Mussolini e o fascismo

José Carlos Mariátegui

1925


Primeira edição: trecho retirado do livro La Escena Contemporanea, de 1925.

Fonte para a tradução: seção espanhola do Arquivo Marxista na Internet.

Tradução: Guilherme Corona.

HTML: Guilherme Corona e João Victor Bastos Batalha.

Direitos de reprodução: Domínio público.


FASCISMO e Mussolini são duas palavras consubstanciais e solidárias. Mussolini é o animador, o líder, o duce(1) máximo do fascismo. O fascismo é a plataforma, a tribuna e o carro de Mussolini. Para nos explicar uma parte deste episódio da crise europeia, recorreremos rapidamente à história dos fasci(2) e do seu caudilho.

Mussolini, como é sabido, é um político de procedência socialista. Não teve dentro do socialismo uma posição centrista nem moderada, mas sim uma posição extremista e incandescente. Teve um papel codizente com seu temperamento. Porque Mussolini é, espiritual e organicamente, um extremista. Seu lugar está na extrema esquerda ou na extrema direita. De 1910 a 1911, foi um dos líderes da esquerda socialista. Em 1912, dirigiu a expulsão do lar socialista de quatro deputado partidários da colaboração ministerial: Bonomi, Bissolati, Cabrini e Podrecca. E ocupou então a direção do Avanti(3). Vieram 1914 e a Guerra. O socialismo italiano defendeu a neutralidade da Itália. Mussolini, invariavelmente inquieto e beligerante, se rebelou contra o pacifismo de seus correligionários. Propagou a intervenção da Itália na guerra. Deu, inicialmente, ao seu intervencionismo um ponto de vista revolucionário. Sustentou que estender e exasperar a guerra era apressar a revolução europeia. Mas, na realidade, no seu intervencionismo ladrava sua psicologia guerreira que não podia conformar-se com uma atitude tolstoiana(4) e passiva de neutralidade. Em novembro de 1914, Mussolini abandonou a direção do Avanti e fundou, em Milão, Il Popolo d'Italia para defender o ataque à Áustria. A Itália se uniu à Entente(5). E Mussolini, propagandista da intervenção, foi também um soldado da intervenção.

Chegaram a vitória, o armistício, a desmobilização. E, com esta coisas, chegou um período de desocupação para os intervencionistas. D'Annunzio, nostálgico de façanhas e epopéias, se dedicou à aventura de Fiume. Mussolini criou os fasci di combetimento: feixos ou falanges de combatentes. Mas na Itália o momento era revolucionário e socialista. Para a Itália a guerra tinha sido um mal negócio. A Entente lhe tinha dado uma magra participação no botim. Esquecida da contribuição das armas italianas para a vitória, lhe tinha contestado tenazmente a possessão de Fiume. A Itália, em resumo, tinha saído da guerra com uma sensação de descontentamento e de desencanto. Foram realizadas, sob esta influência, as eleições. E os socialistas conquistaram 155 assentos no parlamento. Mussolini, candidato por Milão, foi estrondosamente derrotado pelos votos socialistas.

Mas esses sentimentos de decepção e de depressão nacionais eram propícios a uma violenta reação nacionalista. E foram a raiz do fascismo. A classe média é peculiarmente suscetível aos mais exaltados mitos patrióticos. E a classe média italiana, além disso, se sentia distante e adversária da classe proletária socialista. Não lhe perdoava pelo seu neutralismo. Não lhe perdoava pelos altos salários, os subsídios do Estado, as leis sociais que, durante a guerra e depois dela, tinha arrancado do medo da revolução. A classe média se doía e sofria que o proletariado, neutralista e até derrotista, fosse beneficiário de uma guerra que não havia desejado. Estes ressentimentos da classe média encontraram um lugar no fascismo. Mussolini atraiu, assim a classe média aos seus fasci di combatimento.

Alguns dissidentes do socialismo e do sindicalismo se alistaram nos fasci, levando sua experiência e sua destreza na organização e captação das massas. Não era ainda o fascismo uma seita programática e conscientemente reacionária e conservadora. O fascismo, antes, se pensava revolucionário. Sua propaganda tinha matizes subversivos e demagógicos. O fascismo, por exemplo, ululava contra os novos ricos. Seus princípios - tendencialmente republicanos e anticlericais - estavam impregnados do confusionismo mental da classe média que, instintivamente descontente e desgostosa da burguesia, é vagamente hostil ao proletariado. Os socialistas italianos cometeram o erro de não usar sagazes armas políticas para modificar a atitude espiritual da classe média. Ainda mais. Acentuaram a inimizade entre o proletariado e a piccola borghesia(6), tratada desdenhosamente e ridicularizada por alguns hieráticos teóricos da ortodoxia revolucionária.

A Itália entrou em um período de guerra civil. Assustadas pelas chances da revolução, a burguesia armou, abasteceu, e estimilou solicitamente o fascismo. E o empurrou para a perseguição truculenta do socialismo, para a destruição dos sindicatos e cooperativas revolucionárias, para a supresão de greves e insurreições. O fascismo se converteu, assim, em uma milícia numerosa e aguerrida. Acabou por ser mais forte do que o próprio Estado. E então reclamou o poder. As brigadas fascistas conquistaram Roma. Mussolini, de "camisa negra"(7), ascendeu ao governo, constrangeu a maioria do parlamento a obedecer-lhe, inaugurou um regime e uma era fascista.

Sobre Mussolini se tem feito muita novela e pouca história. Por conta da sua beligerância política, quase não é possível uma definição objetiva e nítida de sua personalidade e sua figura. Umas definições são ditirâmbicas ou cortesãs; outras são rancorosas e panfletárias. Se conhece a Mussolini episodicamente, através de anedotas e fotos. Se diz, por exemplo, que Mussolini é o artífice do fascismo. Se acredita que Mussolini "fez" o fascismo. Agora veja, Mussolini é um agitador experiente, um organizador especialista, um tipo vertiginosamente ativo. Sua atividade, seu dinamismo, sua tensão, influíram vastamente no fenômeno fascista. Mussolini, durante a campanha fascista, falava no mesmo dia em três ou quatro cidades. Usava o avião para ir de Roma a Pisa, de Pisa a Bolonha, de Bolonha a Milão. Mussolini é um tipo volúvel, dinâmico, verborrágico, italianíssimo, singularmente dotado para agitar massas e excitar multidões. E foi o organizador, o animador, o condottiere(8) do fascismo. Mas não foi seu criador, não foi seu artífice. Extraiu de um estado de ânimo um movimento político, mas não modelou este movimento à sua imagem e semelhança. Mussolini não deu um espírito, um programa, ao fascismo. Ao contrário, o fascismo deu seu espírito a Mussolini. Sua consubstanciação, sua identificação ideológica com os fascistas, obrigou a Mussolini a se livrar, a purgar-se dos seus últimos resíduos socialistas. Mussolini precisou assimilar, absorver o antissocialismo, o chauvinismo da classe média para enquadrar e organizar esta nas filas dos fasci di combattimento. E teve que definir sua política como uma política reacionária, antissocialista, antirrevolucionária. O caso de Mussolini se distingue nisto do caso de Bonomi, de Briand e de outros ex-socialistas(9).

Bonomi, Briand, nunca foram forçados a romper explicitamente com sua origem socialista. Atribuíram-se, na verdade, um socialismo mínimo, um socialismo homeopático. Mussolini, em vez isso, chegou a dizer que se envergonhava do seu passado socialista como se envergonha um homem maduro das suas cartas de amor de adolescente. E saltou do socialismo mais extremo ao conservadorismo mais extremo. Não atenuou, não reduziu seu socialismo; o abandonou total e integralmente. Seus rumos econômicos, por exemplo, são contrários a uma política de intervencionismo, de estadismo, de fiscalismo. Não aceitam o tipo transacional de Estado capitalista e empresário: tendem a restaurar o tipo clássico de Estado cobrador e gendarme. Seus pontos de vista de hoje são diametralmente opostos aos seus pontos de vista de ontem. Mussolini era um convencido ontem como é um convencido hoje. Qual foi o mecanismo a proceder sua conversão de uma doutrina a outra? Não se trata de um fenômeno cerebral; se trata de um fenômeno irracional. O motor desta mudança de atitude ideológica não foi a ideia; foi o sentimento. Mussolini não se livrou do seu socialismo, intelectual nem conceitualmente. O socialismo não era nele um conceito, mas sim uma emoção, do mesmo modo que o fascismo tampouco é nele um conceito, mas sim uma emoção. Observemos um dado psicológico e fisionômico: Mussolini nunca foi um tipo cerebral, mas sim um sentimental. Na política, na imprensa, não foi um teórico nem um filósofo, mas sim um retórico e um condutor. Sua linguagem não foi programática, principista, nem científica, mas sim passional, sentimental. Os mais fracos discursos de Mussolini foram aqueles em que tentou definir a filiação, a ideologia do fascismo. O programa do fascismo é confuso, contraditório, heterogêneo: contém, misturas péle-méle(10), conceitos liberais e conceitos sindicalistas. Melhor dito, Mussolini não deu ao fascismo um verdadeiro programa, lhe deu um plano de ação.

Mussolini passou do socialismo ao fascismo, da revolução à reação, por uma via sentimental, não por uma via conceitual. Todas as apostasias histórias foram, provavelmente, um fenômeno espiritual. Mussolini, extremista da revolução, ontem, extremista da reação hoje, não lembra Juliano. Como este Imperador, personagem de Ibsen e Merezkovskij, Mussolini é um Ser inquieto, teatral, alucinado, supersticioso e misterioso que se sentiu escolhido pelo Destino para decretar a perseguição do deus novo e repor em seu retábulo os moribundos deuses antigos.