A Declaração do Comité Central de 19/1

Carta ao CC

Francisco Martins Rodrigues

30 de janeiro de 1963


Primeira publicação: in, IANTT, ADL, Tribunal Criminal de Lisboa/Supremo Tribunal de Justiça, Processo 16870-C/70, 7° vol., apenso à página 530, dact. 4pp.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão. Seleção de João Madeira. Editora Ela por Ela e Abrente. Lisboa, março de 2015. Págs: 55-57.

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de reprodução:© Editora Ela por Ela. Transcrição gentilmente autorizada por Ana Barradas (Ela por Ela).


Capa do livro

Ouvi pela rádio o documento do Comité Central do nosso Partido acerca das divergências no movimento comunista mundial. Dada a extrema gravidade das questões levantadas, é ao CC que dirijo esta carta.

1) Foi tornado público um documento do CC sobre questões de imensa responsabilidade para o Partido e para todo o movimento comunista mundial, sem que se tenha feito um esforço para informar e conseguir a unanimidade dos membros do CC. Este procedimento não me parece correcto.

Na reunião de Dezembro do CC (feita poucas semanas antes de ser aprovado o documento) não estava incluído nenhum ponto relativo a esta questão; ao ser levantado durante a discussão o problema das divergências existentes no movimento comunista, mais dum camarada presente referiu-se à necessidade de os membros do CC serem informados sobre questões em divergência, acerca das quais já antes o secretário-geral do Partido se pronunciara publicamente mas de que muito pouco se conhecia.

Podemos admitir que a maioria ou a esmagadora maioria ou até a quase totalidade dos membros do CC não tenha reparos a fazer ao documento e esteja de acordo com a posição que ele define. Contudo, temos de perguntar: Qual foi a urgência que obrigou a divulgar um documento desta ordem sem um largo debate prévio no CC, como seria de exigir em questão de tanta gravidade? Porque não foi possível levar à reunião de Dezembro do CC quaisquer elementos ou informações sobre o assunto? Porque não foi possível até hoje distribuir aos membros do CC qualquer relatório ou informação do Secretariado sobre este problema?

2) Precisamente porque não estou informado, não posso compreender nem aceitar algumas posições definidas do documento. Uma delas refere-se à atitude quanto à Liga dos Comunistas Jugoslavos.

Como se sabe, a Declaração dos 81 Partidos, depois de classificar a política da LCJ de traição ao marxismo-leninismo e de afirmar que os revisionistas jugoslavos se entregam a acções subversivas contra o campo socialista e o movimento comunista mundial, estabeleceu que

“os partidos marxistas-leninistas têm por tarefa imperiosa denunciar os revisionistas jugoslavos e lutar energicamente para preservar o movimento comunista e o movimento operário das ideias antileninistas dos dirigentes jugoslavos.”

Pergunto: em que elementos novos se baseou o CC para desmentir flagrantemente uma das conclusões essenciais da reunião de Moscovo de 1960? Foram tornados públicos na Revista Internacional, órgão dos dos Partidos comunistas e operários, quaisquer elementos ou documentos que contradigam aqueles que aí foram publicados em Março de 1959, Abril de 1961 e Abril de 1962, há menos de um ano? Em que consiste a “rectificação de alguns aspectos de orientação" da LCJ a que se refere o documento? Fizeram os dirigentes da LCJ qualquer reconhecimento público dos seus erros revisionistas, da sua orientação antileninista pregada e posta em prática durante muitos anos? Reconheceram eles finalmente aquilo que têm renegado: a ditadura do proletariado, o papel do Estado na construção do socialismo, a unidade do campo comunista? Tomaram eles posições práticas tanto no campo da política interna como externa, que mostrassem essa correcção?

Parece-me verdadeiramente espantoso que o documento do CC possa falar simplesmente na “rectificação de alguns aspectos importantes da orientação" da LCJ, coisa em que oiço falar pela primeira vez, quando o que se pretende anular é a condenação colectiva por todos os partidos marxistas-leninistas de um partido com uma lista oportunista, revisionista, tendente a desagregar o campo socialista, tendente a enganar a classe operária e os povos, traindo o leninismo. Foram consideradas pelo CC as repercussões que esta nova posição terá sobre a educação leninista e internacionalista do nosso proletariado? Não é o CC obrigado a explicar ao Partido, à classe operária e ao povo português os fundamentos desta viragem, referidos com tanta desenvoltura no documento? E com que direito se lança o CC na reabilitação dos comunistas jugoslavos, ainda que outros partidos irmãos tenham entrado antes nesse caminho, se isso significa passar por cima de cada Declaração dos 81 Partidos?

3) O que se passa acerca da Declaração dos 81 Partidos é para mim incompreensível. O documento do CC acusa os dirigentes do Partido do Trabalho da Albânia de não respei­tarem a Declaração e insistem em que ela é a base da unidade do movimento comunista e é obrigatória para todos os partidos marxistas-leninistas. No entanto, o CC não só altera radicalmente a posição perante a linha da LCJ como vai ao ponto de incluir uma tese nova, a de que é o dogmatismo e não já o revisionismo o perigo principal no movimento comu­nista à escala mundial, ou seja, precisamente o contrário do que foi estabelecido pelos 81 Partidos.

Pergunto: o respeito pela Declaração dos 81 Partidos, pela Declaração de 1957 e pela unidade do movimento comunista mundial não obriga o CC a abster-se de formular uma tese nova sobre uma questão de alcance internacional? Com que autoridade pode o CC inverter um princípio fundamental da Declaração se ainda não foi formulada pelo conjunto dos Partidos Comunistas e Operários qualquer apreciação que substitua aquele princípio? Pelo facto de o PCUS e outros partidos irmãos terem adoptado esta tese nova, permite isso ao nosso CC entrar nesse caminho? Não representará isto um novo golpe à unidade do movimento comunista mundial?

4) Os ataques públicos a partidos irmãos (o PTA e o Partido Comunista da China), feitos no documento do CC e já antes pelo secretário-geral do Partido, são um procedimento contrário ao que estabelece a Declaração dos 81 Partidos. Se antes qualquer outro partido irmão iniciou esta prática errada, é isso razão para o CC do nosso Partido alinhar no mesmo procedimento? Por aquilo que li, foi o PCUS que o primeiro dirigiu um ataque público a um partido irmão; como pode o CC apoiar a posição do PCUS e condenar ao mesmo tempo a polémica pública? Não compreendo.

Por outro lado, se as questões em divergência são de tal gravidade que justifica que o CC venha a público condenar o PTA e o PCC porque entende que isso envolve a defesa do marxismo-leninismo, como se compreende que o CC resolva ao mesmo tempo cessar quaisquer referências críticas àqueles ou a outros partidos irmãos? A defesa dos princípios do marxismo-leninismo não exige que o CC desmascare perante o Partido, a classe operária e o povo as posições que considera erradas e antileninistas e os partidos que as praticam e defendem?

Uma conclusão é para mim forçosa. É que com este documento do CC se enfileira o nosso Partido nas posições dum grupo de partidos, excluindo assim outros partidos-irmãos que têm pontos de vista diferentes, favorece-se uma cisão no movimento comunista mundial.

Conclusões:

  1. Como membro do CC, pretendo que fique claro para todo o CC que discordo e condeno veementemente o documento do CC de 19 de Janeiro de 1963.
  2. Proponho que, no prazo de um a dois meses, seja distribuído a todos os membros do CC um relatório do Secretariado esclarecendo as questões em divergência no movimento comunista e as posições assumidas no documento de 19/1.

Fraternais saudações comunistas
30-1-63
C.