patrão que está à sua frente. Como escrever as equações econômicas entre empresas, sobretudo quando as grandes asfixiarão as pequenas, como fazê-lo entre empresas das que umas se apropriam de dispositivos de baixa produtividade e outras dos de alta produtividade, entre aquelas que utilizam instrumentos produtivos “convencionais” e as que utilizam a energia nuclear? Este sistema, erigido como os demais sobre um fetichismo da igualdade e da justiça entre os indivíduos e sobre um horror burlesco do privilégio, da exploração e da opressão, será, pelo contrário, um meio cultural ainda mais favorável que a sociedade civil habitual.”(26)
A descoberta dos Grundrisse e dos Manuscritos de 44 marcou, já dissemos, um momento importante na obra de Bordiga. No entanto, nesse momento, todavia, ele não iria realmente além de uma hermenêutica. Refuta aqueles que pensam que o desenvolvimento da automação é uma negação em ação da teoria do valor de Marx. Contudo, não extrai todas as consequências lógicas da afirmação de que o tempo de trabalho vivo tende cada vez mais a diminuir no modo de produção capitalista, que a atividade do trabalhador se converte quase em supérflua. Deduz simplesmente disso que o valor terá sido destruído “doutrinariamente” antes de ser efetivamente na luta armada da revolução do amanhã. Mas as afirmações de K. Marx, que encontraram atualmente uma verificação nas zonas capitalistas mais desenvolvidas do globo, implicam que é possível destruir realmente o valor do dia para a noite. Isto propõe também a pergunta pela natureza do trabalho produtivo na sociedade atual, o papel do proletariado na configuração clássica, uma modificação dos estágios pós-capitalistas tal qual os tinha definido K. Marx na Crítica do Programa de Gotha, para uma época em que o modo de produção capitalista estava longe de ter levado a cabo o que realizou hoje em dia. A demonstração de Bordiga é de pouca amplitude no sentido de que se orienta a mostrar que o proletariado não tem nenhuma razão para rejeitar sua teoria, o marxismo, posto que está absolutamente verificada. Não se preocupa o suficiente do devir total do capital e do comunismo que está ligado a ele.
De mais profundidade era o momento de delimitar o reformismo revolucionário de K. Marx, que, no entanto, havia evocado a propósito da lei que regulamentava a jornada laboral no século XIX, lei reclamada por K. Marx e pela qual, pensava, o proletariado devia lutar ferozmente, o que fez. Definir o reformismo revolucionário de K. Marx implica propor o do proletariado. Este reformismo era válido enquanto o capital não havia completado sua dominação real. De fato, o que ele quer dizer é que lutar pela jornada de trabalho, considerar que o socialismo é a diminuição draconiana da duração desta, mesmo que o capital mande os trabalhadores para a rua ou gere trabalhos artificiais não criadores de mais-valia e que, em última instância, nem sequer a realizam, são apenas necessários para manter o trabalho como coerção. O capital desintegrou a jornada vital do homem. Trata-se de rejeitá-la fora do capital. Além disso, essa determinação da jornada laboral só existe porque é preciso medir a atividade humana; o socialismo é a destruição de tal medição, ainda que o valor, o capital, não podem existir sem ela. Isto não postula de nenhuma maneira que deve se injuriar os proletários que reimvidicam uma diminuição da jornada de trabalho ou da vida laboral, isso seria pedir que cesse a contradição do capital: sua tendência a não poder se virar sem os homens e, ao mesmo tempo, a diminuir o tempo de trabalho incluído em uma mercadoria-capital. Tal reinvidicação é sempre uma agressão ao capital, enquanto cada vez mais pode ser reabsorvida no reformismo deste último, que chega a reestruturar a semana de trabalho e a repartir de outra forma o trabalho entre os diferentes componentes da sociedade. Em suas origens, ao contrário, tal reinvidicação desembocava em um reforço da unificação da classe e obrigava a incrementar as forças produtivas estimulando o mecanismo.
A partir de agora, fica manifesto que não se pode considerar o movimento até o socialismo a partir dos estágios indicados por K. Marx. Deve-se determinar como, de fato, o capital realizou o estágio de transição e, em certa medida, o socialismo inferior. Para realizar esta tarefa, evidentemente é preciso fazer referência à obra de K. Marx, partir dos Grundrisse e do livro III d’O Capital.
Da mesma forma, Bordiga pôde assentar de forma ainda mais sólida seu antimercantilismo, várias vezes afirmado nos períodos anteriores, por exemplo, na reunião de Nápoles de 1952. Carattere non mercantile della società socialista [Características não mercantiis da sociedade socialista], onde fez um comentário do capítulo sobre o caráter fetichista da mercadoria que teria de renovar em diversas ocasiões. Esta caracterização se repete como um leit-motiv na questão agrária, conjunto de fili (fios) aparecidos sobre este assunto a finais de 1953 e princípios de 1954, em Il Programma Comunista. Da mesma forma, em 1963:
“Com a ciência, a técnica e o trabalho, o homem explorará então a natureza? Falso! O vínculo racional entre o homem e a natureza nascerá no momento em que já não se façam as contas e os cálculos de projetos em moeda, mas em grandeza física e humana.
Pode-se falar de exploração quando um grupo de homens se exploram uns aos outros. Com as grandiosas construções do mundo mercantil, os explorados tornam-se solidários da empresa exploradora. Em Longarone, massas de pessoas tinham sido empregadas e havia chovido massas de ouro. O engenheiro tinha que responder por ter feito chover ouro? É certo que uma parte do pessoal fez greve diante a evidência do perigo de desabamento, mas é também um ensinamento amargo o do trabalhador que se rebelou violentamente quando um engenheiro civil quis afastá-lo porque sua claudicação impedia-o de fugir em caso de perigo, condenando-o à morte. Quando o salário é elevado, o risco de morte do homem é o ar normal que respira a sociedade do dinheiro e do salário.
Todo o vale correu o risco e agora está morto.”(27)
Aqui, deve-se apontar também que não basta dizer que o homem dominará a natureza quando “as sinistras forças sociais que nos submetem à escravidão mais que os milhões de metros cúbicos de pedras sepulcrais” tenham sido derrubadas, mas que o homem poderá se reconciliar com a natureza, como dizia K. Marx em 1844. A vontade de dominação, expressão própria do despotismo do capital, não conduziu mais que à destruição da natureza e à manipulação da natureza humana, como sustentava justamente Adorno.
Atualmente, tudo é capital e, em consequência, falar de mercantilismo mostra-se como uma concessão ao passado. Pode-se replicar que Bordiga o considera como fundamento do capital e não de forma autônoma. É verdade, mas, em tal caso, essa condenação padece de operar unicamente na negatividade: definição do comunismo como sociedade não mercantil. Em contrapartida, quando comenta as notas de K. Marx à obra de J. Mill, Bordiga supera esta negatividade e se eleva a uma visão da totalidade. O comunismo não conhece nem a troca e nem o presente — acrescentamos nós —, porque o presente não é mais que uma troca diferente ou, no máximo, um momento inicial desta.
Bordiga denuncia novamente a produção pela produção, o slogan segundo o qual o socialismo se caracteriza imediatamente pelo aumento das forças produtivas, o mito da produção, o do crescimento indefinido do PIB — que tem como consequência a pior escravidão do homem —; e define, em antítese, o comunismo como o modo de produção em que “o objetivo da sociedade não é a produção, mas o homem”. Isso levou-o inevitavelmente a retomar sua tese de que o consumo se converte em consumo para o home e que, correlativamente, surge a urgência de regenerar a espécie, de desintoxicar os homens.
A condenação da sociedade do capital exigia o estudo dos modos de produção anteriores; a revelação, após Marx, de sua superioridade sobre nossa sociedade, impunha um novo enfoque do comunismo primitivo definido como comunismo natural, em certa forma mito e poesia social. Com estes trabalhos, abandonava-se o estreito marco em que havíamos nos movido até então com Engels e sua obra sobre A Origem da Família, marco em que as sociedades africanas ou asiáticas não podiam ter lugar mais do que ao preço de descaradas distorções da realidade. Não pode se imputar toda a culpa a Engels, que, no entanto, havia precisado em seu livro:
“Por falta de espaço, renunciaremos a estudar as instituições gentílicas que ainda existem sob uma forma mais o menos pura nos povos selvagens e bárbaros mais diversos, ou a seguir seus vestígios na história primitiva dos povos civilizados da Ásia.”(28)
Simultaneamente, apontada a desapropriação sofrida pelo homem ao longo do desenvolvimento das sociedades de classe, Bordiga foi levado a reconsiderar o vínculo da ciência moderna com a antiga e com outras formas de conhecimento humano, como a arte e a religião. Viu-se ainda mais reforçado seu interesse nos mitos, que não foram abordados da óptica reducionista de um estúpido materialismo histórico, mas como potentes expressões do desejo dos homens por recompor sua comunidade e de ir além dos limites que os impunha o surgimento das sociedades de classe. Enquanto aos mitos surgidos no seio de sociedades não classistas, estes eram testemunhas de uma alta concepção do vínculo do homem com a natureza. Pode tomar-se como exemplo o mito da imortalidade. Com o advento das classes, o homem ficou reduzido a um indivíduo, a uma partícula isolada, e sofre integramente o peso deste isolamento-solidão; a morte aparece como a realização perfeita de dita solidão-separação, pelo que deve combatê-la mediante a certeza de um além onde se recria a comunidade, miragem que lhe permite manter sua continuidade. Para o homem da sociedade futura, a imortalidade já não está situada em um além da morte, mas no interior da vida da espécie, da qual o indivíduo já não está separado, porque o homem social é ao mesmo tempo Gemeinwesen.(29)
O antidemocratismo se reforça ao contato da análise das obras de juventude, mas, infelizmente, não se levou a cabo um estudo exaustivo do fenômeno democrático e, consequentemente, o comunismo como negação da democracia foi mais afirmado do que demonstrado. Redefine-se também a invariância como a permanência da solução dos enigmas realizada por K. Marx em 1844, e se retoma com força a afirmação pela qual o partido deve ser a antecipação da sociedade futura. Mas o que queremos insistir é sobre a questão do anti-individualismo, que toma algumas proporções imensas, convertendo-se no eixo de toda a concepção do comunismo e no apoio à atitude ante os períodos anteriores.
Bordiga demonstra que o individualismo excepcional não tem nenhum poder determinante. É preciso apreender a história da humanidade não como um produto da mão de indivíduos geniais, mas como a obra de milhões de homens que trabalharam na escuridão durante milênios. No fundo, somente os seres dotados de faculdades pouco comuns podem reconhecer em si o devir imenso das milhões de forças que se cristalizam em seu interior em um determinado momento, e podem, assim, dar-se conta do quão pouco realmente incorporam à obra em ação desde o surgimento da espécie. Este anti-individualismo é afirmação do homem-espécie, de uma espécie em devir, não de uma simples soma de indivíduos, mas a syngaméion(30) da que fala Bordiga em I fattori di razza e nazione nella teoria marxista (1953). Este conceito se elabora a partir da percepção da importância decisiva e inegável da ação das massas, da imensa multidão de proletários, no curso das revoluções. Com isso, reafirmava-se a existência dos milhões de seres que haviam atuado ou que atuam na direção da revolução. Bordiga não se gabava de sua própria obra, mas dava testemunho do trabalho deles, precisamente no momento em que a contrarrevolução estava apagando, e tendia a fazer isso para sempre, os vestígios de suas lutas. Nesse sentido, ele era ainda um profeta.
Bordiga tinha razão ao denunciar a passividade e a neutralidade de diversas moléculas humanas que em
“um meio histórico não ionizado […] não se orientam até dois alinhamentos antagônicos. Nesses períodos mortos e repugnantes, a molécula pessoa pode situar-se em qualquer orientação. O “campo” histórico é uma porcaria e ninguém se importa. É nesses momentos quando a fria e inerte molécula, não percorrida por uma corrente impetuosa e nem fixada a um eixo indefectível, recobre-se com uma espécie de casca que se chama consciência, põe-se a tagarelar afirmando que ela vai onde quiser e quando quiser, e eleva sua incomensurável nulidade e estupidez à altura do motor, do sujeito causal da história.”
Mas quando há ionização, então:
“O indivíduo-molécula-homem se reencontra em seu alinhamento e voa ao longo de sua linha de força, esquecendo finalmente a patologia idiota que séculos de extravio celebraram com o nome de livre-arbítrio.”(31)
Esta é a melhor prova de que é o capital o que reduz os homens a seu estado de moléculas, de que os deixa inexpressivos, sem capacidade de reação, cheios de sua própria substância. O capital tomou dos homens sua atividade e lhes dá em troca salário e ideologia. Quanto mais se despoja aos homens, mais forte é o capital. Por outro lado, este renega a teoria individualista-liberal e a falha de Bordiga é não tê-lo em conta: o fascismo foi a negação dos indivíduos com a exaltação de alguns chefes necessários, uma forma de equivalentes gerais espetaculares para os homens escravos do capital que devem dirigir. Por este fato, é impossível teorizar simplesmente uma negação do indivíduo, porque também é uma possibilidade na formação de uma ideologia totalitária que sirva ao mantimento do despotismo do capital e santifica, em certa forma, a perda de energia de todos os indivíduos, que deviam se sublevar contra o capital. A revolução comunista, certamente, levará até o final a negação do indivíduo mencionado anteriormente, a negação da pessoa como algo supostamente determinante nos processos históricos, mas não será para colocar em seu lugar ao homem coletivo que já existe na forma do trabalhador coletivo, que é outra modalidade de existência do capital, embora seja a base do comunismo. Se se nega aos homens ao negar os indivíduos, quem fará a revolução, dado que mesmo no partido estes homens-indivíduos continuam sendo ineptos? A entidade partido, operador-alquimista capaz de transformar uma soma de zeros em um arquiteto da revolução!…
O perigo de Bordiga é que mantém sua tese da negação do indivíduo até o comunismo. Ao negar finalmente o homem como unidade, o comunismo aparece desde então como o triunfo somente da espécie.
“Nesta grandiosa construção, elimina-se o individualismo econômico e aparece o homem social, cujos limites são os mesmos que os da sociedade humana, melhor ainda, os da espécie humana.”
Bordiga interpreta então o homem social de K. Marx como a espécie. Mais uma prova desta identificação reside no fato de que, mais tarde, para especificar que está se ocupando do elemento unitário humano, falará do indivíduo social. Isto convida a fazer dois apontamentos. O individualismo é uma teoria absolutamente condenável e deve ser destruída, mas, como vimos antes, o próprio capital já tende a fazê-lo. Está bastante claro que ele não pode ser eliminado depois da desaparição de seu suporte normal, o indivíduo, seja nulidade real — o proletário —, seja nulidade inflada pelas necessidades do capital — o grande homem atual que, aos olhos dos próprios adeptos do capital, aparece cada vez mais como um bufão insignificante. Por outro lado, o anti-individualismo de Bordiga não se acompanha da eliminação de expressões como “o genial Marx”, “o grande Marx”, “o grande Lenin” etc. Pode-se responder a isto que tais afirmações tinham por objetivo ressaltar que, atualmente, não pode haver grandes homens, grandes chefes etc. Isso é incontestável. A começos dos anos vinte, Gorter dizia com razão que quanto mais potente é a classe, menos necessidade tem de chefes. Mas ele não implica de forma alguma que deve se teorizar, quase elogiar, a insignificância dos homens que devem compor o vasto movimento revolucionário que abaterá o capital. É necessário todo o contrário, sem se fazer ilusões, porque só a revolução lhes dará, efetivamente, a energia necessária para destruir o monstro do capital. Adicionamos que, para K. Marx, o homem social é aquele no que se converte o indivíduo na sociedade futura, comunista. Precisemos finalmente que falar de uma sociedade comunista é uma concessão à compreensão imediata; na verdade, será a Gemeinwesen (comunidade) humana, que ainda pode se apreender de forma imediata falando de espécie humana, embora este ainda seja um conceito demasiado zoológico, e o homem social.
Este último não existirá em oposição à Gemeinwesen, posto que, ao mesmo tempo, o homem social será a Gemeinwesen, será, por sua vez, individual e universal ao mesmo tempo; se não, não se haveria efetuado ainda nenhuma superação, como deduz-se claramente das notas de K. Marx à obra de J. Mill:
“A troca da atividade humana na produção como troca de produtos humanos entre eles é igual à atividade e à felicidade sociais. Sendo o ser humano a verdadeira Gemeinwesen dos homens, estes criam e produzem mediante sua atividade o seu ser, a Gemeinwesen humana, o ser social que não é uma potência geral abstrata frente ao indivíduo particular, mas o ser de cada indivíduo, sua própria atividade, sua própria vida, sua própria felicidade e riqueza. Aquela aparece por meio da necessidade e do egoísmo dos indivíduos, ou seja, é diretamente produzida pela atividade de sua existência. Não depende do homem que esta Gemeinwesen exista ou não, mas enquanto o homem não se reconheça como tal e não organize, em consequência, o mundo de forma humana, esta Gemeinwesen aparecerá em forma de estranhamento (Entfremdung).”
De igual forma, nos Manuscritos de 1844:
“Deve se evitar, antes de tudo, tornar novamente a sociedade uma abstração frente ao indivíduo. O indivíduo é o ser social. Sua exteriorização vital (embora não apareça na forma imediata de uma exteriorização vital comunitária, cumprida em união de outros) é, assim, uma exteriorização e afirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem são distintas, por mais que, necessariamente, o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais geral da vida genérica, ou seja a vida genérica uma vida individual mais particular ou geral. […] O homem assim, por mais que seja um indivíduo particular — e, justamente, é sua particularidade a que faz dele um indivíduo e um ser social [Gemeinwesen] individual real —, é, na mesma medida, a totalidade, a totalidade ideal, a existência subjetiva da sociedade pensada e sentida para si, do mesmo modo que também, na realidade [Wirklichkeit], existe como intuição e goze da existência social.”(32)
Assim, o homem social (Gemeinschaftlicher Mensch) é, ao mesmo tempo, indivíduo e Gemeinwesen. Se se traduz este último termo por “ser social”, é fácil identificá-lo a continuação com o homem social e, desta maneira, esquivar uma das determinações essenciais: a determinação individual. A posição de Bordiga está grávida da sociedade e, portanto, do capital feito homem.
Finalmente, esta teorização tem consequências imediatas na concepção do partido, já que este é antecipação da sociedade comunista. Dita concepção leva Bordiga a atribuir tudo ao partido e nada a seus membros, que não só não existem mais que por sua mediação, mas também são elementos intercambiáveis sem mais substância que a que lhes é atribuída pela partido, ou seu centro, como diriam mais tarde os epígonos, retomando algumas observações de Bordiga. Ele leva a um psitacismo(33) tanto mais estúpido quanto o número de papagaios. Tal é, evidentemente, a caricatura a que conduz inevitavelmente esta concepção quando tem a possibilidade de encarnar-se.
Não se pode lutar contra o capital em seu terreno, o da destruição dos homens. Por isso o partido só pode ser definido como o que instala uma nova comunidade na que os membros não podem ser — e isso é evidente — homens sociais, mas seres com um profunda necessidade de lutar pela apropriação do ser humano, realizável apenas após a revolução comunista que faz efetivas as potencialidades de nossa sociedade.
Este último é um exemplo da insuficiência de uma hermenêutica que opere com a pressuposição das características da sociedade comunista, claramente determinadas e antinômicas às do capital, vêm dadas pelo surgimento da classe, o qual é certo de um ponto de vista geral, mas não no que concerne aos fatores particulares. Mas a partir do particular se põe em marcha o devir que traz variações. Assim, na fase final do capital, que em certa medida pode se chamar decadente, este imita a sociedade vindoura e realiza as reinvidicações imediatas do proletariado: generalização da condição de proletário, socialização da produção, instauração de planos de produção, negação do indivíduo, dominação da natureza etc. Em certa forma, de uma maneira mistificada, há uma realização da dominação do proletariado e de certas medidas do socialismo inferior. Afirmar que esta mistificação é simultaneamente destruição dos homens — o capital então não desenvolveria mais que forças destrutivas — não é suficiente, posto que, desde sua origem, o capital destrói as duas fontes de riqueza: a natureza e o homem. É preciso determinar em que medida o capital superou seus limites ao transformar-se em capital fictício e como esta ficticidade repercute no devir e ação da classe revolucionária, isto é, é necessário precisar sua natureza e redefinir seu programa imediato.
Embora não chegou a delimitar a ficticidade do capital, no entanto, Bordiga começou esta tarefa, por isso sua obra está semeada de pontos de partida de novas investigações, que não encontram desenvolvimento porque foram inibidas pela inércia do Partido Comunista Internacional, cuja existência manifestava a ambiguidade própria da posição e a obra de Bordiga.
Para nós, essa tentativa é essencial, assim como a descrição de todas as revoluções que sacudiram a humanidade e prepararam a que deve vir ao final desta larga e dolorosa espera, já vivida em boa parte.
Alguns terão tendência a classificar a obra de Bordiga entre as manifestações do dogmatismo absoluto, no esquematismo sectário, tenderão a pensar que, no final, ela negava o devir, a proclamar que havia subestimado a dialética etc., tudo isso porque não tinham compreendido um ponto fundamental: se há “invariância do marxismo”, não é porque este, como teoria do proletariado, como comunismo, verdade nascida no século XIX, seja sempre válido, de tal forma que a sociedade continuaria igual a si mesma desde 1848 — desde este momento, já não se trataria, para fazê-lo triunfar, de mais que recorrer a uma agitação adequada graças a uma sólida organização —, mas porque é uma antecipação. O comunismo aparece não só como uma solução do antagonismo proletariado-capital que existia no século XIX, mas também do antagonismo que se apresenta, com novas determinações, entre o proletariado e o capital do século XIX, porque a teoria contém a previsão de todo o curso do desenvolvimento histórico do capital e as modalidades segundo as quais a maturação das relações sociais facilitaria o devir do comunismo. K. Marx expressou a solução genérica e expôs quais eram as fases que a sociedade humana tinha que recorrer para realizá-la. Não se trata unicamente da obra de K. Marx, mas da obra da classe proletária que, mediante sua luta, seu assalto ao céu, sua revolução radical, antecipou exteriorizando a solução.
Para Bordiga, a revolução, como a arte, é intuição; por isso não conhece compromissos, mas que é um ataque fulminante que deve transformar tudo para chegar a seu objetivo. Sem ela, não há antecipação. Nos períodos de recuo, contrarrevolucionários, a tarefa é manter-se à altura da antecipação. Daí a proposição revolucionária — revolucionária porque lança abaixo a velha perspectiva — de que “o marxismo é uma teoria da contrarrevolução”, uma vez que se trata de manter a linha do futuro quando todo o desenvolvimento social em ação a nega de forma imediata. Por outro lado, quando a ação já não está aí, somente o pensamento reflexivo e intenso pode reencontrar o que a atividade das massas soube descobrir após seu generoso impulso. Correlativamente, nasce então a possibilidade de que, consequentemente, os pensadores se tomem por inventores, pelos autores das descobertas arrancadas pela multidão de homens em luta contra a classe adversária, contra a ordem estabelecida. No momento em que destrói essa ordem, a classe explorada cria o campo em que poderá se manifestar a nova visão, a compreensão do novo organismo social. A antecipação implica destruição de tudo o que inibe. A teoria permite manter nos períodos de reação a continuidade revolucionária, na medida em que mantém um potencial negador do campo de inibição histórico-social.
Eis aqui o que explica a aparente contradição do comportamento de Bordiga ao afirmar a primazia da teoria e, ao mesmo tempo, exaltar a atividade dos homens incultos, frustrados, ignorantes, os proletários, os representantes da não cultura, os únicos aptos para levar a cabo a revolução. Infelizmente, não teve suficientemente em conta que, na ausência prolongada de um movimento revolucionário, a teoria em si podia ser negada, tanto direta quanto indiretamente, mediante a introdução de toda forma de conceitos que lhe são estranhos, ou porque fora paralisada, estereotipada. Por outro lado, deve se apontar que o comunismo-teoria-antecipação, sen teoria, pode aparecer como uma afirmação mágica. Além disso, no âmbito desta antecipação, existem momentos já realizados, irreversivelmente caducos. Bordiga delimitou um: a utilização da democracia. Agora, o movimento revolucionário em ação se move na antecipação realizada e em processo de realização. É necessário, então, refazer a obra teórica profunda para delimitar, a partir deste ponto, o devir do momento real e antecipar seu futuro.
A contrarrevolução opera destruindo as forças revolucionárias representadas por agrupamentos de homens, por partidos; em seguida, leva a cabo de cima, lentamente e mistificando-as, as reinvidicações destes últimos; quando sua tarefa está terminada e a revolução regressa inevitavelmente, só pode desacelerar o processo revolucionário mergulhando os novos revolucionários no discurso reencontrado da época anterior. Assim, estes, no lugar de esforçarem-se para compreender a realidade, acreditam ser mais revolucionários porque reativam os temas e as consignias de seus ancestrais de 50 anos atrás. Os revolucionários com olhos de antiquários não podem ver no movimento atual mais que as lutas do passado. É o momento do adorno floral, que consiste em retornos diferentes às diversas correntes do período de princípios dos anos 20, como pode constatar-se atualmente. É indubitável que também haverá uma volta intensiva a Bordiga devido a sua descrição do comunismo, mas um simples regresso erraria seu objetivo, já que Bordiga não pode dar uma visão global, adequada; viveu o passado do capital de sua dominação formal à real, e conheceu os movimentos revolucionários que se desenvolveram no curso desta transformação. Isto lhe marcou alguns limites: impossibilidade de romper irrevogavelmente com o passado — a III Internacional e seus asseclas —, incapacidade de delimitar corretamente o devir do novo movimento revolucionário, não reconhecimento de suas primeiras manifestações na época dos acontecimentos de maio de 1968. Não ter em conta isto seria trair a paixão de Bordiga e a nossa, que obrigatoriamente deve alcançar seu objetivo: o comunismo.