Sobre o Perigo Principal no Movimento Comunista

Carta ao CC

Francisco Martins Rodrigues

30 de abril de 1963


Primeira publicação: in, IANTT, ADL, Tribunal Criminal de Lisboa/Supremo Tribunal de Justiça, Processo 16870-C/70, 12.° vol., apenso à fl. 949, dact., 2 pp.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão. Seleção de João Madeira. Editora Ela por Ela e Abrente. Lisboa, março de 2015. Págs: 61-63.

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de reprodução:© Editora Ela por Ela. Transcrição gentilmente autorizada por Ana Barradas (Ela por Ela).


Capa do livro

São poucos os elementos de que disponho, mas como me parece que há camaradas do CC que desconhecem a situação, acho de interesse apresentar alguns desses elementos; eles justificam, quanto a mim, a afirmação que fiz na minha última carta ao CC sobre o assunto: a denúncia pelo nosso CC do dogmatismo como perigo principal no movimento comunista é, na situação actual, uma ajuda à corrente oportunista predominante em diversos partidos comunistas e operários. Defendo que o nosso CC reveja este problema com cuidado e corrija o mais breve possível a posição tomada em 19 de Janeiro.

Aos camaradas que admitem haver alguns aspectos oportunistas na acção do PC Italiano, mas defendem que esses aspectos nada têm a ver com a linha geral do Partido, que seria correcta:

“Em primeiro lugar, avançar para o socialismo significa movimento e não estancamento. Toda a melhoria, mesmo limitada das condições dos trabalhadores, qualquer golpe dado ao sistema de privilégios e exploração, são um facto positivo. Não existe nada mais estúpido nem mais prejudicial que a política do 'quanto pior, melhor'. Sempre a temos rechaçado, sempre exigimos medidas concretas para melhorar as condições de trabalho. Mas para além dessas medidas contingentes aparecem duas questões substanciais: a estrutura económica e a direcção política da sociedade com o objectivo de diminuir e possivelmente demolir o domínio absoluto dos grupos burgueses dirigentes“.

“A estes pontos opõe-se uma objecção aparentemente muito séria. A luta por este objectivo desenvolve-se no âmbito do Estado actual, que mantém a sua índole burguesa. Está bem. Sabemos qual é a natureza de classe do Estado que não muda por se aprovarem uma ou várias nacionalizações. Trata-se de ver se, partindo da presente estrutura estatal, realizando as profundas reformas previstas na Constituição, pode desenvolver-se um movimento e obter-se resultados tais que modifiquem o actual bloco governante e criem condições, aproveitando as quais as classes trabalhadoras possam conquistar as funções que legitimamente lhes correspondem“.

“Aceitando esta perspectiva que, na essência, é um avanço para o socialismo na paz e na democracia, introduzimos o conceito de evolução gradual, no qual é bastante difícil precisar quando se operam mudançasqualitativas. Podemos predizer que nos países capitalistas desenvolvidos se produzirá uma luta que pode estender-se por um largo período de tempo, durante o qual as classes trabalhadoras combaterão para se converter em classe dirigente“. (Informe do cam. Togliatti ao 10.° Congresso do PCI, citado em Tempos Novos, n.° 51, 1962) ([mns do autor]) itálicos meus).

“Nós lutamos por uma reforma profunda do nosso regime político e económico: ela exprime-se no respeito e na aplicação da Constituição pelos nossos governantes, numa reforma agrária e industrial que deve permitir libertar os trabalhadores e os consumidores da pressão dos monopólios privados e acrescer o bem-estar de todo o País“. (...)

“É um facto que na Itália as reformas estão na ordem do dia. Algumas são muito profundas: no domínio político, a constituição das regiões que deve quase coroar o sistema de autonomia local e criar um verdadeiro estado de direito do cidadão. Este estado existe só no papel; no domínio económico, uma reforma da propriedade para limitar a grande propriedade e dar a terra aos que a trabalham, uma reforma industrial para nacionalizar os grandes monopólios e introduzir o princípio da gestão operária. No domínio da segurança social, a reforma deve assegurar a todos condições de existência mais humanas. No domínio do ensino, é preciso fazer desaparecer o analfabetismo e constituir uma escola única com a duração de 10 anos“ (...).

“A reivindicação de reconhecer as comissões internas e os seus direitos deve abrir caminho à questão do controlo operário na produção e das suas reformas. Não nos encontramos numa situação revolucionária aguda, quando o controlo está no centro da luta pelo poder Encontramo-nos contudo numa situação em que, para se opor ao poder absoluto dos monopólios, para evitar que aumente o desequilíbrio entre a retribuição e o rendimento do trabalho, para permitir os despedimentos só na base da “justa causa“, para impedir que as medidas de automatização sejam exclusivamente uma vantagem enorme para o lucro em detrimento do assalariado e do consumidor, o controle de organismos de empresa aparece como necessário“.

“É preciso que as nossas reivindicações sejam enquadradas numa acção de 'renascimento', pondo problemas políticos de fundo, como a criação do organismo regional, a industrialização do Sul, uma reforma agrária geral, uma nova política para a cooperação, a nacionalização dos monopólios eléctricos, a reclamação de suspender o Mercado Comum Europeu e sobretudo a denúncia da política clerical“.

“Contra os comunistas ou sem os comunistas, não se defende, não se renova, não se alarga a democracia italiana“ (...) “Nós combateremos para defender, alargar, reforçar a democracia e o regime parlamentar, contra todo o germe, toda a tentativa, todo o perigo de degeneração autoritária e reaccionária“ (Informe do cam. Togliatti na reunião do CC do PCI, Outubro 1958, publicado no Bulletin pour l'étranger).

“Nós devemos impedir os despedimentos colectivos. Devemos defender e demonstrar que isso é justo e necessário do ponto de vista nacional, geral, mas que isso também é justo e possível do ponto de vista da empresa. Se impusermos a estabilidade da ocupação de mão-de-obra numa grande empresa, se obrigarmos portanto o capitalismo a considerar o nível de mão-de-obra como um dado constante, o capitalismo será obrigado a modificar os seus cálculos e a sua plataforma produtiva. O capitalismo deverá orientar-se para novos investimentos, tendo um carácter extensivo para a criação de novas fontes de trabalho e de ocupação da mão-de-obra. Este raciocínio vale em especial para os grandes grupos que dispõem de imensas reservas de capitais“. (Intervenção de Pesenti na reunião do CC do PCI, Outubro 1958) (itálicos meus).

É possível que estas citações que pude recolher em materiais que me chegaram às mãos sejam pouco significativas quanto à linha do PCI; mas reunidas às afirmações que se podem ler na Revista Internacional, elas são bastantes para caracterizar concepções que me parecem contrárias ao marxismo-leninismo. Recentemente, um camarada do Secretariado do Comité Central do nosso Partido disse-me que “o comunismo é uma coisa diferente daquilo que eu imagino“. Penso que é esse camarada e o CC que estão em erro. De qualquer modo, para ajudar a esclarecer onde está o erro, digo o que penso das ideias transcritas acima.

Quaisquer que sejam as condições particulares de Itália, nada pode justificar que o problema do poder seja diluído a ponto de não se distinguirem as etapas e de se desarmar o proletariado na luta pela conquista do poder. “Reformar“, “renovar“ a democracia, proceder a um “renascimento“, combater a “degeneração“ autoritária, fazer respeitar a Constituição, “obrigar” os monopólios a seguir outra via... o que há nestas fórmulas senão a sobrevalorização das conquistas democrático-burguesas, pondo em segundo plano que a direcção, o poder continua nas mãos da grande burguesia? A “evolução gradual“ é uma fórmula reformista igual a tantas outras que já surgiram no passado, significa o abandono da luta pelo poder, desta vez à sombra das novas condições históricas.“

30-4-63
Saudações comunistas
C.