O efeito Martins Rodrigues e o «desvio esquerdista» de Maio de 1964 no PCP

João Madeira
(Investigador do Instituto de História Contemporânea)

2015


Fonte: Francisco Martins Rodrigues: Documentos e papéis da clandestinidade e da prisão. Seleção de João Madeira. Editora Ela por Ela e Abrente. Lisboa, março de 2015. Págs: 269-275.

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de reprodução:© Editora Ela por Ela. Transcrição gentilmente autorizada por Ana Barradas (Ela por Ela).


Capa do livro

Creio serem já suficientemente conhecidos os termos em que decorreu a reunião do Comité Central do PCP de Agosto de 1963 onde se trava o embate directo, frontal de Francisco Martins Rodrigues com a Direcção e particularmente com o Secretariado.

A reunião, os seus contornos, o seu desenvolvimento, as suas conclusões foram uma desilusão para Martins Rodrigues. Tinha expectativas a vários níveis, acreditava que pudessem haver no Comité Central opiniões diferentes e até com alguma expressão.

A maioria dos elementos que participaram na reunião, em Moscovo, estava fora do país — Álvaro Cunhal, Sérgio Vilarigues, Francisco Miguel, Georgete Ferreira e ainda Veiga de Oliveira e Pedro Ramos de Almeida, ambos quadros importantes, mas que não integravam o CC. Do interior estava pelo menos António Gervásio e Joaquim Gomes, além de Martins Rodrigues, que representava a Comissão Executiva.

As respostas a muitas questões que vinham sendo formuladas por Martins Rodrigues eram assumidas por Cunhal, ainda que o tom não fosse muito cerrado, mas mais de mágoa e desilusão, como que «um pouco desanimado pelo seu discípulo fiel estar a pôr aqueles problemas»(1)

Vilarigues e Francisco Miguel colocaram-se ao lado de Cunhal, de modo incondicional, carregando mais nas críticas a Martins Rodrigues. As posições sustentadas por Francisco Miguel foram para si particularmente decepcionantes, pois julgara mesmo que este estava em Moscovo em posições fortemente críticas contra o oportunismo e surgia ali incondicionalmente do lado de Cunhal.

A opinião que Martins Rodrigues guardou dessa reunião foi de completa insatisfação, com a noção de que não se tratou propriamente de uma discussão política ou ideológica aprofundada. Quem mais o criticava resistia a abordar aspectos concretos do que afirmava, não queria confrontar a experiência histórica do partido.

A Resolução que saiu da reunião reiterava a linha política restaurada por Alvaro Cunhal nesses primeiros anos 60 — a via do levantamento nacional, a etapa democrática e nacional da revolução em Portugal ou a condenação do putschismo e das acções violentas.

Do mesmo modo se procedia em relação às questões do movimento comunista internacional. Álvaro Cunhal responsabilizava o PC da China pelos perigos de cisão no movimento comunista. Para o secretário-geral do PCP, as posições dos chineses eram cisionistas, dogmáticas e sectárias.

No entanto, era prudente a atitude em relação a Francisco Martins Rodrigues, encarado como um dirigente em posições erradas, enganado quanto ao que defendia, mas a quem se dava a oportunidade de reconsiderar. Contudo seria, evidentemente, destituído da Comissão Executiva, embora mantido no Comité Central.

Nos intervalos da reunião discutia-se que atitude tomar em concreto, se mantê-lo em Moscovo, como uma espécie de secretário de Álvaro Cunhal, o que este não queria; se enviado para Paris. Martins Rodrigues contrapunha a vontade de regressar ao país e assumir funções partidárias no interior. Mas se havia coisa em que o CC se mostrava irredutível era nisso, pois desconfiavam da atitude que iria tomar.(2) Acabaria por ser mandado fixar-se em Paris, a solução mais conveniente, portanto.

Fica incumbido de controlar a organização do PCP em Paris, mantendo contactos quer com trabalhadores emigrados, quer com jovens estudantes, muitos deles desertores do exército colonial. Aí rapidamente inicia contactos paralelos com militantes jovens que se revelavam mais radicais, apoiando-se principalmente em Humberto Belo.

A intenção, a partir daí, era já a de sair, cindir com o Partido Comunista. Estabelece novas ligações, designadamente com a Argélia, onde funcionava a direcção da FPLN e onde se haviam também instalado militantes em rotura individual com o partido, como Rui d'Espiney e João Pulido Valente.

Abandona então as suas instalações, levando consigo a máquina de escrever, colecções de imprensa e alguns relatórios, razão por que viria a ser acusado de roubo. É com este «aparelho», com um conjunto pequeno e disperso de militantes, sobretudo no exterior, sem quaisquer contactos ou canais com o país, que se opera a «cisão» de Francisco Martins Rodrigues.

O documento político polarizador, apressadamente redigido «na precipitação de acompanhar a (...) saída com um documento público»(3), intitulou-se, como é sabidoLuta Pacífica e Luta Armada no nosso movimento», datado de Dezembro de 1963.

Ainda assim, em três, quatro meses, Martins Rodrigues consumaria a cisão no Partido Comunista Português, individual, voluntarista, sem base de apoio orgânico, sem quaisquer ligações ao interior, alinhando-se com o lado chinês no dissídio no movimento comunista internacional; mas querendo sobretudo beber na forte pulsão radical que borbulhava no interior.

Acreditava, ao fim e ao cabo, que a situação seria de tal ordem que uns documentos proclamatórios e umas cartas dirigidas para o interior seriam suficientes para arrastar sectores importantes do partido.

A situação estava, evidentemente, longe de ser essa. Todavia, apesar destas circunstâncias, Francisco Martins Rodrigues colocava-se historicamente na raiz do que haveria de ser a mais importante dissidência política, organizativa e em boa medida também ideológica, no Partido Comunista Português.

Será, evidentemente, expulso do PCP através duma circular do Comité Central de Janeiro de 1964, mas baseada numa decisão tomada no mês anterior, mal fora conhecido o abandono das suas instalações e do início da circulação em Paris do documento «Luta Pacífica e Luta Armada...».

Na circular, apesar de se afirmar que não era expulso por divergências políticas ou ideológicas, considerava-se que a publicação daquele documento o colocava numa actividade abertamente contra o PCP, acabando por concluir que «Com esta acção divisionista e provocatória, FMR passou sem pudor ao campo dos inimigos do Partido. Por isso o CC resolveu a sua expulsão do Partido».(4)

Efectivamente, em Janeiro de 1964, Martins Rodrigues funda a FAP, Frente de Acção Popular, e só em Abril o CMLP, Comité Marxista-Leninista Português.

Este compasso de espera no lançamento da nova organização marxista-leninista, conferindo primazia à organização frentista, reflecte expectativas ilusórias iniciais quanto à possibilidade de atrair de modo mais ou menos fulminante sectores do partido, contemporizando com o PCP, ao não querer cortar pontes com militantes que julgava ser mais fácil chamar a uma organização apenas antifascista, já que continuavam a acreditar na capacidade regeneradora do PCP.

O próprio CMLP não era tido propriamente como embrião de um novo partido comunista, mas uma organização, ainda que com fisionomia comunista própria, mais virada para a propaganda, ainda muito a olhar para o PCP e para o que se poderia passar no seu seio.

A circular de expulsão de Francisco Martins Rodrigues seria discutida no Partido apenas no Verão de 1964. Durante cinco meses, o Comité Central reteve a Circular, dando campo a que funcionários zelosos derivassem e extrapolassem, distorcendo o seu conteúdo, o que, em boa medida, acabaria por favorecer, por comparação e dúvida, as posições de Martins Rodrigues, que circulavam.

É difícil perceber o grau de discordância dentro do partido com a expulsão de Martins Rodrigues, mas teria sido pouco expressiva, até porque o que pesou nessa discussão não foram questões propriamente políticas, em larga medida arredadas do debate, mas sim toda a sorte de argumentos que enfatizavam o trabalho cisionista, o abandono de instalações e, desse modo, a deserção e o roubo.

Porém, havia quem, independentemente de concordar com a expulsão, reclamasse clarificação política quanto às posições defendidas por Martins Rodrigues, atendendo à situação vivida dentro do partido; só que os funcionários mais experientes e argutos percebiam bem onde isso poderia levar, por isso procuravam impedir que essa discussão evoluísse para discordâncias de linha política.

É que dentro do PCP os sectores radicalizados não deixavam de reclamar por mais acção, mais determinação nas iniciativas partidárias. Era uma turbulência que vinha da campanha de Delgado, que se ateara nas jornadas de 1962 e que não se extinguira.

Os dirigentes comunistas que haviam passado a identificar o esquerdismo e o aventureirismo como perigo principal procuravam evitar que o descontentamento e a crítica pudessem encontrar alimento político sistematizado e se polarizassem à sua esquerda.

Sérgio Vilarigues, um dos membros do Secretariado no exterior, entrevistado pela Rádio Portugal Livre em Março de 1964, ao explicar a via para o derrube do regime, demarca-se desde início dessa forte pressão à esquerda, radical, dispersa pela base do partido:

«Quando alguns elementos, tomando os desejos pela realidade, dizem, muito senhores de si, com toda a sinceridade, que o partido deve armar as massas, o facto representa uma grande confiança no nosso partido, mas representa também muita ingenuidade».(5)

Do seu ponto de vista, a orientação era clara:

«não se devem desencadear certos tipos de acções às cegas. É preciso preparar antes as condições de organização, os meios, as refregas, etc., e depois estudar cuidadosamente, com espírito de responsabilidade, o momento próprio, a conveniência e oportunidade desta ou daquela acção, sempre em função da luta de massas e em estreita ligação com ela».(6)

Porém, dada a forte pulsão por acções radicais, particularmente viva nalguns meios operários e estudantis, o partido temia ser ultrapassado à esquerda e era necessário enquadrar e controlar esse sentimento.

Um artigo editado em O Militante de Março de 1964 sobre a demarcação entre a linha revolucionária do partido e a linha aventureirista dizia que a linha revolucionária era a que se tinha expressado nas acções do 1.º de Maio de 1962 em Lisboa, enquanto a linha aventureirista era a que se tinha manifestado no assalto ao quartel de Beja.

Mas, invocando justamente o exemplo do 1.º de Maio de 1962, entreabria a porta à preparação de acções mais avançadas, as designadas «acções especiais», desde que entrosadas em amplas movimentações sociais e políticas, implicando «organizar e incentivar acções ofensivas de defesa e autodefesa, que visem desorganizar o aparelho repressivo fascista e defender as massas da repressão policial».(7)

Na preparação do 1.º de Maio, que se aproximava, o PCP lembrava justamente a experiência de 1962 e, precavendo-se contra uma qualquer atitude espontânea das massas, apelava ã organização de grupos que conduzissem no terreno as manifestações, aconselhando que fossem preparadas acções para dificultar a marcha dos carros da polícia, forçar a dispersão das forças repressivas, enfrentá-las até e aproveitar as manifestações para causar danos à máquina de guerra colonial. Esta era a orientação da Comissão Executiva para a preparação do 1.º de Maio de 1964.

Na reunião da Direcção da Organização Regional de Lisboa para esse efeito, Rogério de Carvalho, o membro do CC que controlava a DORL, defende que se deviam concentrar esforços na preparação de manifestações, que deviam ser acompanhadas de «acções especiais contra as forças repressivas».(8)

Nessa reunião, foi atribuído um papel particular às organizações de juventude na agitação e particularmente nas acções especiais a levar a cabo — destruição dos postos de chamada da polícia, incendiar com cocktails Molotov os carros da PSP, especialmente o carro-comando, lançar granadas para o interior de esquadras e espalhar pedaços de pneu com pregos para provocar engarrafamentos de trânsito. Previa-se também na véspera do 1° de Maio cortar os postes de alta tensão que alimentavam Lisboa, assim como os cabos telefónicos usados pelas forças policiais, bem como a realização de comícios-relâmpago à entrada de grandes fábricas da região de Lisboa, apoiados em grupos de estudantes armados que utilizariam carros roubados com matrículas falsas.

Por sugestão dos organismos de estudantes, aprovava-se o rapto do reitor da Universidade de Lisboa, Paulo Cunha, e de um inspector da PIDE.

Foi montado um aparelho de agitação, com cerca de 50 grupos de rua, de dois a três elementos cada um, para realizarem acções de propaganda.

Num relatório sobre a situação no sector estudantil referia-se como:

«era grande o entusiasmo no sector antes do 1.º de Maio. A organização trabalhava com afã, toda a gente falava, muitas ideias corriam sobre o 1.º de Maio.

Vivia-se o 1.º de Maio como uma jornada superior a todas as outras pois desta vez dava-se um passo em frente: as acções especiais, que para muitos corresponderam a tentativas ou ensaios armados contra as forças repressivas».(9)

Mas a organização partidária em Lisboa, se era numerosa, tinha fortes debilidades, que acabariam por inviabilizar parte significativa destas acções. A falta de conhecimentos, e, evidentemente, de quadros experientes para estas acções era enorme.

As granadas não puderam ser utilizadas, porque não havia ninguém que as soubesse manipular, vindo a ser devolvidas depois de passarem por uma série de mãos. As acções com cocktails Molotov não se realizaram por falta de elementos que os soubessem ou estivessem dispostos a usar. O corte dos postes de alta tensão não se fez, embora houvesse militantes dispostos, porque não se conseguiu arranjar o explosivo necessário. Os comícios-relâmpago não se chegaram também a realizar. Do rapto do reitor desistiriam depois de terem seguido os seus movimentos durante alguns dias.

No entanto, a manifestação em Lisboa realizou-se, com a participação de sete a onze mil pessoas.(10) Segundo o Avante!,(11) várias dezenas de estudantes arrancaram do Largo do Rato, aos quais se junta um grupo de operários; descem a Avenida da Liberdade, agregando já nos Restauradores muitos populares presentes, apedrejando então o Palácio Foz, onde estava instalado o SNI, e enfrentando as forças repressivas.

Teria sido nesse local que se registaram vários feridos e um morto, com a manifestação a reorganizar-se para subir de novo a Avenida da Liberdade, sendo interceptada e desbaratada com cargas da polícia de choque e recurso a carro de água.

No Alentejo, os trabalhos de preparação foram decapitados com a prisão de toda a troika que dirigia a Organização Regional, praticamente nas vésperas do 1.º de Maio. Apenas no Alentejo Litoral a organização se mantivera, porque o controlo era exercido por José Inácio, membro da Direcção da Organização Regional do Sul.

Na preparação do 1.º de Maio apoderaram-se de cargas de dinamite nas Minas do Lousal. A ponte de Águas de Moura foi sabotada e os fios telefónicos cortados,(12) as pontes de Alcácer seriam destruídas, para impedir o acesso a Grândola, onde, com o objectivo de isolar a vila, deveriam ser também rebentados os pontões sobre as ribeiras e barrancos à volta. A linha de caminho-de-ferro entre esta localidade e Águas de Moura deveria ser cortada e as estradas obstruídas. Ao mesmo tempo cortavam-se os fios telefónicos entre Grândola e Comporta e entre aquela vila e Santiago do Cacém.

Os efeitos práticos destas acções foram no entanto muito reduzidos, designadamente a sabotagem das pontes, onde, por inexperiência ou pela fraca potência dos explosivos, os danos causados não conseguiram impedir a circulação de viaturas.

Nas reuniões preparatórias, José Inácio apresentava as acções a empreender no 1.º de Maio como se do levantamento nacional se tratasse e a orientação era repetida de cima para baixo. O controleiro do Comité Local de Grândola, por exemplo, afirmara em reunião do organismo que se deveriam realizar por todo o país grandes manifestações pelo 1.º de Maio com vista ao levantamento nacional, preparando o partido acções de sabotagem e de confronto com as forças repressivas.(13)

Todavia, à parte os acontecimentos de Lisboa e Grândola, no resto do país o 1.º de Maio não teve praticamente expressão.

Porém, ainda durante esse mês, a edição especial do Avante! inicia o processo de crítica ao desvio esquerdista ocorrido nalguns locais a propósito do 1.º de Maio, que se teria expressado:

«nalguns documentos publicados, manifestos e tarjetas, em que se confundem duas coisas completamente diferentes: a organização de acções especiais — que, segundo foi definido pelo Comité Central, devem ser estudadas e organizadas em apoio e estímulo às acções de massas, mas inteiramente separados delas — e a organização das próprias acções de massas que, mesmo quando assumem aspectos violentos, têm, na fase actual da revolução, um carácter pacífico».(14)

O Avante! conclui ter-se tratado de um erro que, entre outros motivos, radicou numa «deficiente discussão e controle de execução na aplicação da linha do Partido por parte da Comissão Executiva do Comité Central»,(15) que era na altura composta por Joaquim Gomes, Alexandre Castanheira e Jaime Serra.

Não fossem as prisões ocorridas nas semanas anteriores ao 1.º de Maio, a extensão das acções especiais seria bem mais vasta, designadamente no Sul do país. Joaquim José Dias, o membro da Organização Regional do Alentejo que controlava o Baixo Alentejo, ao ser preso em meados de Março de 1964 tinha consigo documentação que ensinava a fazer os cocktails Molotov, para apoiar o fabrico desses engenhos nos organismos locais e com vista a serem utilizados em acções especiais.(16)

O Secretariado do PCP não demorava, portanto, a corrigir essa orientação. Reconhecendo a importância das acções de massas realizadas, constata nas páginas do Avante! a existência de uma tendência esquerdista.(17)

Todavia, uma maior sistematização do problema sairia meses depois num artigo publicado em O Militante, centrando-se em três aspectos fundamentais.

O primeiro era a confirmação de que comemorar o 1.º de Maio era muito mais do que as manifestações e outras acções no próprio dia; o segundo consistia na sobrevalorização da manifestação de Lisboa no 1.º de Maio e o terceiro abordava, finalmente, a questão da violência.

Partia da constatação que foi a reunião do Comité Central de Dezembro de 1962 que pela primeira vez levantou a possibilidade de conjugar acções de massas com acções de autodefesa, orientação que veio sendo posteriormente confirmada nas reuniões seguintes, quer na de Agosto de 1963, quer da de Abril de 1964, mas acrescentava, afinando, que a orientação em relação a este tipo de acções era a seguinte:

«(...) a eventual organização de acções de tipo especial é tarefa a levar a cabo por organismos especiais que, embora actuando em conjugação com as acções e manifestações de massas e com o objectivo de as estimular, devem desenvolver a sua acção de modo inteiramente independente da acção das próprias massas. Isto é, a actuação dos organismos ou grupos para acções especiais não poderá nunca confundir-se, mesmo aos olhos das forças repressivas, com a acção e manifestações de massas».(18)

Segundo este ponto de vista, o que se passara no 1.º de Maio de 1964 foi que os organismos do partido, a começar pela Comissão Executiva, discutiram de modo superficial, insuficiente e tardio esta orientação, confundindo acções especiais com movimento de massas e levando a que essa distorção se fosse acentuando à medida que o assunto ia sendo abordado nos sucessivos escalões partidários até à base.

Todavia, lá vai acrescentando que esta precipitação traduzia também a preocupação dos organismos dirigentes nos vários escalões de não quererem ficar à direita dos discursos e das opiniões mais radicais, cedendo ou sendo pelo menos mais permeáveis à pressão «esquerdista», o que potenciara aquela situação.

Era isto que se expressara na propaganda. O Avante! de Março aconselhara à realização de acções especiais para dispersar ou enfrentar com êxito as forças repressivas; um manifesto do Comité Local de Lisboa apelara a que se fosse para a manifestação com cocktails Molotov; diferentes documentos de organismos do Sul reproduziram a palavra de ordem de ataque à ordem fascista, a Direcção da Organização Regional do Norte defendera a elaboração de planos colectivos de autodefesa.

Para os dirigentes do partido, naquilo que representava, ao fim e ao cabo, uma correcção de orientação, a manifestação do 1.º de Maio havia demonstrado que «na fase actual da Revolução, as manifestações de massas continuarão a caracterizar-se como manifestações essencialmente pacíficas, tirando daí toda a sua força face ao regime salazarista»,(19) o que significava que os manifestantes deveriam participar aí desarmados e apenas reagir violentamente à repressão com os meios que tivessem ao seu alcance — à pedrada ou usando da força física contra os agentes policiais.

A questão da violência procurava assim ser reposta no lugar que lhe era atribuído na linha política do PCP. Confinada, contida, vencida como o principal factor desviante da linha política do partido, tanto mais que em crescentes sectores políticos e sociais era por aí que justamente passava a linha de demarcação com o PCP.