Antes do IV Congresso(1) tinha aceitação geral no Partido a fórmula burguesa de “questão racial” como definição para a questão Negra nos Estados Unidos. O facto de ninguém questionar a correção dessa fórmula era em si mesmo um indicador da passividade e da completa falta de clareza do partido no campo do trabalho com o povo Negro. A sua utilização não só refletia uma linha incorreta como jogava um papel ativo em impedir uma formulação marxista da questão.
É hoje absolutamente claro, após as deliberações do IV Congresso sobre a questão Negra, que considerar esta como uma questão meramente “racial” equivale a subestimar a força revolucionária intrínseca do movimento de libertação Negro e a revelar uma incapacidade de compreender, em última instância, a sua base enquanto luta das massas Negras da Cintura Negra (Black Belt) pela independência nacional, ou seja, pela autodeterminação.
Na verdade, essa era a essência da linha oportunista dos renegados Pepper e Lovestone(2), expressa na teoria da “segunda revolução industrial no Sul”, a qual sustentava a perspetiva da liquidação do campesinato Negro e, consequentemente, da base social da luta de libertação nacional no contexto do sistema social vigente. Não foi por acaso que ambos reiteradamente enfatizaram, nos seus discursos e teses, que a questão Negra era uma questão “racial”. Tal definição decorria logicamente da sua linha oportunista.
A resolução de Outubro do Comité Executivo da Internacional Comunista (C.E.I.C.), ao estabelecer de forma definitiva a questão Negra nos Estados Unidos como uma questão nacional, revelou, em simultâneo, a essência burguesa da fórmula “questão racial”. É, pois, natural que esta resolução — que lançou as bases para uma transformação profunda da posição do Partido relativamente à questão Negra, rompendo por completo com a linha oportunista anterior — tenha enfrentado uma resistência desesperada por parte dos elementos oportunistas do Partido. Todos eles se uniram num coro oportunista proclamando que “a questão Negra é uma questão racial”, procurando, assim, arrastar o Partido de volta à velha rotina e minar a implementação da nova linha.
O facto de existir uma convergência objetiva entre certos elementos chauvinistas e alguns dos nossos camaradas negros não deve causar qualquer surpresa. Tal apenas confirma a máxima Marxista segundo a qual não há diferença substancial entre o oportunismo descarado e o oportunismo revestido de frases e palavreado “esquerdistas” — neste caso, representados, respetivamente, pelas tendências chauvinistas entre os camaradas brancos e pelas tendências social-democratas de “esquerda” entre os camaradas Negros.
As tendências chauvinistas no seio do Partido radicam numa profunda falta de confiança nas massas Negras — um resquício da ideologia social-democrata da Federação americana do Trabalho(3) (A.F. of L.) — que se expressa politicamente na subestimação das lutas de libertação dos Negros. Os defensores desta linha não consideram o movimento Negro como aliado do proletariado, nem como uma força a ser integrada e mobilizada no sentido de reforçar a luta de classes do proletariado; pelo contrário, veem-no como um elemento de distração da luta de classes do proletariado “pura”, como algo em contradição com esta. Por conseguinte, negam e rejeitam as lutas do povo Negro em nome da revolução proletária.
Por seu lado, o “esquerdismo” entre certos camaradas Negros representa uma capitulação completa perante a posição chauvinista. Os camaradas que advogam esta linha encontram-se na absurda situação de pretenderem combater o chauvinismo na prática enquanto, ao mesmo tempo, aceitam as suas premissas ideológicas fundamentais. Torna-se, assim, evidente que essa “luta” não passa de uma farsa.
O camarada Huiswood(4), em artigo intitulado “The World Aspects of the Negro Question” publicado em Fevereiro na revista Communist, oferece-nos um exemplo elucidativo desta última tendência. Nesse texto, redigido um ano e meio após o IV Congresso, não só ressuscita a tese da “questão racial”, como procura conferir-lhe uma fundamentação teórica. Com isso, coloca-se em clara oposição à linha da Internacional Comunista (IC), prestando, objetivamente, um apoio ao inadmissível chauvinismo.
Ao tentar demonstrar que a questão Negra nos Estados Unidos é uma questão racial — em contraposição à sua natureza de questão nacional — o camarada Huiswood, em colaboração com os seus “co-pensadores”, acaba por evidenciar o seu abandono da posição Marxista-Leninista sobre esta matéria, resvalando inevitavelmente para o pântano do mais estéril liberalismo burguês.
A essência burguesa das teorias da raça
Não é por acaso que o Marxismo revolucionário nunca formula a questão dos povos oprimido — isto é, uma questão social — como questão de raça. A raça, enquanto categoria social, existe unicamente para os ideólogos da burguesia e nas mentes daqueles por eles iludidos. Com esta categoria puramente biológica — a raça — baseada em diferenças no seio da espécie humana, como a cor da pele, e a textura do cabelo entre outras, confere-se um significado social a tais características físicas. Ou seja, a raça transforma-se, artificialmente, em explicação para fenómenos de natureza social.
Com base nesta falsa premissa, constroem-se teorias igualmente falsas segundo as quais existiriam, por natureza, raças de senhores e raças de escravos — os primeiros, pelas suas qualidades “inatas”, destinados a dominar, e os segundos, pela alegada ausência dessas qualidades, reduzidos ao trabalho manual. A existência de diferentes graus de desenvolvimento entre os povos — o facto de as nações europeias terem alcançado um nível superior de desenvolvimento económico e político relativamente, por exemplo, aos povos africanos ou asiáticos — não é interpretada como um fenómeno histórico, resultante de causas naturais e sociais objetivas, mas é, antes, atribuída a uma suposta superioridade “natural” dos europeus.
O conceito estritamente físico de raça é, assim, identificado por tais teóricos com traços intelectuais, morais e culturais. A pele branca passa a ser símbolo de civilização, alta cultura e inteligência, enquanto a pele negra é associada à barbárie, à inferioridade moral, à dependência, entre outros estigmas. A luta entre estas duas raças é, então, apresentada como resultado de um antagonismo “instintivo” e intransponível.
A partir dessa lógica perversa, torna-se “natural”, no entendimento desta ideologia, que — no “interesse” da humanidade — recaia sobre as raças dominantes o suposto dever de cuidar dos “incapazes”, de suportar “o fardo do homem branco” e de assegurar que os inferiores ocupem o papel social que, em virtude das suas alegadas limitações “naturais”, lhes estaria predestinado.
É evidente que por detrás destas teorias se ocultam as políticas bem delineadas das classes dominantes burguesas, e que não passam de cobertura ideológica para justificar a opressão nacional. Tais teorias constituem a superestrutura ideológica apropriada a um sistema assente na super exploração dos povos subjugados, funcionando como uma forma de legitimação moral da ordem social vigente.
Contudo, seria um erro sério subestimar o importante papel social representado por estas teorias. Surgindo, num primeiro momento, como justificação moral das políticas coloniais dos Estados imperialistas, estes dogmas — erigidos à condição leis imutáveis — passam, por sua vez, a influenciar diretamente a prática política e, desta forma, atuam sobre a base económica e social agravando e aprofundando a exploração dos povos subjugados e perpetuando as relações sociais existentes.
A política fundamental da burguesia das nações opressoras em relação aos povos subjugados visa a interrupção arbitrária do seu desenvolvimento económico e cultural, como condição essencial para facilitar a sua exploração. Este é o verdadeiro significado de toda a forma de opressão nacional (racial).
Para concretizar esta política, a classe dominante das nações opressoras exige o mais absoluto isolamento dos povos subjugados sob a sua dominação, bem como a segregação total entre as massas da sua própria nação e esses mesmos povos. Para alcançar esse objetivo, recorre a todos os meios ao seu dispor. As diferenças raciais, linguísticas e culturais são transformadas em instrumentos valiosos na implementação dessas políticas. Desenvolvem-se teorias chauvinistas que enaltecem a língua, a cultura e a raça das nações opressoras, ao mesmo tempo que denigrem essas mesmas qualidades e instituições nos povos oprimidos. Tudo isto com o propósito de incutir, entre as massas das nações opressoras, sentimentos de desprezo e ódio em relação aos oprimidos e, paralelamente, fomentar nestes últimos sentimentos de rancor e desconfiança face aos povos das nações opressoras no seu conjunto. Deste modo, promove-se a hostilidade mútua entre ambos e assegura-se o isolamento das massas das nações opressoras.
Incapaz de conquistar o apoio das massas para a sua política predadora apenas por via ideológica, a classe dominante das nações opressoras recorre ao suborno dos estratos superiores da pequena burguesia e da aristocracia operária, utilizando para tal uma parte dos superlucros obtidos através da exploração dos povos subjugados. Desta forma, constrói uma base social de apoio entre as massas das suas próprias nações. Esses grupos subornados passam, por sua vez, a ter um interesse direto na política nacional-colonial e desempenham o papel de porta-estandartes sociais do chauvinismo, tanto entre as massas como no seio do movimento operário e sindical.
Assim, em França, a burguesia francesa utiliza os operários nacionais como instrumento contra as minorias nacionais, representadas por italianos, espanhóis e imigrantes oriundos das antigas colónias. Para além da propaganda chauvinista sistematicamente disseminada entre os trabalhadores franceses, a burguesia manipula também os interesses e aspirações da pequena burguesia. Concedendo-lhes maiores oportunidades de ascensão a posições de chefia, como capatazes, ou a lugares na aristocracia operária, a burguesia tem conseguido erguer e sustentar uma barreira entre as diferentes camadas das massas trabalhadoras. Por este meio, a burguesia francesa assegura a obtenção de superlucros através da intensificação da exploração dos trabalhadores imigrantes.
Contudo, são os Estados Unidos que nos oferecem o exemplo mais paradigmático desta política. Neste contexto, os aristocratas operários, sob a direção da American Federation of Labor (A.F.L.), plenamente conscientes de que a sua posição privilegiada depende da exclusão e exploração dos trabalhadores não qualificados e não sindicalizados — constituídos maioritariamente por imigrantes e pessoas Negras — colaboram ativamente com a burguesia na perpetuação da exploração desses sectores. Este fenómeno já havia sido assinalado por Engels numa carta dirigida a Herman Schluter, datada de 30 de março de 1892:
A classe operária (referindo-me aqui aos operários americanos de nascimento, H.H.) desenvolveu-se e organizou-se, essencialmente, através dos sindicatos. No entanto, devido à posição que ocupa, constitui uma verdadeira aristocracia operária, beneficiando da possibilidade de relegar os trabalhos mais duros e mais mal remunerados para os imigrantes. Apenas uma pequena fração destes últimos consegue aceder aos sindicatos aristocráticos, sendo ainda fragmentados em diferentes nacionalidades, e não dominando em muitos casos a língua local. E, muito melhor do que o governo austríaco, a vossa burguesia consegue incitar uma nacionalidade contra a outra — judeus, italianos, checos, entre outros, contra alemães, irlandeses, etc. — de tal modo que me parece que, em Nova Iorque, existem disparidades nos níveis de vida entre trabalhadores que seriam inconcebíveis noutros países (Traduzido do russo).
A isto é necessário acrescentar que a exploração especial dos nascidos no estrangeiro se confina, em geral, à primeira geração. A segunda geração torna-se já 100% americana, adotando a língua e a cultura do país. Desta forma, os requisitos ideológicos para a sua definição como uma minoria nacional desaparecem.
Assim as grandes vantagens de levar a cabo uma política colonial-nacionalista existem nos casos em que as nações opressoras se distinguem das oprimidas por diferenças físicas pronunciadas (cor da pele, textura do cabelo, etc.). Esse é o caso dos Estados Unidos, da África e das Caraíbas. Em África e nas Caraíbas essa vantagem é aumentada pela separação territorial entre opressores e oprimidos e no caso das colonias em África pela diferença de línguas, dialetos, e das culturas históricas nacionais e tribais marcadamente diferentes das encontradas nas nações opressoras imperialistas.
Sob este ponto de vista a posição dos Negros americanos distingue-se da dos Negros das Caraíbas e de África. Nos Estados Unidos os Negros não estão territorialmente separados da nação opressora branca; pelo contrário coabitam com a população branca dentro dos limites de cada Estado. Nestas circunstâncias as classes burguesas dominantes são forçadas a implementar uma política enérgica que mantenha de forma sistemática a barreira de separação entre brancos e Negros, i.e., atrasando o processo de assimilação e preservando dessa forma as condições que permitem a super exploração dos Negros. Este facto, aliado a inexistência de uma língua própria, e com à fragilidade de uma cultura nacional autónoma entre os Negros, tem contribuído para uma ênfase mais pronunciada do fator racial como o único fator sobre o qual a burguesia pode construir uma ideologia hostil destinada inflamar o “espírito nacional” contra os Negros. Estas são as principais razões pelas quais nos Estados Unidos o fator racial assume uma expressão mais relevante do que nas Caraíbas ou em África.
Para além do já anteriormente referido, importa sublinhar que as ideologias raciais possuem nos Estados Unidos uma tradição mais antiga do que em muitos outros países. O desenvolvimento histórico específico do capitalismo americano assente como foi na produção algodoeira e na consequente necessidade de recorrer ao trabalho escravizado da população Negra, favoreceu o surgimento precoce de teorias raciais. A legitimação moral do brutal sistema esclavagista exigia, necessariamente, a exclusão dos Negros da categoria de seres humanos. As teorias raciais formuladas nesse período visavam, consequentemente, classificar os Negros como uma espécie sub-humana, alegadamente dotada de uma incapacidade mental “inata” que os condenava à escravização eterna.
Com a “emancipação” dos escravizados e a sua consequente conversão em semiescravos nas plantações e nos escravos-assalariados mais mal pagos nas cidades, as ideologias raciais sofreram as correspondentes adaptações. O estatuto sub-humano outrora atribuído aos Negros nas normas morais do sistema esclavagista, tornou-se incompatível com o seu novo posicionamento económico e social. Tornou-se, pois, necessário proceder a uma reconfiguração desse: os Negro deixaram de ser considerados uma subespécie para passarem a ser reconhecidos como humanos — ainda que, supostamente, de qualidade inferior. No Sul, onde os resquícios económicos e sociais do anterior sistema esclavagista são mais acentuados, persistem os traços remanescentes mais fortes da ideologia anterior. Aí o Negro é considerado como pouco mais que um animal — e tratado de forma correspondente.
A época do imperialismo ou do capital monopolista — à qual corresponde, segundo Lenine, uma superestrutura politica caracterizada por “um retrocesso da democracia para a reação política” reflete igualmente um retrocesso na esfera ideológica. No Sul dos Estados Unidos, à medida que atualmente avança a fusão entre o capital financeiro e as formas agrícolas pré-capitalistas assiste-se também a uma unificação no plano ideológico.
Não é, portanto, por acaso que, nas últimas duas ou três décadas — ou seja, com o desenvolvimento do imperialismo nos Estados Unidos — se tem que assistido ao pronunciado reforço das ideologias racistas. Durante este período os “teóricos” do racismo multiplicaram exponencialmente a sua atividade. Verdadeiras torrentes de literatura sobre a “questão racial” jorraram das suas plumas prolíferas. Dogmas relativos à existência de raças inferiores e superiores são hoje apresentados como se de factos científicos se tratassem. Hilferding, na sua obra O Capital Financeiro nota corretamente a tendência do capital financeiro para prostituir a ciência, colocando-a ao serviço dos seus interesses no domínio da questão nacional:
Como a subordinação das nações estrangeiras é imposta pela força — isto é, por métodos muito naturais — cria-se a aparência de que a classe dominante ocupa a sua posição em virtude de supostas peculiaridades raciais. Assim a ambição do capital financeiro pelo poder adquire, através da ideologia da raça, a aparência de justificação científica; as suas ações passam a ser apresentadas como determinadas, e até necessárias, à luz das ciências da natureza. Em vez do ideal democrático de igualdade, afirma-se o ideal da dominação oligárquica (retroversão do russo).
Torna-se, assim, compreensível que nos Estados Unidos encontremos cientistas sérios a tentar provar o dogma das diferenças entre raças através da composição bioquímica do sangue de brancos e Negros.
Deste modo, nos Estados Unidos o fator racial parece assumir um papel dominante na relação entre brancos e Negros. O nacionalismo agressivo das classes dominantes burguesas americanas, dirigido contra a população Negra, dissimula-se sob um véu racial. A cultura nacional americana apresenta-se como a cultura da raça branca. As ciências, as artes e a filosofia ganham um cunho racial. As instituições americanas tornam-se as instituições dos brancos e sendo negativamente contrastadas com as dos Negros. A cultura nacional é, assim, interpretada como uma cultura racial.
É, portanto, perfeitamente natural que esta tendência gere entre os Negros uma propensão de natureza análoga.
Os esforços económicos e sociais da emergente burguesia e intelectualidade Negras exprimem-se, no plano ideológico, através de formulação de carácter racial. À ideologia racial da burguesia branca opõe-se, assim, uma ideologia racial Negra. Com o crescimento da burguesia Negra ao longo das últimas duas décadas, foram sendo criados todos os elementos constitutivos de uma cultura Negra. Esta cultura incluiu referências históricas parcialmente assentes na antiga civilização africana, bem como expressões artísticas e literárias Negras que refletem o ambiente de opressão vivido pela população Negra nos Estados Unidos, etc.. Esta tendência encontra a sua expressão mais extrema no movimento de Garvey, com os seus deuses Negros, uma religião Negra, a glorificação de tudo o que é Negro, etc..
Como sucede em todos os casos de culturas nacionais, esta tendência entre os Negros reflete uma tentativa da burguesia Negra de mobilizar as massas sob a sua influência ideologia e em defesa dos seus próprios interesses de classe.
À luz do que foi anteriormente exposto, torna-se evidente que a denominada “questão racial”, tal como é formulada por sociólogos burgueses tanto em África como na América, consiste, na realidade, na instrumentalização por parte dos imperialistas, das diferenças físicas — nomeadamente a cor da pele, a textura do cabelo, etc — entre brancos e Negros com o objetivo de facilitar, aprofundar e perpetuar a exploração dos Negros.
A formulaçâo marxista-leninista da questão
A verdadeira formulação Marxista-Leninista da questão mostra que a questão dos Negros dos Estados Unidos, tal como sucede com todas as questões relativas aos povos atrasados e oprimidos, não decorre de nenhuma pretensa diferença imutável entre brancos e Negros, nem resulta de um alegado “ódio instintivo natural”. Pelo contrário, encontra as suas raízes objetivas nas desigualdades de desenvolvimento económico e cultural entre Negros e brancos no contexto de uma sociedade de classes. Essas diferenças longe de se deverem a quaisquer características “inatas”, resultam, do facto de que, em virtude de determinadas causas sociais objetivas, os povos brancos da Europa e da América conseguiram alcançar um nível mais elevado de organização económica e política do que os Negros em África. Estes factos, conjugados com o culminar de uma série de circunstâncias económicas e sociais — nomeadamente o crescimento do capitalismo mercantil, o trafego de pessoas escravizadas e a necessidade de recorrer ao trabalho forçado e barato dos escravizados no processo de desenvolvimento de um novo continente — lançaram as bases para a escravização dos povos Negros. Desta forma, no quadro do sistema de classes vigente nos Estados Unidos, a diferença entre povos considerados “atrasados” e “desenvolvidos” converteu-se numa contradição entre povos opressores e povos oprimidos.
Contudo, o conteúdo socioeconómico da questão Negra variou consoante os diferentes estádios de desenvolvimento do capitalismo nos Estados Unidos. Durante o período da escravidão, a questão Negra correspondia à própria questão da escravatura — a luta entre os escravizados Negros e os proprietários de escravos brancos. Com a “emancipação” dos escravizados e a consequente integração dos povos Negros no sistema capitalista, bem como com a crescente diferenciação de classes no seio da população Negra, a questão Negra assume forma de uma questão de caracter nacional. O conteúdo socioeconómico da questão Negra contemporânea nos Estados Unidos consiste, por um lado, nos esforços violentos dos imperialistas para, através da opressão nacional, travar o desenvolvimento económico e cultural dos Negros e perpetuar formas de exploração de semiescravatura, como as que persistem na agricultura do Sul assegurando assim as bases para a super exploração dos trabalhadores Negros em todo o país; e por outro lado, reside na luta das massas Negras contra a opressão nacional e pela igualdade — objetivos que apenas poderão ser plenamente alcançados através da luta revolucionária pelo direito à autodeterminação dos Negros da Cintura Negra (Black Belt).
A raça, enquanto conceito da ciência nacional — ou seja, um conceito extra-histórico — não exerce qualquer influência sobre o desenvolvimento dos povos nas sociedades contemporâneas estruturadas em classes. Os esforços dos teóricos burgueses “da raça” em transplantar artificialmente uma categoria das ciências naturais para a esfera dos fenómenos sociais representam apenas uma tentativa de fornecer um pretexto pretensamente “científico” à política colonialista nacional. No entanto, as falsas teorias uma vez enunciadas desempenham um papel significativo. Elas contribuem para o isolamento e a segregação das massas das nações oprimidas em relação às massas das nações opressoras, possibilitando assim a manutenção do atraso económico e cultural dos povos oprimidos e, por essa via, facilitando a sua superexploração. Por conseguinte, as ideologias raciais oferecem à burguesia das nações opressoras os meios para aprofundar e perpetuar a opressão nacional dos povos mais fracos.
O Imperialismo, enquanto sistema cuja principal motivação reside na superexploração e opressão dos povos atrasados e fracos, recorre inevitavelmente a todos os instrumentos que lhe permitam prolongar essa condição essencial à sua existência. As diferenças físicas exteriores entre os povos opressores e os povos oprimidos são exploradas pelos imperialistas da mesma maneira que recorrem às diferenças linguísticas e religiosas. Por exemplo, a política da burguesia nacional imperialista norte-americana em relação aos Negros procura justificar-se através dos dogmas das pretensas raças superiores e inferiores. Por essa razão, a ideologia da burguesia americana dirigida aos Negros assume a forma de uma ideologia racial, e os antagonismos internos manifestam-se como antagonismos raciais. Os conflitos que rebentam, decorrentes das contradições imperialistas, são apelidados como motins “raciais”, guerra de “raças”, etc..
Torna-se, assim, perfeitamente evidente que a raça, enquanto ideologia, desempenha um papel de grande relevância na opressão nacional exercida sobre os Negros nos Estados Unidos. Desta perspetiva, deve reconhecer-se que a raça se torna um fator relevante da questão nacional.
Mas seria absolutamente errado atribuir, com base nesse facto, a uma ideologia, a importância de uma questão social em si mesma. Fazê-lo seria equivalente a reduzir a questão nacional a apenas um dos seus fatores. Concretamente seria comparável a reduzir a questão Negra, uma questão social, a uma mera questão de ideologia racial, ou seja, a apagar as suas raízes socioeconómicas da questão e, em última instância, a capitular perante as teorias raciais burguesas.
É precisamente este o erro cometido pelos camaradas que caracterizam a questão Negra nos Estados Unidos como “questão racial”, em oposição a uma questão nacional. Confundidos pela proeminência do fator racial nas relações entre Negros e brancos, estes camaradas julgam que esta relação não pode ser explicada à luz da teoria Marxista-Leninista sobre a questão nacional. Por isso, sentem a necessidade de introduzir “melhoramentos” aos ensinamentos de Marx e de Lenine sobre a questão dos povos oprimidos criando uma nova categoria, a conceção da “raça” como uma questão “social”. Desta forma alinham com a ideologia burguesa que procura transpor o conceito biológico de raça para a esfera dos fenómenos sociais, acabando por reduzir a questão Negra a uma mera questão ideológica. Estes camaradas ao atribuírem um peso desproporcionado ao fator “raça” nas relações entre brancos e Negros nos Estados Unidos, acabam inevitavelmente por concordar, em termos práticos, com os liberais que encaram a questão Negra não como uma questão fundamentalmente socioeconómica cujas raízes materiais residem na disparidade económica e cultural entre Negros e brancos no contexto de uma sociedade de classes, mas sim como uma questão que emerge de uma suposta “perversidade natural” inerente à natureza humana e que poderia ser ultrapassada pela educação.
Como os comunistas aderentes às teorias da “raça” reduzem o movimento de libertação negro a uma oposição bruguesa débil
Politicamente, a defesa da tese segundo a qual a questão Negra é uma questão “racial” implica uma profunda subestimação das poderosas forças económicas e sociais que estão na base do movimento Negro e, consequentemente, uma subestimação das suas potencialidades revolucionárias.
Este facto revela-se de forma clara nos escritos dos mais destacados defensores desta posição. Por exemplo, o artigo acima referido, da autoria do camarada Huiswood, partindo dessa premissa insustentável, procura fundamentar a sua posição criando diferenças, obviamente inexistentes, entre os Negros de África e os das Caraíbas por um lado e entre os das Caraíbas e os dos Estados Unidos por outro. Escreve:
É importante que distingamos a situação das massas Negras nas colónias — em África e nas Caraíbas — e nas semicolónias, como o Haiti e a Libéria, que sofrem a exploração colonial, da situação dos Negros na América, uma minoria racial sujeita a perseguição e exploração racial. (???)
Devemos ter em consideração o caracter colonial e nacional da questão Negra em África e nas Caraíbas e o caracter racial (?) da questão nos Estados Unidos (Pontos de interrogação da minha autoria Harry Haywood).
Apesar da terminologia confusa que emprega, é claramente evidente que o camarada Huiswood procura sustentar a existência de uma diferença fundamental na natureza da exploração e opressão dos Negros dos Estados Unidos e a dos Negros de África e das Caraíbas. Vejamos os factos. Já indicamos que a política colonial imperialista tem como objetivo atrasar o desenvolvimento dos povos subjugados a fim de garantir a extração de superlucros. É, portanto, evidente que a exploração colonial não significa outra coisa senão a extração destes superlucros, os quais, por sua vez, só podem ser obtidos mediante uma política de opressão política, ou seja., através da opressão nacional — ou como prefere o Camarada Huiswood através da “perseguição racial”. A questão que naturalmente se coloca é a seguinte: estará o camarada Huiswood a sugerir que os imperialistas americanos não obtêm superlucros da exploração dos Negros americanos? Basta considerarmos como vive o campesinato Negro, observarmos a disparidade entre o salário médio dos trabalhadores brancos e dos trabalhadores Negros, bem como a percentagem de trabalhadores especializados entre brancos e Negros para concluirmos da existência os enormes superlucros resultantes da exploração dos trabalhadores Negros nos Estados Unidos. Qual será, então, o sentido das vividas descrições das miseráveis condições de vida dos Negros feitas pelo camarada Huiswood, bem como da sua denúncia dos salários baixos, do sistema de peonagem e dos ceifeiros, etc., senão o de corroborar a nossa tese? E se for verdade, como dissemos, que nos Estados Unidos são extraídos enormes superlucros da exploração dos Negros, estão parece evidente que a natureza da sua opressão e exploração não difere da natureza da exploração e opressão a que estão submetidos os Negros de África e das Caraíbas. Os Negros dos Estados Unidos são uma minoria nacional oprimida, ou seja, uma “colónia interna” do imperialismo americano.
Assumir que existe uma diferença de natureza entre a exploração das minorias nacionais e a dos povos coloniais é não perceber os ensinamentos de Lenine sobre a questão nacional-colonial. O facto de a exploração variar em intensidade — por exemplo, os Negros nos Estados Unidos não serem tão intensamente explorados quanto os Negros do Congo — explica-se principalmente pelos diferentes níveis de desenvolvimento económico e cultural das populações Negras de ambos os países, e não por uma natureza diferente da sua exploração. Por conseguinte, insistir em que os Negros nos Estados Unidos não são sujeitos a uma exploração de natureza colonial é “esquecer” a situação dos ceifeiros e dos trabalhadores sujeitos ao regime peonagem do sul do país, as miseráveis condições dos trabalhadores Negros em todo o país, e fazer o jogo da reação burguesa.
Por isso vemos que as tentativas do camarada Huiswood para sustentar a sua tese de que a questão Negra nos Estados Unidos é uma questão “racial” conduzem inevitavelmente à negação da base material do movimento de libertação Negro. Não é, portanto, de estranhar que o camarada Huiswood chegue à conclusão lógica de que no que concerne à questão Negra “o seu único aspeto distintivo é a sua origem racial”.
Não é óbvio que qualquer imperialista interessado em ocultar as raízes económicas e de classe da questão Negra concordaria imediatamente com tal formulação?
Não entraremos aqui na análise detalhada de outros erros flagrantes contidos no artigo do camarada Huiswood, como a sua total incompreensão das características que definem uma nação — entre as quais inclui “maioria da população e comunas organizadas” (?!?) seja lá o que isto queria dizer — ou a sua omissão da questão camponesa, por de trás da qual se vislumbra a velha conceção oportunista de Lovestone-Pepper sobre a liquidação do campesinato Negro por via da migração e da industrialização. Tudo isto revela apenas que os “aspetos internacionais da questão Negra” tal como formulados pelo camarada Huiswood divergem profundamente da linha definida pelo Comintern.
Para uma exposição mais da posição que sustenta que a questão Negra nos Estados Unidos é uma questão “racial” em oposição à sua definição enquanto questão nacional, é necessário recorrer ao camarada Sheik. Indubitavelmente, o camarada Sheik, nos seus múltiplos artigos e teses dedicados à questão “racial”, conquistou o título do maior teórico desta linha de pensamento.
Os principais pontos de vista deste camarada foram apresentados no artigo intitulado “Para a Questão do Problema Negro nos Estados Unidos” (Revolutionary East, Nº 7, 1929). A sua posição pode ser resumida no seguinte argumento central. Escreve o camarada Sheik:
Não podemos falar de antagonismos nacionais entre brancos e Negros nos Estados Unidos, no sentido ordinário dos termos, porque os Negros americanos não constituem uma nação. Entre eles, verifica-se uma completa ausência de uma língua nacional e de uma cultura nacional; além disso, nos seus conflitos com os americanos brancos, estão completamente ausentes quaisquer interesses económicos fundamentais bem como qualquer traço de antagonismo nacional. O que se observa são dois sistemas económicos que se encontram em estádios de desenvolvimento socioeconómico diferentes.
Esquecendo por um momento, a questão da língua e da cultura, deter-nos-emos no argumento principal do camarada Sheik, que se encontra resumido na última frase. Nela o camarada Sheik reduz a questão fundamental da essência económica do nacionalismo à contradição esquemática e não-Marxista entre dois “sistemas económicos que se encontram em estádios de desenvolvimento socioeconómico diferentes”. Esta formulação da questão é totalmente incorreta do ponto de vista metodológico. É difícil compreender como, em plena época do Imperialismo, alguém que se reivindique marxista, possa referir-se, sem qualquer explicação quanto à sua natureza concreta, a “dois sistemas económicos que se encontram em estádios de desenvolvimento socioeconómico diferentes”. Dado que Sheik não especifica quais seriam esses dois sistemas, seria presumido da nossa parte assumir que ele pretendeu dizer outra coisa do que aquilo que escreveu. Contudo, é evidente, que só alguém completamente incapaz de perceber as especificidades da atual época imperialista poderia falar de forma tão categórica.
O Leninismo ensina-nos que a época do imperialismo, ou do capital financeiro, se distingue, entre outras características, pela penetração das relações capitalistas nas regiões mais remotas do globo, e pela integração dos povos mais atrasados na esfera das relações de mercados internacionais, ou seja no interior do sistema imperialista. Nas colónias, ou entre os povos atrasados, não estamos perante dois sistemas económicos em diferentes estádios de desenvolvimento socioeconómico, mais sim diante do entrelaçamento de múltiplas formas socioeconómicas — primitivas, tribais, feudais, esclavagistas, etc. — com as relações capitalistas, todas subordinadas ao capital financeiro. Fica claro que não existem compartimentações estanques entre as várias formas socioeconómicas, muito menos na atualidade. Existe apenas um único sistema económico — o sistema imperialista — que inevitavelmente subordina, preserva e instrumentaliza todas as formas pré-capitalistas na pilhagem e exploração dos povos subjugados. Naturalmente, existem diferenças nos níveis económicos e culturais entre os povos opressores e os povos oprimidos, mas tal não significa, como Sheik obviamente sugere, a existência de dois sistemas económicos distintos.
Visto sob esta perspetiva, o fundamento socioeconómico do antagonismo nacional entre povos opressores e povos oprimidos não reside numa contradição entre dois sistemas económicos distintos, mas é antes o resultado das desigualdades económicas e culturais entre opressores e oprimidos, que, sob o imperialismo, se converte numa contradição entre, por um lado, o capital financeiro, — que preserva e utiliza todas as formas pré-capitalistas na super exploração e opressão dos povos atrasados — e, por outro, o desenvolvimento económico independente desses povos. É evidente que é precisamente aí que reside a base económica do antagonismo entre a população Negra a população branca nos Estados Unidos, ou seja, na contradição entre o capital financeiro — que preserva e utiliza uma forma de semiescravatura na exploração das massas Negras na agricultura sulista e que, por essa via garante as condições para a super exploração dos trabalhadores Negros de todo o país — e o desenvolvimento económico e cultural da população Negra. Deste modo, os resquícios do esclavagismo presentes na agricultura do sul constituem uma parte integrante do sistema imperialista. Torna-se, assim, evidente que, ao negar a existência de um antagonismo nacional vivido pela população Negra, Sheik nega simultaneamente o conteúdo económico da questão Negra.
É necessário também declarar que a afirmação de Sheik de que os Negros não possuem uma cultura própria é absolutamente infundada. Já referimos que os Negros possuem uma cultura que reflete todo o seu desenvolvimento histórico enquanto povo nos Estados Unidos. No que toca a uma língua separada (e é a isso que Sheik se refere quando fala sobre uma “língua nacional”), esse não é um dos pré-requisitos de uma nação. “Uma língua comum é essencial a cada nação, mas uma língua diferente para cada nação não é necessária” (do panfleto Marxismo e a Questão Nacional, Estaline).
Em suma, não surpreende que Sheik, ignorando os poderosos fatores socioeconómicos que estão na base da questão Negra nos Estados Unidos chegue a uma definição puramente subjetiva da questão Negra. Ele diz por exemplo:
“A questão racial existe como questão social graças às diferenças físicas entre povos e ao facto de que os preconceitos raciais nascidos dessas diferenças são muitas vezes utilizados pela classe exploradora para garantir e reforçar a sua posição privilegiada” (itálicos meus — H.H.)
De acordo com este texto a questão Negra não tem origem nas disparidades de desenvolvimento económico e social entre Negros e brancos, nem na política do imperialismo americano que visa perpetuar estas disparidades — ou seja bloquear artificialmente o desenvolvimento económico e cultural da população Negra como condição para a obtenção de superlucros — mas, pelo contrário, resulta das “diferenças físicas entre Negros e brancos e dos preconceitos a que dão origem”. Por outras palavras a questão Negra é uma questão e “preconceitos raciais” e de “diferenças físicas”. Na verdade não constitui esta formulação uma completa capitulação perante as teorias raciais burguesas e um acordo objetivo com os Liberais? Mas deixamos ao próprio camarada Sheik tirar as suas próprias conclusões políticas. Mais à frente escreve:
“Não estando verdadeiramente ligado por laços internos e separada das raças dominantes apenas por divisões raciais artificiais e pela opressão racial derivada dessa forma, uma minoria racial não revela necessariamente na sua ideologia os traços que são característicos da ideologia das nações oprimidas. Os principais traços determinantes da ideologia dessa minoria não são a aspiração à separação e independência, mas pelo contrário a aspiração à mistura e à fusão, visando a completa igualdade social” (Itálico meu — H.H.).
Desta forma, priva-se o movimento de libertação Negro de todo o seu conteúdo revolucionário e transforma-se numa luta pela igualdade social, não no sentido revolucionário — que, no Sul, apenas pode significar o direito à autodeterminação e à independência — mas antes no sentido liberal-reformista do termo, ou seja, uma “luta” contra “preconceitos raciais” e “divisões raciais artificiais”. Torna-se evidente que são apenas os liberais que contrapõem à reivindicação de independência a reivindicação de igualdade social. São precisamente eles que espalham a ilusão de que a luta pela igualdade social não é uma luta contra os próprios alicerces do imperialismo — uma luta cuja consequência é a independência nacional dos Negros na zona do Black Belt — mas uma luta contra a superestrutura da ideologia racial e do preconceito racial, uma luta completamente divorciada das suas raízes económicas. Consequentemente, de acordo com eles, os objetivos dessa luta podem ser atingidos no âmbito do sistema capitalista sem luta revolucionária. E, como vemos, é precisamente a essa posição que, objetivamente, se resume a perspetiva de Sheik.
Como os teóricos comunistas defensores da teoria da raça transformam lenine num burguês liberal
Pelo exposto acima, é manifestamente evidente, que os erros cometidos pelos dos expoentes teóricos comunistas da “raça” estão inseparavelmente ligados a — e decorrem de — uma abordagem essencialmente liberal e antimarxista à ampla questão nacional. Não é, pois, surpreendente; pelo contrário é natural que esta abordagem antimarxista não esteja confinada ao movimento nacional dos Negros norte-americanos mas se manifeste igualmente relativamente aos movimentos nacionalistas em geral. O camarada Sheik avança com um dos seus argumentos teóricos mais fortes:
“Entre os Negros americanos não existe nenhuma burguesia industrial desenvolvida, tolhida no seu desenvolvimento económico, a sua luta (pelo seu desenvolvimento natural), pela conquista de mercados nacionais e pela remoção de obstáculos ao progresso económico, pode conferir a estes movimentos nacionais um caracter progressista” E pergunta a seguir “Onde se encontra então a necessidade de mercados de que falava Lenine? Onde então se encontra a necessidade de remoção de todos os obstáculos? (Itálico meu — H.H.).
Sheik, evidentemente, considera que apenas a luta da burguesia industrial por mercados pode conferir aos movimentos nacionalistas um carácter progressista. Se assim for, então não só movimento dos Negros nos Estados Unidos, como o dos povos Negros de África em grande parte de África, não poderiam ser considerados progressistas, dado que a burguesia industrial, tanto entre os Negros americanos como em grande parte de África, é praticamente inexistente.
É, por outro lado, evidente que tais argumentos nada têm em comum com o Marxismo. Sheik invoca Lenine em vão, porque nunca, em parte nenhuma, Lenine reduziu o movimento nacional revolucionário à luta da burguesia industrial por mercados. Pelo contrário Marx, Engels e Lenine sempre sustentaram que que a força do movimento nacional burguês (mesmo no período de declínio do feudalismo) residia essencialmente na luta do campesinato. A base campesina dos movimentos nacionalistas foi sempre para os marxistas a base revolucionária da questão nacional — o pré-requisito para a luta empreendida pelas camadas mais baixas das massas populares por uma solução revolucionária que derrubasse as grilhetas da barbara exploração medieval e lhes proporcionasse liberdade politica e nacional. A este propósito Lenine escreveu:
Típico do primeiro período (i.e. da época clássica do nascimento dos movimentos nacionalistas, H.H.) é o despertar do movimento nacional, qua atrai a si o campesinato, a camada mais numerosa e a mais inerte da população, com vista à obtenção da liberdade política em geral e do direito à nacionalidade em particular (Lenine Works, Volume XIX, página 90).
O Marxismo revolucionário sempre reconheceu a existência de duas táticas — ou, pra ser mais preciso, de duas linhas estratégicas — no processo de luta contra a opressão nacional; por um lado a linha das massas populares, que corresponde a uma luta consequente por uma solução revolucionária da questão nacional; por outro, a linha da burguesia nacional, que tende para a conciliação com as forças da reação e para a traição às massas populares. Qualquer outro ponto de vista está condenado a levar-nos a uma abordagem menchevique dos movimentos nacionalistas. Estas duas linhas tornam-se cada vez mais evidentes na medida em que se intensifica a luta de classes no seio da nação oprimida e nos tempos atuais — na época do imperialismo —, a burguesia nacionalista, nos mais importantes países colonizados, já desertou do campo dos movimentos de libertação nacional. A questão nacional torna-se cada vez mais uma questão camponesa.
Estaline, formula de forma admirável as mudanças ocorridas na questão nacional:
“Atualmente a essência do problema nacional é a luta das massas populares das colonias e das nacionalidades subjugadas contra o capital financeiro, contra a escravização política, e contra a opressão cultural exercida pela burguesia imperialista das nações dominantes. Que importância pode ter a luta concorrencial da burguesia das várias nacionalidades nesta formulação da questão nacional? É claro que não tem importância decisiva e, nalguns casos, não tem mesmo qualquer importância. É evidente que não se trata, sobretudo, de saber se a burguesia de uma nacionalidade consegue derrotar a concorrência da burguesia de outra nacionalidade, mas sim de que que o grupo imperialista da nação dominante explora e oprime, acima de tudo, as massas populares e principalmente os camponeses das colónias e das nacionalidades subjugadas e que ao explora-las e oprimi-las, as impele para a luta contra o imperialismo, tornando-as nossas aliadas na revolução proletária” (Itálicos meus — H.H., Bolshevik, Nº 11 e 12, traduzido do russo).
Isto é exatamente o oposto do que Sheik defende. Os movimentos nacionais, na época do imperialismo, estão intrinsecamente ligados à luta do socialismo contra o capitalismo. A questão nacional é essencialmente uma “questão camponesa”. “A questão camponesa está na raiz da questão nacional”. Sheik elimina a luta do campesinato Negro e, desta forma, despoja os Negros de uma poderosa força revolucionária chegando assim a um acordo de princípios com os reformistas e os liberais.
Do exposto acima fica claro que a suposta questão racial, tal como concebida por Sheik e outros, não passa da velha teoria burguesa da raça revestida com a terminologia Marxista e que, como tal, representa simultaneamente — quer do ponto de vista metodológico e, consequentemente, teórico, quer do ponto das conclusões políticas — o abandono completo do campo do Marxismo revolucionário para se abrigar no campo do liberalismo burguês. Sheik ficou completamente enredado nas teias da ideologia burguesa, nomeadamente, devido à sua incapacidade de entender a questão nacional do ponto de vista Marxista-Leninista.
É indiscutivelmente que a teoria marxista exige sempre uma análise histórica e económica concreta dos problemas sociais. Aplicada à situação dos Negros nos Estados Unidos, tal exigência significa o tratamento da questão dentro de limites históricos definidos. É necessário definir o período histórico concreto de desenvolvimento em que se encontram atualmente os Negros dos Estados Unidos.
A América do Norte assistiu a duas revoluções burguesas: a Guerra da Independência (1775–81) e a Guerra Civil (1861–1865). A primeira revolução obteve a independência das colonias da potência colonizadora, a Grã-Bretanha. Contudo, dada a debilidade do desenvolvimento capitalista no país, não foi possível avançar de forma consistente contra os elementos pré-capitalistas existentes. Com efeito, as indústrias do Norte baseavam o seu desenvolvimento na escravatura. “Sem a escravatura” escreve Marx, “a América do Norte, o país mais avançado do mundo, ter-se-ia transformado num sistema patriarcal” (A Miséria da Filosofia).
Só muito maus tarde é que o esclavagismo se tornou um verdadeiro obstáculo ao desenvolvimento capitalista. As contradições entre os dois sistemas só se resolveram com a Guerra Civil. Esta, pela sua natureza económica e social, constituiu uma revolução burguesa: a luta entre os proprietários de escravos do Sul e a burguesia industrial do Norte. Tratou-se de uma luta da burguesia do Norte pela conquista do poder estatal total, pelo estabelecimento de um estado capitalista que respondesse plenamente às necessidades do desenvolvimento do capitalismo e pela unificação do país sob o domínio da burguesia industrial. Naturalmente, tal objetivo exigiu o derrube do poder da oligarquia dos proprietários de escravos e a destruição do esclavagismo como sistema.
No decurso desta luta os escravos foram emancipados. A burguesia do Norte, apoiando-se nos Negros libertos e utilizando-os como aliados estabeleceu uma ditadura revolucionária nos territórios conquistados com o objetivo de consolidar os ganhos da Revolução (o denominado Período da Reconstrução). Para reforçar a sua base social de apoio, foram garantidos aos Negros plenos direitos democrático-burgueses — direito de voto, direito de ser eleito, entre outros — consagrados através da aprovação das Emendas constitucionais números 13, 14 e 15, as quais, por sua vez, estavam apoiados por milícias Negras especialmente constituídas e por tropas do exército federal do Norte.
Contudo, a burguesia do norte foi incapaz de levar a revolução até às últimas consequências. Não conseguiu concluir a expropriação dos antigos proprietários de escravos, nem distribuir essas terras aos Negros. Tornou-se inevitável que os “direitos” das massas Negras tivessem curta duração. A burguesia do Norte desertou das fileiras das massas Negras e rapidamente se aliou aos destronados latifundiários do Sul.
Os Negros covardemente abandonados pelos seus antigos aliados e mergulhados na pobreza, permaneceram sem terras e ficaram à mercê dos latifundiários reacionários. Foram rapidamente privados dos direitos políticos que haviam conquistado recentemente e forçados a uma condição de servidão semifeudal nas terras dos seus antigos amos.
Assim, a revolução acabou num aborto. Os seus resultados podem ser resumidos da seguinte forma: destruiu a escravatura e eliminou as bases do antigo sistema de plantação, criando, assim, as condições para o desenvolvimento do capitalismo em todo o país. Contudo, na medida em que a abolição da escravatura não foi acompanhada pela divisão das terras pelas massas Negras, estabeleceu-se, nos territórios do sul, o mesmo tipo de relações de produção que surgiu, depois do derrube do feudalismo, em certas regiões da Europa — o sistema semifeudal dos rendeiros. Sobre este tema, Lenine criticou corretamente o economista pequeno-burguês Himmel, que defendia que os Estados Unidos não tiveram feudalismo nem os seus resquícios económicos. Lenine respondeu a esta tese afirmando “os resquícios do feudalismo não diferem em nada dos resquícios do esclavagismo no sul; estes resquícios são muito fortes e subsistem até hoje” (O desenvolvimento da agricultura nos Estados Unidos — traduzido do russo).
A revolução agrária inacabada, expressa na preservação dos resquícios da escravatura na economia do Sul, teve como contrapartida política a revolução burguesa incompleta — no que aos Negros diz respeito —, facto refletido na negação dos direitos democráticos às massas Negras.
Do que ficou exposto acima, torna-se evidente que, no que concerne ao povo Negro, levar até ao fim a revolução democrático-burguesa e a reforma agrária continua a ser, historicamente, uma tarefa na ordem do dia.
Ao deixar inacabada a revolução democrática-burguesa e a reforma agrária e, simultaneamente, ao possibilitar o desenvolvimento da diferenciação de classes entre os Negros, a Guerra Civil criou as bases económicas e sociais da questão nacional Negra, cujos principais pré-requisitos objetivos, se encontram no território da Cintura Negra (Black Belt). As lutas das massas Negras evoluíram de lutas dos escravos contra os esclavagistas para lutas entre os “libertados” contra os latifundiários e os capitalistas, enfrentando as formas combinadas de exploração capitalista e semiesclavagista, bem como de opressão nacional e, lutando pela democracia burguesa completa, ou seja, pela igualdade social e económica cuja expressão mais elevada reside na luta pela autodeterminação. Os trabalhadores Negros, anteriormente aliados da burguesia do norte e traídos por esta durante o período da Reconstrução, tornaram-se agora aliados potenciais do proletariado.
Na época do Imperialismo, os Negros deixaram de constituir uma massa praticamente homogénea e indiferenciada de camponeses, como sucedia no período imediatamente subsequente à Guerra Civil, tendo-se formado no seu seio um proletariado relativamente numeroso e um estrato igualmente considerável de pequena-burguesia e de intelectuais, bem como o embrião — ainda que não claramente definido — de uma burguesia. Estes desenvolvimentos, ocorridos no quadro de opressão nacional — opressão que na época do imperialismo, se intensifica significativamente —, reforçam e acentuam a tendência dos Negros para a emancipação política.