Nota do tradutor
Com felicidade, trago a tradução de mais um texto de Jacques Camatte para o pt-br. Dessa vez, um escrito basilar para o questionamento das noções que, mesmo durante o atual período da luta de classes, ainda colocam o proletariado como sujeito revolucionário. Além disso, o autor também traz uma historicização das ações promovidas pelo proletariado como classe durante o século XX, sempre as analisando sob a periodização da subsunção/dominação formal e real do capital; ponto essencial para a compreensão completa das nuances da luta revolucionária pós-1945.
Infelizmente, também gostaria de notificar sobre um possível trecho de certa homofobia do autor no final do 9° parágrafo (entretanto, também pode se tratar de apenas um erro de interpretação meu — e assim espero que seja). Independentemente disso, é importante ressaltar que posturas deste tipo, vindas de quaisquer que sejam os autores, devem ser apontadas, criticadas e inquestionavelmente rechaçadas pelo movimento revolucionário.
Mas, enfim, mais um escrito de muita importância e excelência de Jacques Camatte. Bom texto!
N.d.T = nota minha
A publicação do Manifesto do Grupo Operário do PCR deriva das preocupações que expusemos no número anterior da Invariance (cfr. Adresse, pp. 23-24) e também forma parte de nosso estudo das revoluções russa e alemã do início desse século, que terá que ser completo com o da revolução espanhola. O ponto de partida já indicamos: situar os limites da teoria do proletariado(1) no plano histórico, ou seja, verificar, por um lado, como, no decorrer das lutas revolucionárias deste século, o proletariado, em suma, não propôs um modo de vida nem uma sociedade diferentes, mas limitou-se a reinvidicar uma gestão diferente do capital, pelo que sua intervenção limitou-se a favorecer a passagem da dominação formal à dominação real do capital sobre a sociedade nas zonas mais avançadas do Ocidente e a reforçar sua dominação em escala mundial, permitindo-lhe penetrar em zonas onde ainda não havia podido entrar devido a resistências de ordem geográfica, histórica ou social.
O ponto de partida dos estudos históricos sobre as revoluções do século XX foi a tentativa de determinar quais foram suas tarefas no período em que se passou da dominação formal à dominação real do capital sobre a sociedade, para caracterizar a contrarrevolução e especificar até onde ela pode chegar, pois, retomando Marx, ele acreditava que a revolução não é possível até que a contrarrevolução chegue ao fim. Em maio de 1968, a revolução emergiu. Daí em diante, tivemos que estar mais atentos ao que acontecia; mas o presente devolvia o eco de algo passado: as lutas do proletariado dos anos 20 e as que foram contemporâneas a ela, como a luta pela emancipação da mulher, a liberdade sexual etc. Impôs-se então a necessidade de delimitar o que essas lutas haviam sido capazes de produzir, assim como entender por que o movimento prático de hoje não conseguiu ir além de seus predecessores.
Fez-se evidente que não era posível sair do impasse a não ser abandonando a teoria do proletariado. O estudo histórico adquiriu, por isso mesmo, uma dimensão distinta: verificar em que medida a maior parte dos revolucionários tinham vivido e lutado sob a influência de uma certa representação do proletariado como classe revolucionária e estavam impregnados, por sua vez, de uma representação da “sociedade comunista” que não era incompatível com o ser do capital. O exemplo das revoluções alemã e, sobretudo, russa mostra que o proletariado era amplamente capaz de destruir uma ordem social que era obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, para o futuro do capital, mas que, no momento em que tratou-se de fundar outra comunidade, permaneceu prisioneiro da lógica da racionalidade do desenvolvimento dessas forças produtivas e se fechou no problema de sua gestão.
O texto de Kollontai, A Oposição Operária, publicado no número 35 de Socialisme ou Barbarie, já era muito claro a esse respeito. O Manifesto do Grupo Operário do PCR é ainda mais significativo, porque levanta claramente a preeminência obrigatória do proletariado e a necessidade de sua constituição em classe dominante, ao mesmo tempo que propõe aproximadamente as mesmas medidas preconizadas pela “Oposição Operária”. Este texto de 1923 se apresente como um último grito de guerra do proletariado russo antes de seu esmagamento definitivo (ainda que não fosse violento, como fora para o proletariado francês em 1871). Consequentemente, o encontro KAPD-Grupo Operário do PCR é muito sintomático para os dois movimentos, ambos expulsos do movimento em atos e reinvidicando desesperadamente uma linha proletária violentamente rechaçada pela corrente estabelecida. Um traço comum os caracteriza: não se reinvidica a destruição do proletariado, mas sua preponderância na sociedade. Por isso, publicamos o Manifesto com as notas que os líderes do KAPD adicionaram à tradução alemã de 1923.
Os contatos e as convergências entre o KAPD e o Grupo Operário nos permite compreender por que os bolcheviques — com Lenin à frente — foram tão cruéis de forma peculiar com os kapedistas, sobretudo durante o Terceiro Congresso da IC. Era preciso eliminar a todo custo qualquer vínculo entre a oposição interna (que, nesse momento, ainda não estava constituída pelo “Grupo Operário”) e a oposição no seio da Internacional. Todo o peso do Estado russo se colocou ao serviço desta manobra, cujo êxito foi total. Contudo, isso não evitou o perigo; por isso todos os ataques ao KAPD muito anos depois de que foi expulso da IC. Por outro lado, os bolcheviques toleraram Bordiga até 1926, momento em que este último solicitou claramente que a política do Estado russo fosse examinada no seio da Internacional.
O Manifesto é bastante eloquente em si, dada sua debilidade teórica e a limitação de suas perspectivas; quase não há necessidade de comentários. Vale a pena assinalar outro aspecto: a afirmação de Miasnikov e seus camaradas acerca da necessidade de desenvolvimento autônomo da economia russa. Revela uma base de sustentação, de enraizamento, no seio dos proletários, do que depois seria a teoria da construção do socialismo em um só país. Esta teoria tem uma base obreirista, daí seu êxito depois de 1926.
Para Marx, o proletariado foi a última classe a aparecer e a última que ia aparecer. Esta posição histórica e o lugar que ocupava no processo de produção faziam com que, em certo modo, não pudesse ser senão a negação absoluta da ordem existente, o adversário integral de qualquer forma de dominação. É concebível que, em momentos de ruptura social, esta classe pudesse levantar a possibilidade de outra forma de relações humanas. Acima de tudo, é concebível que Marx fosse capaz de investir nessa classe tudo o que podia vislumbrar de humano, manifestado no futuro no decorrer destas fissuras sociais. Em todos os casos a representação tinha uma base material, não só no plano da existência imediata, na realidade sociológica de uma classe bem definida, mas na de uma existência mediata: uma classe que intervenha ativamente, revolucionariamente, para destruir as relações sociais estabelecidas. O imperativo “Os filósofos somente têm interpretado o mundo de diferentes formas, trata-se de transformá-lo” e seu corolário “Não basta que o pensamento tenda a sua realização, a realidade deve tender ao pensamento” “traduziam” este desejo de ação delegada em uma classe que devia “emancipar” a humanidade.
Mais de um século depois, o MPC(2) ainda está aqui, poderoso. É ele quem transformou o mundo e os seres humanos a tal ponto que cabe questionar se estes serão capazes de se rebelar. Tudo o que pertencia à sociedade humana desaparece, desmorona-se e o discurso se autonomiza. A filosofia sobrevive à sua morte anunciada em uma hermenêutica polimórfica, imenso delírio sobre suas origens. A arte também está morta. O dadaísmo e o surrealismo a proclamaram e viveram esperando que essa morte fosse contemporânea da insurreição proletária. Mas o proletariado foi integrado na comunidade do capital.
A representação do proletariado como sujeito revolucionário já não possui nenhum fundamento, devido à evanescência da classe, à sua ficticidade. Pouco importa! Se já não existe mais, a postulamos. À ficticidade do capital, que lhe permite superar as barreiras à sua valorização, corresponde a do proletariado, que permite manter o esquema revolucionário baseado na intervenção decisiva de uma classe durante a revolução ou dirigí-la. Quanto mais se derruba a sociedade, mais o proletariado deve realizar os elementos contidos nela, mas que não puderam florescer por completo. Para os situacionistas, o proletariado devia realizar a arte, mas também devia permitir a emancipação sexual. Torna-se o sujeito artístico e sexual — em uma representação verdadeiramente autonomizada — da revolução, e o mesmo vale para a sexualidade. As situações devem ser tanto revolucionárias como artísticas. Sobre isto se constrói o mito de viver imediatamente aqui e agora, mas só a partir do momento em que se interiorizou a mediação proletária. Pois, fazendo-se proletário, pode-se realizar a arte e o acesso à sexualidade plena: “Não há nada melhor do que dormir com um mineiro asturiano. Esses sim são homens!”
Chegamos talvez à última figura do proletariado, a que causa mais danos, porque a partir deste momento torna-se cada vez mais um operador de justificação de uma determinada realidade.
Não é esta a prova mais contundente e mais espetacular da inanidade da teoria classista, da teoria do proletariado? O discurso teórico da ultraesquerda é uma combinatória de temas teóricos dos situacionistas e legados pelo movimento operário clássico. O melhor exemplo deste sincretismo-combinatória é bastante recente, o encontramos em: “Mouvement capitaliste et révolution russe — Le procès de dissolution de l'art” (B.P. 29 — Uccle 4 — 1180 Bruxelas).
“Os proletários são aqueles que, sem reservas, não podem acumular e estão despojados de todo poder sobre a produção de sua vida. Os proletários, como força produtiva de mais-valor, seguem sendo o centro desta. Seu lugar na economia os obriga a ser a ponta de lança do movimento comunista. Mas este último já não é estritamente classista na medida em que produz-se uma proletarização cada vez mais ampla de nossa sociedade (o próprio movimento do capital engendra a base da classe universal — a negação das classes)” nota 2, p. 27.
“Por proletariado entendemos o movimento até a classe universal-negação tendencial das classes (em oposição à classe operária). Mantemos classe por alusão à origem do movimento” nota 7, p. 29.
Este discurso sobre uma ausência simplesmente revela a inexistência de um movimento revolucionário encarnado em homens e mulheres concretos; revela também a impotência daqueles que quiseram uma transformação deste mundo, mas que se dão conta de sua debilidade devido ao seu número irrisório. A apelação a um proletariado mítico é uma tentativa de conjurar o horror da situação. Mas esta segue sendo a que é. Mais valeria recusar todo este aparato teórico e tratar de entender como sair realmente dela.
A recusa da teoria do proletariado implica uma reflexão profunda sobre o que pode significar a revolução, já que esta teoria pressupõe o desenvolvimento das forças produtivas que postulam que a humanidade deve, definitivamente, sofrer terríveis destruições, sofrimentos inéditos antes de construir um conjunto produtivo capaz de assegurar sua “emancipação”. A revolução significava a destruição dos obstáculos ao desenvolvimento das forças produtivas, e a classe revolucionária era a maior de todas elas.
Desde o momento em que reconhecemos a desaparição das classes devido ao triunfo do despotismo do capital sobre o rebanho humano submetido à “escravidão generalizada” e que o capital realiza plenamente a racionalidade do desenvolvimento das forças produtivas e, portanto, o progresso (a direita reacionária clássica praticamente desapareceu), onde situamos o elemento revolucionário e o elemento contrarrevolucionário? Em que sentido seria revolucionária a destruição do MPC? Esta pergunta já estava implícita em nossa afirmação: a revolução comunista é ao mesmo tempo classista e aclassista (sobretudo no momento em que raciocinávamos em função da classe universal); não é somente uma destruição, mas também um retorno a um modo de ser perdido: o modo de vida comunitário em harmonia com a natureza.
Podemos falar de revolução para indicar a desaparição do MPC porque, efetivamente, haverá uma afirmação de descontinuidade, ao mesmo tempo que a realização de um retorno. Mas não será porque se oporá a algo imediato chamado contrarrevolução. Revolução e contrarrevolução, progresso e regressão, são elementos de uma problemática vital que envolve o ser humano há alguns poucos séculos, mas suas pressuposições existem desde o momento em que se realizou a ruptura com a comunidade e a natureza. Se se afirma que o movimento que tende a abolir esta ruptura é revolucionário, nos vemos levados a constatar que ele esteve representado por homens e mulheres que estavam longe de ser considerados revolucionários.
Dissemos “é necessário sair deste mundo” porque os elementos fundamentais do futuro da comunidade humana só podem ser percebidos de fora de todo o vasto arco histórico — momento intermediário — que vai desde as comunidades primitivas até a realização da comunidade do capital (para a qual contribuíram revoluções e contrarrevoluções). No seio deste momento, podemos ver concretizar-se (sobretudo no Ocidente) um certo sonho dos seres humanos: posicionar-se em relação com a natureza, ou seja, encontrar sua identidade em relação a ela desde o momento em que se abstraem, se afastam e se alienam dela, o que os leva a afirmar-se como superiores, senhores e donos dela, que possuem o dever de dominá-la. Mas esta dominação é alcançada por meio de um ser alienado, produto de sua atividade milenar, o capital, que efetivamente domina a natureza ao dominá-los.
Portanto, a espécie humana deve levantar-se contra sua própria afirmação humana, que conduz a uma desumanização completa. Daí que os conceitos de revolução e contrarrevolução sejam ineficazes para situar o momento que vivemos, e mais ainda porque, se lhes atribuímos uma realidade, então teriam de abranger um período histórico mais vasto que aquele que vivemos.(3)