Entrevista ao jornal The Call

Ieng Sary

1978


Primeira edição: entrevista publicada em três números consecutivos do The Call, em 1978. Os capítulos correspondem, respectivamente, às edições: vol. 7, n.º 33 (28 de agosto); vol. 7, n.º 34 (4 de setembro); vol. 7, n.º 35 (11 de setembro).

Fonte para a tradução: seção inglesa do Arquivo Marxista na Internet.

Tradução: Rick Magalhães de Sá.

HTML: João Batalha.

Creative Commons


I. Como o Kampuchea fez sua Revolução

Este é o oitavo de uma série de artigos escritos pelos jornalistas do The Call que visitaram o Kampuchea Democrático (Camboja), em abril. Eles foram os primeiros americanos a visitarem o país desde sua libertação em 1975.

★ ★ ★

O momento mais marcante de nossa visita ao Kampuchea ocorreu no dia anterior à nossa partida. Ieng Sary, Vice-Primeiro-Ministro responsável pelas relações exteriores, nos concedeu uma entrevista. Ele nos explicaria as respostas para inúmeras perguntas que levantamos sobre a história da revolução no Kampuchea e sobre seu atual estado de desenvolvimento.

Quando chegamos à casa onde aconteceria a reunião, Sary estava nos esperando do lado de fora. Dispensando todas as formalidades, ele veio até nosso carro, abraçando cada um de nós enquanto saíamos.

O jeito caloroso e jovial de Sary desmentia as muitas experiências de vida amargas que ele tinha passado. Agora com 48 anos, Sary foi um dos fundadores do Partido Comunista do Kampuchea (PCK) e foi guerrilheiro no campo entre 1963 e 1970. De 1970 até a vitória da revolução, em 1975, ele viajou pelo mundo como enviado especial do governo da frente unida, empenhando-se para conquistar apoio internacional para a guerra de libertação do Kampuchea.

Com o mapa do Kampuchea aberto à sua frente e com uma xícara de chá do lado, Sary começou a nos contar a história da revolução no Kampuchea passo a passo, ponto a ponto. Seria meia-noite quando ele encerrasse a história, tendo respondido pacientemente a todas as nossas perguntas.

COMPARTILHANDO EXPERIÊNCIAS

“Nos dias em que vocês estiveram aqui”, começou Sary, “aprendemos muito sobre as lutas do povo americano e o movimento revolucionário em seu país. Hoje, compartilharemos com vocês algumas de nossas experiências em nossa revolução. Seu Partido é jovem e sua revolução está apenas por começar. Embora estejamos convictos de que vencerão, também sabemos que vocês enfrentarão muitas das mesmas dificuldades que enfrentamos no início de nossa luta”.

“Talvez o que eu tenha a dizer seja útil para você. Claro, isso não é uma teoria ou uma doutrina. Estas são apenas as experiências que tivemos sob as condições do nosso país”.

Após suas observações introdutórias, o Vice-Primeiro-Ministro entrou diretamente na história da revolução, começando pela revolta em massa que ocorreu depois da derrota do governo fantoche aliado aos japoneses em 1945.

Com o Japão derrotado, os colonialistas franceses que governaram o Kampuchea durante gerações retornaram. O povo odiava amargamente os colonialistas franceses e a luta contra eles começou a ocorrer em diversas frentes.

Diferentes forças queriam enfrentar os franceses, disse Sary, e todas tinham abordagens diferentes. Dentro do movimento nacionalista (que era composto principalmente por capitalistas nacionais, intelectuais e elementos pequeno-burgueses), havia um grande apoio pela luta anticolonial. Mas não era um compromisso firme. Essas forças repetidamente faziam acordos secretos com os franceses.

O Partido Comunista da Indochina também existia no Kampuchea nessa época, mas era composto exclusivamente por quadros vietnamitas. Ele apoiou e liderou a luta armada contra os franceses.

Havia também organizações revolucionárias do povo cambojano que começaram a travar a luta armada já em 1947. Mas não havia ainda nenhuma liderança marxista-leninista para o movimento.

“A principal tarefa nessa fase”, disse Sary, “era conquistar nossa independência nacional da França”. Mas também se desenvolveram contradições entre os anti-imperialistas cambojanos e os vietnamitas no Partido Comunista da Indochina, embora ambos os movimentos fossem solidários.

Como exemplo dessas contradições, pontuou Sary, “o Vietnã treinou seus quadros nessa época na crença de que os três países da Indochina eram realmente um país e deveria ter apenas um Partido. Nós não concordamos”.

Apesar dessas contradições, a luta anti-imperialista continuou avançando. Dezenas de milhares de cambojanos morreram lutando contra os imperialistas franceses neste período. Finalmente, o acordo de paz de Genebra foi estabelecido em 1954, supostamente garantindo a independência do Kampuchea, Laos e Vietnã. No Kampuchea, o príncipe Sihanouk chegou ao poder depois de Genebra.

LUTA ARMADA

Na década de 1950, muitos dos principais elementos da luta de libertação do povo cambojano começaram a estudar o marxismo-leninismo e o Pensamento Mao Zedong. Eles rejeitaram a ideia de “transição pacífica para o socialismo” proposta por Kruschev, no discurso de 1956. Suas próprias experiências mostraram-lhes que, sem a luta armada, o povo não poderia sair vitorioso.

Ieng Sary observou que havia uma intensa luta ideológica sobre esta questão. Os líderes vietnamitas, disse ele, se opuseram à linha de Kruschev sobre “transição pacífica” no que diz respeito ao Vietnã e corretamente insistiram que a luta armada era necessária para libertar seu país e estabelecer o socialismo. Mas, disse Sary, alguns líderes do Partido dos Trabalhadores do Vietnã argumentaram simultaneamente que a luta armada não era necessária no Kampuchea. Eles disseram que o socialismo poderia surgir pacificamente no Kampuchea devido à postura progressista e neutralista tomada pelo príncipe Sihanouk.

Embora reconhecessem muitas áreas de possível unidade com Sihanouk, os revolucionários cambojanos acreditavam que, para libertar o país da dominação estrangeira de uma vez por todas, acabar com o feudalismo e o capitalismo e estabelecer um sistema socialista, uma luta armada seria indispensável. Eles acreditavam que não se preparar para a luta armada era abrir o caminho para a matança.

Mesmo enquanto a questão da luta armada estava sendo debatida, as forças do povo cambojano estavam enfrentando uma forte repressão. Mais de 80% dos 4.000 quadros do movimento revolucionário que lutaram contra os franceses foram exterminados na década de 1950. Sary acrescentou que, em 1958, o líder deste movimento, que tinha sido treinado no Vietnã, efetivamente passou para o lado do governo. Ele traiu as forças revolucionárias e organizou execuções e assassinatos de líderes revolucionários.

“Depois dessa traição”, disse Sary, “sabíamos que tínhamos de nos tornar mais autossuficientes, aprofundar nossa compreensão do marxismo-leninismo e do Pensamento Mao Zedong e fundar um partido comunista próprio para organizar e liderar a luta”.

Os comunistas cambojanos, cujo círculo estava crescendo, realizaram preparativos para elaborar um programa político, fazer uma análise de classes da sociedade cambojana e estruturar o Partido organizacionalmente.

“A repressão foi muito intensificada nesse período”, disse Sary. “Tínhamos pouquíssima experiência. Não tínhamos dinheiro. Fomos secretamente à embaixada soviética em Phnom Penh para pedir um empréstimo de 10.000 riéis (cerca de US$ 160) para começar a publicar um jornal”.

“Mas o embaixador Soviético nos atacou. Nos chamou de ultra-esquerdistas e disse que só Sihanouk poderia liderar a revolução. Disse-nos para nunca mais voltarmos”.

Para os cambojanos, essa experiência apenas confirmou a necessidade de autossuficiência e, especialmente, expôs o fato de que a URSS era uma força contrarrevolucionária que não podíamos contar com o apoio.

“Esperávamos realizar um congresso de fundação em 1959”, continuou Sary. “A repressão foi tão severa, porém, que isso se provou impossível. Saíamos de casa todos os dias pela manhã e não sabíamos se voltaríamos vivos à noite”.

“Finalmente, em 1960, conseguimos reunir todos os representantes para fundar o Partido. Ficamos reunidos por três dias, de 28 a 30 de setembro, em um edifício ferroviário abandonado aqui em Phnom Penh. Nossa segurança tinha que ser extremamente rigorosa, e ninguém podia entrar ou sair durante a reunião”.

O congresso conseguiu fundar o Partido, adotar uma constituição e eleger um Comitê Central.

“Tínhamos adotado a posição correta sobre a necessidade absoluta de luta armada”, disse Ieng Sary. “Mas ainda tínhamos muito trabalho ideológico a fazer sobre essa questão. Precisávamos conscientizar os membros do Partido de que as lutas por reformas – por terra, direitos democráticos, melhores condições de vida, etc. – eram muito importantes, mas não poderiam nos dar o poder. Somente a luta armada, liderada pelo Partido, poderia colocar o poder político em nossas mãos”.

Em 1963, os líderes do PCK perceberam que não podiam mais permanecer em Phnom Penh devido à repressão política e ao crescente poder da ala direitista da classe dominante de Lon Nol.

“Saímos de Phnom Penh e fomos para o interior do nordeste, na província de Ratanakiri”.

II. “Somos capazes de inspirar o povo”

Esta é a nona de uma série de artigos escritos pelos jornalistas do The Call que visitaram o Kampuchea Democrático (Camboja) em abril. Foram os primeiros americanos a visitar o país desde sua libertação em 1975.

O artigo dessa semana – uma continuação do artigo da semana passada – é baseado em uma entrevista sobre a história do Partido Comunista do Kampuchea, concedida ao The Call pelo Vice-Primeiro-Ministro do Kampuchea, Ieng Sary. O artigo da semana passada abordou os principais eventos que levaram até a fundação do PCK em 1960. Nessa semana, examinamos as experiências do Partido entre 1960 e o golpe de Estado inspirado pela CIA em 1970.

★ ★ ★

Ieng Sary nos contou que, em fevereiro de 1963, a polícia assassinou o Secretário do Partido Comunista do Kampuchea (PCK).

Um Segundo Congresso de emergência do PCK foi realizado após o assassinato do líder do Partido. Pol Pot, hoje Primeiro-Ministro, foi eleito secretário do Partido, cargo que continuou a ocupar durante a revolução.

“Depois do Segundo Congresso, começamos a reforçar nossas forças no campo de forma lenta e paciente”, disse Sary, que foi ele próprio para a primeira área de base estabelecida na Província Ratanakiri, em 1963. “Realizamos um intenso trabalho de formação entre os quadros sobre a importância de servir ao povo, ser abnegado e manter disciplina em todos os momentos. Essa formação comunista ajudou os membros do Partido a atravessar tempos muito difíceis posteriormente”.

Sary descreveu algumas de suas experiências próprias naqueles dias, dizendo: “Vivíamos na floresta e não tínhamos nenhum suprimento real de alimentos. Dependíamos dos homens das tribos locais — pertencentes a nacionalidades minoritárias e guerreiros muito resistentes — para nos trazer comida das aldeias. Às vezes, porém, eles eram capturados pelo inimigo, e ficávamos sem comida alguma”.

“Teríamos que nos alimentar do bambu que crescia nas florestas por uma semana ou mais. Mas sempre mantivemos a confiança. Sabíamos que esses homens das tribos jamais nos abandonariam. Mesmo sob tortura, eles não contariam nada aos reacionários sobre nossas bases”.

“Também tivemos um amplo movimento de frente unida”, disse Sary. “Mas ele não assumiu nenhuma forma organizacional definida. Apenas disseminamos a ideia de unir o povo para lutar por um Kampuchea independente, neutro e não alinhado. Com esses slogans, pudemos nos aliar a diversas forças entre a pequena burguesia, os intelectuais, os funcionários da administração e os capitalistas nacionais”.

FORÇAS DA CLASSE DOMINANTE

O Vice-Primeiro-Ministro passou a descrever as diferentes forças dentro da classe dominante do Kampuchea naquela época, indicando três grandes agrupamentos, Na extrema-direita, havia aqueles como Lon Nol, que eram completamente reacionários e meros lacaios do imperialismo estrangeiro. No centro, estava Sihanouk, o chefe de Estado, e alguns outros como ele que, embora se oponham ao comunismo, também apoiavam uma política de independência nacional genuína para o país. À esquerda, estavam pessoas progressistas como Khieu Samphan, atual presidente do Presidium do Estado, que à época era um conhecido intelectual e político. Sua posição contra o imperialismo estrangeiro foi tão firme que ele foi forçado a fugir de Phom Penh sob intensa pressão da direita.

“Mobilizamos tanto os setores centristas quanto os de esquerda da classe dominante”, disse Sary, “e construímos com eles uma frente unida contra a dominação estrangeira. Isolamos os verdadeiros traidores, como Lon Nol”.

Ao mesmo tempo, Sary destacou que o PCK acreditava que a força fundamental da frente unida tinha de ser os trabalhadores e os camponeses.

“Embora nosso Partido fosse secreto”, comentou Sary, “o povo sabia que havia um ‘movimento Khmer Vermelho’”. [Sihanouk deu o nome “Khmer Vermelho” às forças do PCK, que significa literalmente “Cambojanos Vermelhos” em francês].

“O povo sabia que nosso Partido lutava pela terra, por direitos democráticos e por melhores padrões de vida”, disse Sary. “Educamos as massas passo a passo sobre o papel da luta armada, embora ainda não tivéssemos estabelecido um exército”.

Durante esse período, o Partido criou o que ficou conhecido como “guardas clandestinos”. Essas unidades eram compostas por camponeses secretamente infiltrados na milícia do governo, que havia sido criada para manter a lei e a ordem no campo”.

DESOBEDECER ORDENS

Com um sorriso leve e irônico, Sary observou: “Quando os latifundiários ordenavam que essas milícias atacassem o povo, nossos homens se recusavam. Os guardas clandestinos desempenharam um papel importante na defesa de nossos quadros e líderes, e permitiram nossas bases se desenvolvessem”.

Por todo o interior do Kampuchea, camponeses travavam lutas espontâneas, especialmente à medida que a ala de Lon Nol da classe dominante vinha tomando cada vez mais poder de Sihanouk, aumentando a pressão econômica sobre os camponeses.

Preocupado com o avanço da rebelião entre os camponeses, Lon Nol decidiu criar um falso “movimento camponês”. Fez isso com a intenção de desviar a luta dos camponeses e, ao mesmo tempo, construir uma base rural que minasse o controle de Sihanouk sobre o governo. Ele costumava dar ordens aos seus agentes infiltrados no movimento camponês para incitar incidentes e depois dizia a Sihanouk que isso era obra dos “comunistas”, numa tentativa de impedir que se formasse uma frente unida entre o PCK e Sihanouk.

Em 1967, uma rebelião camponesa eclodiu na cidade de Samlaut, no noroeste. Centenas de camponeses armados subiram às montanhas, confiscando terras e arroz. Embora o PCK soubesse que as condições ainda não eram adequadas para o desenvolvimento da luta armada em todo o país, o Partido apoiou as justas reinvindicações dos camponeses de Samlaut.

Quando as autoridades vieram negociar com os camponeses, o PCK incentivou o governo a remover Lon Nol do cargo de Primeiro-Ministro como condição política antes de acabar com a rebelião. Sihanouk concordou com a exigência, substituindo Lon Nol pelo príncipe patriota, Penn Nouth.

Mas os agentes de Lon Nol estavam dentro do movimento camponês. Descendo das montanhas, esses agentes deram informações sobre as atividades de todos os participantes na rebelião a In Tarn, então governador da província de Battambang. Em uma trama destinada a abortar o crescente movimento revolucionário, In Tarn conspirou com Lon Nol para fazer algumas concessões aos camponeses que participaram da rebelião, enquanto massacrou todos os comunistas e forças progressistas.

PREPARANDO-SE PARA O GOLPE

“A partir de junho de 1967”, lembrou Ieng Sary, “o Partido começou a planejar a organização de um exército. Sabíamos que Lon Nol acabaria por tentar dar um golpe de Estado. Precisávamos nos preparar para essa situação”.

Em janeiro de 1968, o Exército Revolucionário começava a ganhar forma. Em 17 de janeiro, uma rebelião bem sucedida realizada pelo Partido foi feita em Bai Baram, próximo de Battambane. Nessa batalha, os guerrilheiros capturaram suas primeiras armas.

“Em 25 de fevereiro”, disse Sary, “o Comitê Central emitiu uma circular convocando insurreições em todo o país. Embora fosse uma situação muito difícil para nós, com quase nenhuma arma, nenhum médico e nenhum remédio, sabíamos que nossa linha estava correta. E assim conseguimos inspirar o povo a lutar”.

O PCK também sabia que, à medida que as contradições dentro do país aumentavam como resultado da guerra revolucionária que estavam travando, a unidade da classe dominante também se desintegraria. Reconhecendo que Sihanouk era um potencial aliado, o PCK e o Exército Revolucionário deixaram claro em todas as suas ações que estavam lutando principalmente contra os militaristas de direita, e não contra Sihanouk, embora este tenha concordado com muitos dos ataques repressivos dos militaristas.

Em um desses ataques, o exército do governo enviou 10.000 soldados contra os guerrilheiros em Ratanakiri. O ataque foi liderado pessoalmente por Lon Nol, que tinha novamente entrado no governo como Chefe de Defesa.

“Não foram apenas 10.000 soldados que enviaram contra nós”, lembrou Ieng Sary, “mas também carros blindados, aviões e artilharia. Mesmo com todo esse poder de fogo, não conseguiram nos derrotar. Vencer essa batalha nos deu muita confiança”.

No fim de 1969, tornava-se óbvio que a postura neutralista de Sihanouk não poderia ser tolerada por muito mais tempo pelos imperialistas dos Estados Unidos, que buscavam usar o Camboja como base para atacar o Vietnã. Lon Nol, por outro lado, estava perfeitamente disposto a permitir que os Estados Unidos usassem o Camboja como base de operações contra o Vietnã. Para o PCK, era uma conclusão inevitável que Lon Nol chegaria ao poder por meio de um golpe de Estado.

III. Construção socialista progredindo

Este é o décimo de uma série de artigos escritos pelos jornalistas do The Call que visitaram o Kampuchea Democrático (Camboja) em abril. Foram os primeiros americanos a visitar o país desde sua libertação em 1975.

O artigo dessa semana é a conclusão de uma entrevista em três partes com o Vice-Primeiro-Ministro do Kampuchea Ieng Sary. A primeira parte (28 de agosto) abordou a história do movimento revolucionário do Kampuchea que levou à fundação do Partido Comunista em 1960. A segunda parte (4 de setembro) cobriu o trabalho do Partido de 1960 até o golpe de Estado apoiado pelos Estados Unidos em 1970. Essa parte final traça as atividades do Partido durante a guerra de libertação até o presente.

★ ★ ★

Nossa entrevista com Ieng Sary já havia se estendido até tarde da noite, quando ele começou a falar dos eventos que se seguiram ao golpe de Estado instigado, pelos Estados Unidos, que colocou Lon Nol no poder em 18 de março de 1970.

“18 de março de 1970 até 17 de abril de 1975, foi o período de nossa guerra aberta contra a agressão norte-americana e a camarilha traidora de Lon Nol”, disse Sary. “Contamos com nossas próprias forças para travar essa guerra, capturando 80% das armas utilizadas por nossos guerrilheiros. A China também nos deu um grande apoio”.

Com vívidos detalhes, o Vice-Primeiro-Ministro do Kampuchea descreveu, batalha após batalha, como o jovem Exército Revolucionário se pôs à prova e se fortaleceu. Ele contou como o PCK estabeleceu o poder político revolucionário dos trabalhadores e camponeses nas zonas libertadas, e como o povo se uniu ao lado do Partido em todo o país.

“Previmos que o golpe de Estado viria”, disse Sary, “e isso influenciou o pensamento de muitas pessoas”. Sihanouk, o líder deposto, foi uma delas. Logo ele estaria disposto para formar a frente unida com o PCK, estabelecendo o Governo Real da União Nacional, com sua sede externa em Pequim.

“O povo odiava Lon Nol amargamente”, continuou Sary. “As grandes massas estavam prontas para lutar. Elas se uniram ao nosso Partido, ao nosso Exército e à frente unida porque víamos que estávamos na vanguarda da luta contra Lon Nol”.

Desde os primeiros dias da guerra, o Exército Revolucionário começou a libertar territórios. Grande parte do país foi libertada já em 1972.

BOMBARDEIO DOS ESTADOS UNIDOS

Com o início das negociações de paz de Paris, os Estados Unidos intensificaram temporariamente sua pressão sobre o Kampuchea. “De 27 de janeiro a 15 de agosto de 1973”, disse Sary, “os imperialistas mobilizaram todas as suas forças contra nós. Houve um cessar-fogo no Vietnã e no Laos, então os bombardeiros americanos foram direcionados contra nós”.

Mais de meio milhão de toneladas de bombas foram lançadas sobre o Kampuchea durante aqueles 8 meses, até que as persistentes vitórias militares do Exército Revolucionário, juntamente com a opinião pública mundial, finalmente forçaram Nixon a interromper o bombardeio de saturação em agosto de 1973.

Mesmo em meio a esse bombardeio sem precedentes (que os camponeses do Kampuchea chamavam de “bombardeio de arado”, porque escavava a terra por todo o campo, como um arado), o PCK começou a trabalhar estabelecendo cooperativas.

“A construção do sistema de cooperativas em 1973”, disse Sary, “foi uma questão estratégica vital para nossa revolução. Sem as cooperativas, os jovens não teriam podido lutar na fente de batalha, com a certeza de que suas famílias seriam bem cuidadas. Sem as cooperativas, o preço do arroz teria sofrido uma terrível inflação, e nossas tropas teriam tido pouco o que comer”.

“Mas, graças ao sistema de cooperativas, conseguimos mobilizar melhor todo o povo para lutar na guerra de guerrilha, resistir aos bombardeios, às ofensivas reacionárias de Lon Nol e libertar cada vez mais territórios”.

O líder do Kampuchea também discutiu alguns dos problemas que surgiram com os vietnamitas nesse período. As armas e os suprimentos que a China fornecia ao Kampuchea por meio do transporte ferroviário que passava pelo Vietnã eram, muitas vezes, desviados pelos vietnamitas, sob o argumento de que a luta no Vietnã tinha precedência sobre a luta no Kampuchea.

“Nós mesmos passamos fome para que nossos irmãos vietnamitas pudessem ter o nosso arroz”, disse Sary, “e, ainda assim, eles não nos entregaram as armas e os equipamentos que nos eram destinados”.

SOLIDARIEDADE COM O VIETNÃ

Apesar dessas contradições, o PCK continuou a manter uma resistência unida aos imperialistas americanos, junto com os combatentes da libertação vietnamita. “Nossa linha”, disse Sary, “era defender a solidariedade com o Vietnã, enquanto tratávamos a luta política e as diferenças internamente”.

No campo de batalha, vitórias se sucederam uma após a outra. A posição norte-americana em toda a Indochina estava se deteriorando rapidamente. Milhares de soldados de Lon Nol começaram a desertar, passando para o Exército Revolucionário. Apesar de alguns contratempos em 1974, mais de 90% do país foi libertado naquele ano, e o fogo de foguetes da guerrilha estava atingia o interior de Phnom Penh e das grandes cidades que representavam os outros 10%.

Em janeiro de 1975 foi lançada a grande Ofensiva do Rio Mekong (veja a parte 3 dessa série), que culminou finalmente na libertação de Phnom Penh em 17 de abril de 1975.

Sary ergueu os olhos de suas anotações e fez uma pausa. Após um breve silêncio, ele disse: “Com a libertação de todo o país em abril de 1975, a revolução democrática nacional foi alcançada. Nossa vitória foi fruto de uma análise correta da situação no nosso país e da confiança nas massas, que provaram ser a principal força de combate”.

Uma nova fase da revolução cambojana foi iniciada. O Terceiro Congresso do PCK foi convocado, estabelecendo uma nova linha estratégica e tática para a construção do socialismo no Kampuchea.

“Não descansamos um minuto sequer”, lembrou Sary. “Imediatamente começamos a trabalhar para defender o país, bem como construir e desenvolver o sistema socialista. Estabelecemos uma ditadura do proletariado e coletivizamos a riqueza nacional. Começamos a cultivar o espírito coletivista”.

Havia ainda muitas dificuldades e muitos problemas complexos a resolver. “Em 1975”, disse Sary, “fomos imediatamente confrontados com graves ameaças à segurança da revolução, tanto em termos de ataque às nossas fronteiras quanto de dentro das nossas próprias fileiras. A CIA, a KGB, os vietnamitas e outros estavam empenhados em mobilizar suas forças para um golpe de Estado contra nós”.

“Além do problema de segurança, também enfrentamos problemas muito difíceis no fornecimento de alimentos, moradia e roupas para o povo”.

“No final de 1975, o problema alimentar foi, em grande parte, resolvido, garantindo a todos uma dieta de subsistência. No entanto, a questão da segurança ainda persistia. Em abril de 1976 e novamente em setembro do mesmo ano, prendemos agentes vietnamitas e da KGB ao longo da fronteira, bem como dentro de Phnom Penh. Eles estavam conspirando para organizar um golpe de Estado contra nós”.

PROGRESSO NA AGRICULTURA

"Em 1977, mais progressos foram feitos na agricultura, e o cultivo de arroz de duas culturas foi implementado em larga escala. Poderíamos até ter exportado arroz pela primeira vez naquele ano. Mas o problema de segurança persistiu, uma vez que nossos inimigos continuaram conspirando contra nós".

"Cambojanos a serviço da CIA queriam realizar um golpe em janeiro de 1977. No fim de janeiro, esses elementos tiveram um encontro com o pessoal americano da CIA em um ponto na fronteira com a Tailândia. Um americano da CIA perguntou aos cambojanos: 'Como vocês podem instigar um golpe sendo que os vietnamitas já falharam?' Ele lhes disse para voltarem, reunirem mais forças e esperarem por abril. Em março, no entanto, prendemos esses agentes da CIA".

"Mais uma vez, em setembro de 1977, capturamos um pequeno grupo de pessoas que planejavam um ataque contra nosso governo. Alguns deles trabalhavam para a CIA desde 1958, disfarçados de revolucionários por todo esse tempo".

GOLPES FRACASSADOS

Após o fracasso de todos esses golpes de Estado, tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética e o Vietnã perceberam que não conseguiriam derrubar o poder estatal operário-camponês por esse meio. O novo governo tinha crescido muito forte e consolidado. Sua base de apoio entre o povo era mais ampla do que nunca.

“Nesse ponto, todos os inimigos começaram a pensar que apenas um ataque vindo de fora do país pudesse ter sucesso”, explicou Sary. “Foi então que o Vietnã iniciou sua agressão aberta contra nós, por volta do fim de 1977. Fizeram isso na esperança de que a agressão externa atraísse nosso exército a um ponto específico e permitisse que suas forças dentro do país tivessem a oportunidade de atacar em outro local. Mas tudo isso revelou-se em vão da parte deles, e nós repelimos sua invasão”.

Refletindo sobre tudo o que nos tinha dito, Sary começou a resumir e discutir o estado atual das coisas no Kampuchea.

“A situação em cada ano desde 1975 estava melhorando progressivamente”, disse ele, “embora muitos problemas complexos persistam. Nosso trabalho de construção socialista está avançando, especialmente na área de conservação da água e agricultura. Muitas cooperativas estão prosperando; quase todas estão tendo sucesso. Tudo isso foi realizado sob a liderança do Partido, na mais pura conexão com o povo. Sob a liderança do Partido, tenho certeza de que seremos capazes de resolver todas as dificuldades que ainda enfrentamos”.

“A guerra com o Vietnã pode durar muito tempo. Enquanto o Vietnã tentar impor uma ‘Federação da Indochina’ sobre nós, teremos de lutar e esperar que a situação política mude. Mas tenho certeza de que a verdade e a justiça vencerão no fim das contas”.