
O movimento comunista português vem sendo dominado desde há dois anos por um debate que tende a tornar-se cada vez mais apaixonado, em torno dos princípios e da táctica: a linha da unidade nacional antifascista, as formas de luta para conduzir o povo à insurreição, o carácter da revolução portuguesa na sua etapa actual, as grandes questões em debate no movimento comunista – todos estes problemas vão sendo sucessivamente lançados na discussão.
Para camaradas estrangeiros, com um conhecimento insuficiente da situação portuguesa, e a quem impressiona a duração anormal da ditadura de Salazar (que recentemente completou 38 anos) e a relativa estagnação política em Portugal, as discussões entre os comunistas portugueses sobre a luta armada e a revolução são por vezes consideradas com certa condescendência, como uma transplantação artificial do debate em curso no movimento comunista internacional, como uma indicação da imaturidade do movimento revolucionário português. Ora esta discussão tem raízes profundas e antecede o conhecimento das divergências no movimento comunista, que se fez muito tarde, dado o isolamento político português. A confusão, a insatisfação e a febre polémica que alastram sem cessar entre os militantes comunistas portugueses resultam da aproximação duma crise revolucionária profunda em Portugal, crise cujos contornos se vêem desenhando com nitidez crescente.
Na realidade, o ano de 1961, com o começo das guerras revolucionárias de libertação dos povos das colónias portuguesas, assinalou a passagem a uma fase nova de luta antifascista em Portugal; o movimento popular que, após as grandes acções de massas em torno da eleição presidencial de 1958, vinha progredindo lentamente, deu um brusco salto em frente; de Outubro de 1961 a Maio de 1962, sucedem-se quase sem interrupção as grandes manifestações políticas nas principais cidades do país, a acção armada de Beja, a grande greve dos operários rurais do Sul, a greve e as manifestações dos estudantes; centenas de milhares de trabalhadores são subitamente despertados para a luta política activa e o país é varrido por uma grande onda de cólera, sob as reivindicações revolucionárias de Pão, Paz e Liberdade.
A CRISE DA DITADURA BURGUESA
Sob a acção combinada dos superlucros coloniais e da penetração imperialista, a economia portuguesa, extremamente retardatária, foi submetida a um processo de concentração levado, que fez passar o capital das sociedades anónimas de 1,5 biliões de escudos em 1939 para 15 biliões em 1961; actualmente, 200 sociedades anónimas possuem 3/4 do capital de todas as sociedades e dominam todos os ramos importantes da economia nacional e da exploração colonial, sendo administradas directamente pelo capital imperialista (minas, transportes, comunicações) ou pelos quatro grupos financeiros dominantes (CUF-Champalimaud, Banco Espírito Santo, Banco Ultramarino, Delfim Ferreira), dependentes, eles também, do capital imperialista. A classe operária, que há 40 anos se caracterizava pelo nível artesanal e pela ideologia anarco-sindicalista, ganhou consciência revolucionária e está fortemente concentrada (as regiões industriais de Lisboa e Porto concentram meio milhão de operários numa população de dois milhões e meio de habitantes). O nível muito baixo dos salários e a inexistência de uma aristocracia operária significativa fazem das cinturas proletárias de Lisboa e do Porto um dos anéis mais fracos da estrutura capitalista actual. A penetração do capitalismo nos campos varreu a velha estrutura semifeudal e deu lugar a um nível de concentração que é talvez o mais alto da Europa. Seis mil latifundiários e proprietários ricos apossaram-se de cerca de metade das terras cultiváveis, lançando centenas de milhares de camponeses arruinados no proletariado ou na emigração, de tal modo que, em vastas regiões, 80 a 90% da população activa na agricultura é constituída por operários agrícolas. Foi assim que a concentração capitalista, favorecida pela ditadura, colocou frente a frente um punhado de cem famílias milionárias, ligadas ao imperialismo, e a esmagadora maioria da população proletária e semiproletária (8 milhões num total de 9 milhões de habitantes), sujeita, na sua maior parte, a uma vida miserável. É sobre esta estrutura oscilante, que representa na realidade o elo mais fraco da cadeia capitalista europeia, que as insurreições dos povos das colónias estão desfechando há já 3 anos golpes demolidores, ao cavarem as divisões entre os grupos da burguesia, ao arrastarem-na para uma guerra ruinosa, ao indicarem com força irresistível às massas oprimidas portuguesas o caminho da insurreição armada. Isto permite compreender todo o significado do movimento de 1961-1962.
Os comunistas e todos os revolucionários, instruídos por este grande movimento popular, procuram extrair dele todas as lições possíveis, corrigir os seus erros e armar-se para a nova onda revolucionária que se aproxima; eles compreendem agora melhor que a luta pelo derrubamento da ditadura de Salazar é uma luta de classes complexa, impiedosa, exasperada, que só pode ser resolvida pela revolução, pela maior batalha de classes dos tempos modernos em Portugal. Por isso, o praticismo acanhado que dominou o movimento revolucionário durante dezenas de anos funde-se agora ao calor duma crítica que toma todos os temas sem excepção, rejeita mitos venerados desde há 20 anos, procura ardentemente unir a teoria marxista com a prática da luta antifascista.
A GRANDE ALTERNATIVA
O problema do carácter da revolução antifascista, durante longos anos desprezado pelos comunistas como meramente teórico e abstracto, tem vindo nos últimos tempos a transformar-se em questão de enorme interesse prático, em torno da qual se definem duas posições antagónicas. É ou não a revolução portuguesa, na sua etapa actual, uma revolução democrático-popular? É ou não obrigatória a instauração dum poder popular para que se tornem possíveis as transformações revolucionárias reclamadas pelo povo? Quer dizer, no fim de contas: deve a revolução ser conduzida sob direcção do proletariado e das massas populares, sob a direcção da burguesia nacional, ou ainda sob a direcção conjunta do proletariado e da burguesia nacional?
A posição tradicional do oportunismo a este respeito, que consistia em furtar-se ao problema incómodo da revolução e em não ir além da perspectiva do derrubamento da ditadura e da instauração dum governo democrático de unidade nacional, entrou em crise nos últimos tempos, sob a pressão dos acontecimentos. A corrente oportunista foi forçada a sair do terreno nebuloso em que se mantinha voluntariamente e elaborou a tese da revolução “democrática e nacional“. Em que consiste a revolução “democrática e nacional“? Ela seria a revolução dirigida contra a grande burguesia e o imperialismo, e tendo como tarefas principais a instauração dum regime democrático, a nacionalização dos monopólios a reforma agrária, o reconhecimento da independência das colónias, a libertação do domínio imperialista.
Todas estas reivindicações são, sem dúvida, correctas e esta posição seria bastante positiva, se os oportunistas não “esquecessem“ o problema do poder, precisamente o problema fundamental de toda a revolução. Com efeito, ainda que aludindo formalmente (e do modo mais discreto) à tese da hegemonia do proletariado na revolução, eles escamoteiam toda a referência ao armamento dos trabalhadores no decurso da insurreição antifascista, não encaram a criação de órgãos do poder popular como base para levar a cabo a revolução, abandonam aos liberais burgueses a mobilização das massas do campesinato pobre, repudiam terminantemente a designação de revolução democrático-popular como “esquerdista“ e tendente a dividir as forças antifascistas, propagam, finalmente, a ideia de que as transformações revolucionárias serão realizadas pela colaboração entre o proletariado e a burguesia, para o que aceitam, desde já, a necessidade de elaborar “um programa comum de construção da democracia“ e popularizam a sua palavra de ordem “unidos para hoje e para amanhã“.
O oportunismo transforma, assim, os objectivos revolucionários em reivindicações inofensivas para a burguesia e que poderão vir a ser utilizadas por esta para quebrar o ímpeto revolucionário do povo trabalhador com um programa qualquer de “reformas de estrutura“ (mais: que estão sendo já utilizadas com esse fim; o programa comum das forças antifascistas formula quase literalmente as reivindicações “revolucionárias“ do oportunismo).
A revolução portuguesa é, na actual etapa, uma revolução democrático-popular (como, aliás, já foi enunciado pelo Partido Comunista Português, em 1954, numa época em que o oportunismo não encontrava terreno favorável entre nós) porque as tarefas que se lhe colocam só podem ser realizadas através da instauração dum poder popular amplamente democrático que destrua, até aos alicerces, o poder da grande burguesia financeira e latifundiária, que expulse o imperialismo e abra o caminho à revolução socialista. Os ensinamentos do leninismo, as preciosas lições de uma luta prolongada contra o fascismo, a experiência viva do movimento revolucionário mundial, desde o fim da guerra, não deixam dúvidas a esse respeito. A hipótese de o derrubamento da grande burguesia e de a expulsão do imperialismo serem realizados em Portugal sob a direcção burguesa não merece sequer ser considerada com seriedade, e ninguém que se pretenda revolucionário se atreve a defendê-la abertamente. Todas as condições específicas de Portugal fazem da burguesia liberal e radical uma força intermédia, arrastada, não na via revolucionária, mas na via dum reajustamento na ordem burguesa existente, da negociação de um compromisso com a grande burguesia e o imperialismo, que permita sair da crise actual sem deixar que o poder “caia na rua“, como dizem os chefes liberais. E a expansão da ideologia radical burguesa no seio de largos sectores do campesinato e mesmo do proletariado e do semiproletariado mostra que a burguesia pode vir a encontrar, efectivamente, a saída de compromisso que procura, e a obter a colaboração de largas massas populares, iludidas, numa recomposição liberal do Estado burguês, que só servirá, no fim de contas, a grande burguesia e o imperialismo. É esse, justamente, o conteúdo do trabalho actual dos grupos liberais.
Como reagem os oportunistas e esta séria ameaça que pesa sobre o movimento revolucionário português? Sentem eles com maior agudeza a necessidade de desenvolver a plena autonomia política e ideológica do proletariado, dos camponeses pobres e das massas populares, de modo a neutralizar a burguesia? Encaram eles a necessidade de ultrapassar vitoriosamente todas as etapas intermédias que se apresentem e levar o movimento ao seu desenvolvimento superior, ao termo da revolução democrático-popular? De modo nenhum; eles deitam mão, aliviados, a esta perspectiva de uma saída burguesa “inevitável“ que lhes permite descarregar dos ombros a pesada responsabilidade da condução do movimento revolucionário e adiam, assim, as tarefas revolucionárias para um futuro indeterminado. A tese da revolução “democrática e nacional“, a realizar pela aliança proletário-burguesa, foi precisamente a etiqueta “teórica“ encontrada pelos oportunistas para consagrar esta política de efectiva entrega da hegemonia à burguesia.
Como vemos, o debate entre defensores da revolução “democrática e nacional“ e defensores da revolução democrático-popular materializa, hoje em dia, a grande alternativa que se coloca perante os comunistas portugueses (como perante os de tantos outros países): deve o Partido do proletariado furtar-se à definição da sua linha e pôr-se a reboque da burguesia (enquanto fala solenemente da “hegemonia do proletariado“), ou deve ele constituir-se, como lhe compete, em estado-maior da revolução, e pôr-se à cabeça das massas populares, não para as utilizar só como “força de choque da luta antifascista“ (a expressão, lançada em 1956 pelos dirigentes oportunistas declarados, é extremamente significativa), mas para libertar inteiramente a sua iniciativa política independente e as levar a tomar audaciosamente a direcção dos acontecimentos revolucionários?
A formulação científica do carácter de revolução reveste também uma grande importância prática imediata, porque é dela que depende a determinação da justa linha para a frente nacional antifascista. Esta questão, que vem sendo debatida desde há cerca de 20 anos nas fileiras comunistas sem nunca ter sido satisfatoriamente resolvida, e dando lugar a sucessivas guinadas tácticas direitistas e sectárias, só pode ser compreendida dentro da perspectiva da hegemonia revolucionária do proletariado; é por não ter essa perspectiva que a corrente oportunista eleva a unidade política e ideológica do proletariado com a burguesia, em todas as etapas do movimento, ao plano de princípio absoluto, se desinteressa do estudo da luta de classes e do carácter da revolução, subestima o movimento camponês, entregando-o à efectiva direcção da burguesia radical, permite que o pacifismo e o reformismo contaminem o proletariado, etc.
De todas as vezes que, no passado, o movimento popular se emancipou da tutela burguesa e tomou uma envergadura revolucionária (1944-1947,1958-1959,1961-1962), a corrente “unitária“ multiplica as suas exigências para um acordo estreito com a burguesia, recusa-se a abrir perspectivas insurreccionais, semeia a hesitação e a falta de confiança na capacidade revolucionária das massas. Pôr o movimento revolucionário popular ao serviço do movimento burguês – tal é afinal a missão histórica objectiva da linha da “unidade“, por muito bem-intencionados que sejam os seus defensores.
A perspectiva da revolução democrático-popular permite, finalmente, aos comunistas libertarem-se da oscilação permanente entre oportunismo e sectarismo e aprenderem a conduzir o movimento democrático nacional, apoiando-se sempre no movimento revolucionário do proletariado como a sua força determinante em todas as etapas.
Mas a luta contra o oportunismo não reveste só exigências teóricas; ela coloca também aos comunistas as mais duras exigências na acção prática.
A INSURREIÇÃO ANTIFASCISTA NA ORDEM DO DIA
Ao fim de 38 anos duma ditadura que despojou os trabalhadores e o povo de todos os meios de defesa e de organização (as eleições são uma fantochada ignóbil, não há partidos legais, nem liberdade de imprensa ou de reunião, nem sindicatos livres, nem direito à greve, a polícia política é omnipotente, etc.), quando se vive, além de tudo o mais, nas condições de uma crise nacional geral qualquer partido político que propusesse outra via para a libertação que não fosse a da insurreição armada não seria tomado a sério e ditaria a sua morte política.
Em Portugal a inevitabilidade da insurreição armada tornou-se especialmente clara para o povo, porque o movimento democrático nacional tem a particularidade pouco comum de, sob uma brutal ditadura fascista, ter feito nos últimos 30 anos uma utilização minuciosa, exaustiva, extremamente instrutiva, de todas as formas de luta legal e pacífica (concorrência às eleições-burla, trabalho nos sindicatos fascistas e nas associações controladas pela polícia, campanhas massivas de petições e abaixo-assinados, manifestações pacíficas), o que permitiu chamar à luta política e radicalizar vastas massas populares inicialmente iludidas quanto ao paternalismo demagógico de Salazar e alinhar pouco a pouco as forças revolucionárias em face das forças reaccionárias. A partir de 1958, o grande movimento popular em torno das eleições presidenciais, assinalado por tempestuosas manifestações de centenas de milhares de pessoas e (pela primeira vez em 30 anos) pela greve política, fez com que a insurreição armada contra a ditadura começasse a sair do terreno da simples palavra de ordem de propaganda e se tornasse uma palavra de ordem de agitação e mobilização das massas. Os acontecimentos de 1961-1962 acentuaram mais ainda esta evolução e vieram colocar a preparação da insurreição na ordem do dia. Este facto permite compreender a razão pela qual actualmente todos os grupos falam de insurreição e a linha ultra-oportunista do “afastamento pacífico de Salazar“ caiu no ridículo e teve que ser rejeitada a partir de 1960; esta foi uma primeira vitória do movimento popular.
Falando, no entanto, de “levantamento nacional armado“, os dirigentes oportunistas procuram ao mesmo tempo iludir as suas obrigações para com o Partido e as massas. Condenam como sendo “terrorismo“ qualquer acção violenta das massas, acentuam a necessidade de organizar “milhares de comissões legais e milhares de comités ilegais“, espalham a ideia de que não é possível fazer face ao aparelho de repressão fascista e colocam todas as suas esperanças na criação de um comando supremo militar-civil das forças antifascistas.
A RECUSA DA EVIDÊNCIA
Esta linha, deve dizer-se, alcançou, finalmente, a “unidade da oposição“ tão desejada pelos dirigentes oportunistas: uma “Junta Revolucionária“, presidida pelo general Delgado reúne, em Argel, os principais grupos políticos, desde o Partido Comunista até aos republicanos moderados. Foi esta a grande vitória do secretário-geral do Partido, Álvaro Cunhal.
Contudo, esta “unidade de todos os portugueses honestos“, assente em acordos sem princípios, revela-se bem menos idílica do que sonhava Cunhal. Os interesses irreconciliáveis de classe manifestam-se à luz do dia, e trava-se luta encarniçada entre os republicanos moderados (cada vez mais decididos a apoiar a recomposição do poder burguês) e os socialistas e radicais da pequena burguesia, que tentam empurrar para o primeiro plano o seu chefe, o general Delgado, abandonado pelos seus antigos protectores pelo seu aventureirismo e falta de capacidade. Divididos entre as duas tendências, os dirigentes oportunistas inclinam-se cada vez mais abertamente para o lado dos republicanos moderados e esforçam-se por neutralizar Delgado e os radicais.
Esta “Frente Patriótica“ burguesa e oportunista, em lugar da intensificação das acções populares, prometida por Cunhal, trouxe a estagnação, o atentismo, a corrupção e a preparação dos espíritos para aceitar o “golpe de Estado“, quando a burguesia julgar chegado o fomento. É este, de resto, o verdadeiro conteúdo da linha geral de Unidade, pregada desde há 20 anos pelos dirigentes oportunistas.
Uma linha que reúne retalhos deturpados do leninismo e que não se esforça por compreender as leis do movimento revolucionário em Portugal não pode de forma alguma conduzir o proletariado e as massas à insurreição. Precisamente uma das características mais evidentes do nosso movimento é que, em Portugal, a insurreição antifascista (falamos de insurreição e não de qualquer golpe militar da burguesia, apoiado pelas massas) tomará inevitavelmente a forma de uma prova de força prolongada, extremamente encarniçada, entre as forças reaccionárias e as forças revolucionárias.
Isto é hoje uma verdade indiscutível para os revolucionários portugueses, que constatam como 38 anos seguidos de ditadura, sem nunca se ter travado nenhuma confrontação séria entre o campo da revolução e o campo da reacção, criaram exigências muito pesadas para o desencadeamento da insurreição. O governo de Salazar dispõe hoje dum aparelho repressivo desenvolvido e eficiente que tem a vantagem de estar profundamente implantado entre a população, capaz, portanto, de intervir antes que as acções parciais de massas possam tomar a envergadura de amplos movimentos; consciente da sua estreita base social e da acumulação de factores revolucionários no país, o regime concentra os seus esforços no sentido de se furtar às grandes confrontações de força, tornou-se mestre na arte da vigilância, da prisão “preventiva“, da intimidação em massa.
Resulta daqui uma desorganização profunda e permanente do movimento popular que, duma forma talvez mais marcada do que noutros países, atravessa longas pausas para avançar depois por saltos bruscos, quando, à custa duma pesada concentração de esforços, consegue romper a pressão do aparelho policial. O nosso movimento veio, assim, penosamente, duma forma incrivelmente lenta, vencendo as etapas intermédias no caminho da insurreição, veio fazendo a sua instrução revolucionária em 25 anos de “eleições“, de acção sindical, de petições, de greves, de manifestações, continuamente desorganizado pela polícia e continuamente retomado. E, à medida que ele se vem acercando da insurreição, torna-se perfeitamente claro que as massas populares não podem, de forma alguma, “abordar as tarefas superiores da luta armada se não dispuserem dum instrumento político e militar adequado, se não dispuserem dum aparelho ofensivo popular, capaz de fazer frente ao aparelho repressivo fascista e de o desarticular, dando livre curso à insurreição das massas.
Recusando-se a encarar esta evidência (porque encará-la significaria abandonar a dependência do movimento burguês e tomar a iniciativa revolucionária), os oportunistas agarram-se desesperadamente às acções parciais de massas e à formação duma organização patriótica no seio do Exército. Sem dúvida, a necessidade de conduzir as mais variadas acções de massas, com o aproveitamento de quaisquer possibilidades legais, como as de umas futuras “eleições“, é um princípio indiscutível; a necessidade de criar uma séria organização no Exército é outro princípio indiscutível; mas estes princípios só ganham significado revolucionário se enquadrados naquilo que constitui a tarefa política principal do movimento revolucionário português na fase actual: a criação dum corpo popular armado e o desencadeamento de acções parciais armadas, como condição para abrir o caminho à insurreição.
A NATUREZA DO OPORTUNISMO
Quando, em 1961-1962, a vanguarda proletária nas ruas reclamava armas para se bater contra o inimigo, quando os operários se manifestaram armados de facas, ferramentas, pedras, quando dezenas de militantes comunistas pegaram em armas à ordem de dirigentes burgueses na acção de Beja, eles exprimiam a exigência das massas de que se recuperasse rapidamente o atraso existente, de que se tomassem as medidas correspondentes à nova etapa de luta, de que se criasse uma organização combatente, sob pena de todas as frases acerca da insurreição não passarem de frases. Mas não só os dirigentes oportunistas não responderam a esse apelo, como continuam a escusar-se com os pretextos mais variados.
A que se deve esta incapacidade do oportunismo para compreender as exigências actuais do posso movimento revolucionário? Será uma mera questão de assimilação deturpada do leninismo, uma mera questão de burocratização de alguns dirigentes? Os comunistas desarmar-se-iam para compreender a discussão actual em torno da via para a insurreição, se a reduzissem a essas proporções. Que os oportunistas desconheçam os ensinamentos leninistas sobre a combinação das formas de luta pacíficas e violentas no processo revolucionário; que eles tenham os olhos fechados para as particularidades do movimento revolucionário nacional; que eles prossigam a sua campanha contra o “terrorismo“, isolando-se de largos sectores da vanguarda proletária e lançando o movimento na confusão e no imobilismo; que eles estreitem sem cessar os seus laços e os seus compromissos com a burguesia liberal e lhe facultem uma preponderância crescente no movimento – nada disto acontece por acaso. Para eles, a insurreição não é um processo revolucionário de massas que deverá levantar as camadas mais profundas do povo, mas sim um levantamento militar civil que eclodirá numa data determinada; para eles o levantamento não é uma questão da competência das massas oprimidas mas uma questão a decidir pelo comando supremo antifascista e pela organização militar; eles afinal não vêem à sua frente o objectivo do desencadeamento pleno da iniciativa revolucionária das massas populares, varrendo toda a ordem social fascista e instaurando um poder popular, mas vêem apenas a colaboração das massas numa recomposição liberal do Estado burguês. O oportunismo confirma-se, assim, também na questão da insurreição antifascista como a expressão dos interesses do movimento burguês no seio das forças revolucionárias.
SOB A DIRECÇÃO DOS REVISIONISTAS MODERNOS
Se a marcha do movimento antifascista em Portugal tem vindo a obrigar inexoravelmente os oportunistas a revelarem as suas verdadeiras posições quanto à insurreição e à revolução, por sua vez, o debate aberto nos últimos anos no movimento comunista internacional contra o revisionismo completou esse trabalho de delimitação dos campos, obrigando a corrente oportunista portuguesa a abandonar as posições dúbias em que se defendia e a alinhar declaradamente no campo revisionista.
A primeira grande onda do revisionismo moderno assaltou o movimento revolucionário português no período de 1956-1959. Nessa altura, as tendências revisionistas que se mantinham em estado latente no Partido lançaram-se com entusiasmo sobre as “teses criadoras“ da coexistência pacífica, da passagem pacífica ao socialismo, do combate ao “culto da personalidade“ e da unidade com os social-democratas e forjaram com elas uma linha revisionista completa, adaptada à situação portuguesa. Foi a época do “afastamento pacífico de Salazar“, em que se pôs como meta aos comunistas e às massas populares desagregar o poder fascista e servir de força auxiliar da burguesia; foi a época da luta contra o “culto da personalidade“ no interior do Partido, em que, a pretexto do real dogmatismo e sectarismo existentes, se implantou o liberalismo, ameaçando gravemente a unidade interna do Partido; foi a época em que o Partido deixou passar oportunidades da luta revolucionária e começou a desligar-se perigosamente da vanguarda proletária. O caso português teve, assim, a particularidade de a “nova linha“ ter podido dar todas as suas provas num curto prazo, mostrando a sua natureza real. A marcha do movimento popular varreu esta primeira ofensiva revisionista: a linha da “solução pacífica“ e as inovações “democráticas“ no interior do Partido foram rejeitadas desde 1960 pela direcção do Partido como oportunistas (o que, diga-se de passagem, provocou vivo desagrado nos meios revisionistas europeus, que passaram a olhar com desconfiança o Partido Comunista Português) e os comunistas lançaram-se a corrigir os prejuízos causados pelo oportunismo.
Mas o facto de o oportunismo ter triunfado de uma forma tão escandalosa e quase sem encontrar resistência revelava que o Partido não estava efectivamente apetrechado com uma linha marxista-leninista, e impunha que se fizesse uma profunda crítica de princípios às teses revisionistas, único procedimento que permitiria basear com rigor científico as tarefas do Partido e do movimento revolucionário português. Esse trabalho não foi feito; e assim a corrente oportunista, encorajada pelo avanço do revisionismo à escala internacional, ainda que forçada a rejeitar as manifestações mais grosseiras de oportunismo que estavam já desacreditadas, desinteressou-se dos graves problemas teóricos em aberto no movimento revolucionário português e no movimento comunista internacional, e considerou como liquidado o desvio oportunista. O resultado, como era de esperar, foi o desencadeamento a curto prazo duma segunda ofensiva revisionista, mais virulenta ainda do que a anterior, e dirigida desta vez especialmente contra o internacionalismo proletário.
Depois dos acontecimentos de Outubro de 1962, os oportunistas (que já haviam atacado publicamente os camaradas albaneses) integraram-se abertamente na grande campanha do revisionismo moderno. Assim, eles lançam ataques indignos sobre o Partido Comunista da China, a quem acusam de “querer facilitar o triunfo do socialismo por meio da guerra termonuclear“; reabilitam o revisionismo de Tito, com quem resolvem estabelecer relações fraternas(1); insistem na justeza das teses revisionistas, como a passagem pacífica e, apesar da elucidativa experiência portuguesa, decretam que agora é o “dogmatismo“ e não já o revisionismo o principal perigo no movimento comunista (isto enquanto juram com a maior seriedade a sua fidelidade às Declarações comuns de 1957 e 1960, que subscreveram) e procuram facilitar o triunfo do revisionismo à escala internacional, reclamando que os partidos marxistas-leninistas se submetam à “disciplina“.
Como era de esperar, esta ofensiva sem precedentes do revisionismo em Portugal está causando dificuldades cada vez mais graves ao movimento comunista e à luta antifascista, lança a confusão e a desmoralização nas fileiras dos combatentes e tende a amortecer a sua combatividade. Mas, tal como em 1956-1959, desenha-se já nas fileiras comunistas uma reacção vigorosa contra o revisionismo e começa a tornar-se claro que ele não levará a melhor.
A vanguarda proletária portuguesa tem, sem dúvida, uma cultura política muito baixa; mas 37 anos ininterruptos de opressão fascista, do grande capital e do imperialismo aguçaram o seu espírito revolucionário e a sua vigilância contra o oportunismo, em quem reconhece a missão de desarmar ideologicamente o proletariado para o pôr ao serviço da burguesia. Vivendo a aproximação de uma tempestade revolucionária em Portugal, instruídos numa luta de classe prolongada e áspera, os comunistas portugueses apercebem-se quase por instinto do carácter podre das divagações revisionistas e insurgem-se contra os ataques ao PC da China e a outros partidos operários, criticam aqueles que, por uma política de cedências e de abandonos, abalam a autoridade e prestígio da União Soviética e do campo socialista; recusam-se a misturar a crítica aos erros dogmáticos do PCUS, em determinado período, com a campanha de insultos contra Staline e contra a linha do partido bolchevique; recebem com mofa a reabilitação precipitada do “camarada“ Tito; acompanham com elevado espírito internacionalista os combates revolucionários dos povos das colónias portuguesas, do Vietname, de todos os povos subjugados pelo imperialismo e pelo capitalismo.
É indiscutível que a grande campanha revisionista internacional empurra a corrente oportunista portuguesa para posições extremamente graves que, de outro modo, nunca se atreveria a assumir; mas ver nas posições dos oportunistas portugueses apenas o fruto da precessão internacional, como supõem alguns camaradas, seria absolvê-los das suas responsabilidades próprias. O oportunismo português apoia-se no revisionismo internacional porque precisa das teses revisionistas para encobrir e justificar os seus abandonos na luta antifascista, porque, tal como o revisionismo à escala internacional, ele exprime, no âmbito do movimento revolucionário português, a influência dos interesses da burguesia sobre o proletariado.
As NOSSAS TAREFAS ACTUAIS
A crise actual no movimento comunista português, ainda que dolorosa, é uma crise de crescimento: assinala a emancipação definitiva do movimento revolucionário popular da tutela ideológica e política do radicalismo burguês. Por detrás da aparente estagnação actual, no mais profundo das massas populares estão sendo recolhidas as conclusões do movimento 1961-1962, estão sendo elaboradas novas formas de luta adaptadas à etapa superior da luta antifascista. Os comunistas só cumprirão os seus deveres actuais se souberem colocar-se por toda a parte à cabeça das massas oprimidas da cidade e do campo e se encontrarem as formas de desenvolver a sua iniciativa combatente, de passar à ofensiva contra a ditadura, de combinar as acções pacíficas e violentas de acordo com as circunstâncias, fazendo entrar o movimento popular definitivamente na via da insurreição, se tomarem a bandeira revolucionária abandonada pelos oportunistas. Tal é a primeira tarefa actual dos comunistas portugueses.
Mas esta tarefa não pode ser cumprida se eles não travarem, ao mesmo tempo, uma severa batalha ideológica nas suas fileiras contra o oportunismo e o revisionismo, se não estudarem as leis do movimento revolucionário em Portugal, se não demonstrarem a justeza da linha da revolução popular democrática, da hegemonia do proletariado, da aliança com o campesinato pobre e da política de aliança e de luta simultânea com a burguesia, se não desmascararem o revisionismo moderno a fim de dar ao movimento proletário e popular uma direcção independente, autenticamente revolucionária. Tal é a segunda tarefa actual dos comunistas portugueses.
Para levar a cabo estas tarefas decisivas, os comunistas devem ainda encontrar formas de organização independente, a fim de impedir o oportunismo de utilizar em seu proveito a organização revolucionária para travar o crescimento das tendências marxistas-leninistas. Tal é, finalmente, a terceira tarefa actual dos comunistas portugueses.
O movimento revolucionário português só vencerá as suas dificuldades actuais se tomar consciência dos problemas colocados, se combater firmemente o oportunismo e o revisionismo. Aos comunistas que consideram ainda a luta contra o oportunismo como uma questão secundária e, mesmo como um prejuízo à unidade do Partido e à unidade antifascista, é preciso mostrar como o triunfo do oportunismo no seio do movimento revolucionário português acarretaria trágicos revezes na luta antifascista, semelhantes aos que têm sofrido nos últimos anos outros povos. Lutar contra o oportunismo é, pois, lutar pela força do movimento revolucionário, pelo triunfo no combate antifascista, pelo triunfo da grande revolução democrática-popular em Portugal, pela vitória do movimento comunista e operário internacional.