Sobre a situação na Frente da Teoria do Direito

Andrey Vyshinsky

Maio de 1937


Título Original: К Положению На Фронте Правовой Теории.

Fonte para a tradução: Revista “Социалистическая ЗаконностьОрган Прокуратуры СССР” (Legalidade SocialistaProcuradoria da URSS): Edição 05, maio de 1937 — pp. 30-37, Edições Pushkinskaya, 15ª, Moscou.

Tradução e Adaptação: Thales Caramante.

HTML: João Batalha.

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I

No arsenal de luta e de vitórias da classe operária da nossa grande pátria soviética, o Direito Socialista ocupa, com razão, um dos lugares mais honrosos. Ele foi e continua sendo uma poderosa arma da luta revolucionária pelo socialismo.

Ao longo de quase toda a sua existência, o Estado soviético enfrentou ataques contínuos e sabotagens organizadas por elementos hostis ao povo trabalhador — inimigos infiltrados nos órgãos do Estado, sabotadores das conquistas da coletividade socialista, agentes do imperialismo e da reação internacional. Frente a esse cerco permanente, o Estado Operário — a ditadura do proletariado — fortaleceu suas instituições jurídicas como instrumento de organização, consolidação e defesa da sociedade socialista. O Direito Soviético tornou-se escudo contra as investidas fascistas da burguesia internacional e dos elementos contrarrevolucionários do interior.

Sem uma luta teórica intransigente contra as doutrinas jurídicas burguesas e pequeno-burguesas, e sem a sistemática elaboração de uma teoria marxista-leninista do Direito, é impossível alcançar a completa vitória ideológica da classe operária. Essa era a orientação do camarada Stálin, que segue sendo válida até hoje. No entanto, essa tarefa segue incompleta.

Essa insuficiência manifesta-se, entre outras coisas, na ausência de um sistema teórico sólido, coerente e integral, fundado nos princípios do materialismo dialético e do marxismo-leninismo, voltado à interpretação da essência e do desenvolvimento do Direito Soviético, de suas categorias fundamentais e das formas jurídicas em que se expressa a nova realidade socialista.

Essa carência abre brechas para a infiltração de ideias alheias à nossa doutrina de classe, para a reprodução de conceitos hostis à legalidade socialista e para a perpetuação, ainda que disfarçada, de premissas idealistas, mecanicistas, liberais e até abertamente reacionárias na Frente Jurídica.

Nos manuais, nos discursos, nas teses universitárias e artigos científicos — inclusive em instâncias de prestígio acadêmico — continuam circulando, sem a devida crítica, as teorias burguesas do Estado e do direito. Muitas vezes, elas são adotadas de forma eclética ou adaptadas superficialmente, sem uma ruptura radical com sua base de classe, isto é, com sua origem na ideologia da burguesia.

Por vezes, autores que se dizem marxistas adotam termos e categorias jurídicas burguesas — como “direito natural”, “Estado de direito”, “liberdade contratual” — sem examinar sua raiz histórica ou seu conteúdo de classe. Esses conceitos são apresentados como “universais”, “neutros” ou “técnicos”, quando, na verdade, carregam em si toda a carga ideológica do direito burguês — direito esse que nasce para proteger a propriedade privada dos meios de produção, e não para organizar a sociedade socialista.

Mesmo nas áreas chamadas “técnicas” do direito — como o direito civil, o direito do trabalho, o direito administrativo — nota-se a reprodução acrítica de categorias herdadas do direito burguês, frequentemente revestidas de uma linguagem pseudocientífica e divorciadas da realidade concreta da sociedade soviética. Isso revela o quanto ainda falta avançar na criação de uma teoria geral do Direito Socialista — teoria esta que reflita, com rigor científico e com espírito de classe, a legalidade da transição ao comunismo.

Em várias instituições de ensino superior, persistem cátedras dirigidas por professores que se formaram antes da Revolução ou que se limitaram a substituir termos antigos por novos, sem mudar de fato sua cosmovisão idealista, formalista ou positivista. Assim, mantém-se viva, mesmo que disfarçada, a influência dos juristas burgueses — como Korkunov, Gessen, Reisner, e outros — todos eles hostis, em essência, à doutrina marxista do Estado e do direito.

A luta ideológica contra essas concepções não deve limitar-se a advertências genéricas. É preciso substituir a crítica superficial por um trabalho sistemático de desmascaramento, denúncia e exposição direta, abstração e superação dessas doutrinas, contrapondo-lhes um corpo teórico vivo, coerente e combativo, construído a partir da realidade soviética e das necessidades da classe operária.

II

Naquele período inicial do poder soviético, os quadros jurídicos formados sob a orientação da teoria revolucionária eram dramaticamente escassos. Essa debilidade objetiva abriu espaço para que elementos da velha intelligentsia — professores burgueses que, em sua juventude, haviam prestado uma superficial homenagem ao chamado “marxismo jurídico” — retomassem a palavra. Advogados de tradição menchevique, portadores de uma formação profundamente arraigada nos cânones do direito burguês, passaram a publicar volumosos tratados repletos das mais desavergonhadas falsificações do marxismo. Sua atividade adquiriu novo fôlego com a introdução da Nova Política Econômica (NEP), momento em que diversas tendências da ideologia burguesa procuraram ressurgir, agora revestidas de novas roupagens e adaptadas ao contexto soviético.

Cada um desses “marxistas” de fachada mantinha, em verdade, uma devoção teórica a algum mestre burguês, como representantes da ciência radical pequeno-burguesa de fins do século 19. À imagem e semelhança desses mestres, os discípulos soviéticos esforçavam-se por “cultivar” o marxismo-leninismo, adulterando seus fundamentos e apresentando os frutos dessa deturpação como se fossem autênticas elaborações do pensamento jurídico revolucionário. Assim, o menchevique veterano Goykhbarg não hesitou em elogiar Karl Renner; a professora Reisner, discípula intelectual de Mach e Bogdanov, celebrava Knapp e Petrazytsky. O resultado dessa apropriação burguesa — aplicada às questões candentes do Direito Soviético — foi a produção de teorias absolutamente repugnantes do ponto de vista revolucionário. E o mais perverso: muitas vezes, as conclusões mais reacionárias surgiam ocultas sob a máscara de uma linguagem supostamente “esquerdista”, confundindo os incautos e desarmando ideologicamente o proletariado.

Em 1923, Goikhbarg escreveu sobre a chamada antipropaganda que, como uma das mais importantes tarefas dos órgãos judiciais soviéticos, exigia a admissão na prática, por exemplo, de uma pena de confisco sem julgamento, para que o juiz não fosse um mero reprodutor da lei, mas o seu criador.

Stuchka, que, juntamente com todos os seus numerosos alunos, formava uma fração coesa, escreveu no seu “Dicionário Soviético de Direito” que o direito era “uma forma social que nasce e morre no mesmo momento em que surge a nação”. Isto é falso. Não se trata apenas da nação. Quem pode ter uma compreensão séria e um objetivo duradouro para isso, que é o resultado de uma criação puramente subjetiva?

O problema do direito e da lei foi levantado na Academia Comunista de Ciências Sociais e no Comissariado do Povo para a Justiça (Narkomiust). Os teóricos revisionistas propunham que o direito burguês-burocrático fosse substituído pelo direito proletário-revolucionário, enquanto a legislação soviética deveria ser posta de lado, de modo que o direito fosse o direito da vida, o direito do proletariado e da burguesia exploradora, dos seus antagonismos e da sua luta de classes, ou seja, o direito da contradição social.

Em conjunto com o professor Stuchka, atuou a assessoria jurídica da comissão colegiada dos juízes do Comissariado do Povo para o Comércio Externo (Narkomvneshtorg), capitaneada por P. B. Goikhbarg. O professor Reisner, o professor Goikhbarg, a professora Kantsel e o professor Stuchka eram entusiastas dessa luta pela hegemonia da classe trabalhadora e da legalidade proletária. Goikhbarg escreveu que o seu coração “ardeu de desejo de ver a ditadura do proletariado e o direito proletário como tal”.

Com Goikhbarg, o professor Reisner concordou plenamente. Em 1923, numa das suas obras, ele expressou-se da seguinte forma:

Não sabemos qual é o direito, mas queremos que seja a lei. O que precisamos, e podemos imaginar, é a ditadura do proletariado e a luta de classes que estão a criar novas formas jurídicas.

O professor Reisner defendia que as questões da ditadura do proletariado e do direito proletário podiam ser resolvidas de forma bastante simples, com a abolição da legislação soviética. Na sua opinião, a legislação soviética deveria ser substituída pelo direito revolucionário da Rússia Soviética. E, em última instância, ele considerava que o direito era “apenas um grito para o qual, se for demasiado estridente, se deve prestar atenção”. Mais adiante, o Professor Reisner afirma:

O direito, que se expressa nos interesses da classe dominante e que se expressa em todos os meios de persuasão, força e coação, é apenas o invólucro jurídico da economia. Não há nada de errado em chamar a isso direito, mesmo que não passe de um conjunto de conveniências burguesas, de um direito consuetudinário soviético e do direito da ‘explosão criativa’ (ou ‘arrebatamento criativo’), ou seja, do direito das organizações sindicais, dos organismos de gestão e dos tribunais revolucionários.(1)

A posição idealista do professor Reisner e de seus discípulos consistia, em essência, em declarar o Direito Soviético como uma continuação do direito burguês, concebido como algo inerentemente passageiro, destinado à autodestruição. Segundo essa lógica, a legalidade proletária não passaria de uma mera sobrevida da forma jurídica capitalista, carente de qualquer conteúdo revolucionário. Contra essa concepção profundamente reacionária, a linha do Partido — encarnada na teoria marxista-leninista e expressa com clareza nas intervenções de Lênin, Stuchka, Goikhbarg e outros juristas — afirmou com firmeza que o Direito Soviético não era uma relíquia do passado burguês, mas uma forma historicamente nova, vinculada à ditadura do proletariado e indispensável à construção do socialismo.

Em 1922, no calor das batalhas ideológicas travadas no interior do Partido e do Estado soviético, o 11º Congresso do PCUS(B) veio a confirmar, de maneira categórica, o princípio da defesa da legalidade soviética como instrumento da revolução. Mesmo figuras como o professor Reisner — que, não sem contradições, tentava se apresentar como partidário da política de “todos os meios para o socialismo” — foram forçados a subordinar-se à linha partidária. Esse momento representou, em termos práticos e teóricos, uma derrota para o derrotismo jurídico e uma afirmação do caráter necessário e construtivo da legalidade socialista.

Na Sessão de Julho da 4ª Convocatória do Comitê Executivo Central da Rússia, o próprio Lênin interveio: ao abordar o Código Civil, a ordem pública e os assuntos cotidianos da vida soviética, Lênin insistiu que, assim como o Estado revolucionário havia tomado a terra dos latifundiários, também se comprometera a instituir e aplicar o Direito como uma norma obrigatória para todos — sindicatos, instituições estatais, indivíduos, repúblicas federadas ou a Federação como um todo. O Direito não era, para Lênin, uma abstração filosófica, mas um instrumento concreto de organização e disciplina proletária. Ele enfatizou repetidas vezes que as leis deviam ser formuladas, implantadas e aplicadas com rigor igual para todos, sem exceções, sem privilégios.

No entanto, mesmo diante dessa clareza teórica e política, as ideias reacionárias não cessaram de buscar brechas para se infiltrar. Goikhbarg e Stuchka, em um primeiro momento, denunciaram com justeza as teses de Reisner como abertamente antimarxistas — doutrinas da contradição vazia, da ambiguidade pequeno-burguesa mascarada de crítica de classe, cujo conteúdo objetivo servia à sabotagem teórica e prática do poder proletário. Essas doutrinas, justamente, deveriam ser rechaçadas sem contemplações, tratadas não como variantes internas do marxismo, mas como formas exteriores e hostis a ele.

Entretanto, os próprios Stuchka e seus aliados acabaram por incorrer em grave contradição: ao permitir que tais teorias circulassem em editoras oficiais, fossem incluídas em manuais e disseminadas no campo jurídico soviético, transformaram-se, mesmo que involuntariamente, em vetores da penetração do revisionismo nos fundamentos da ciência jurídica socialista. Em vez de aniquilar teoricamente a posição idealista de Reisner, acabaram por ceder-lhe terreno, fragilizando a linha marxista-leninista ao permitir uma convivência tolerante com o inimigo ideológico.

A luta contra essas deformações produziu, como resultado parcial, o desenvolvimento da teoria da extinção do direito e do Estado, formulada por Pyotr Stuchka. Essa teoria, embora elaborada sob o pretexto de combater o normativismo burguês e defender o caráter transitório do Estado proletário, acabou por deslizar para posições anarquizantes, dissolvendo a função organizadora do direito socialista em um messianismo espontaneísta. Já o professor Reisner, sob o falso estandarte da crítica ao “dogmatismo” marxista-leninista, escancarou de vez sua adesão ao materialismo vulgar e ao eclecticismo sociológico, que nada mais são do que formas eruditas de reação ideológica ao avanço da revolução. Sua atividade teórica converteu-se, no fundo, numa campanha aberta de revisionismo anticomunista, travada no plano jurídico sob a bandeira da “modernização” e do “realismo científico”.

Comprometido ideologicamente com os interesses da pequena-burguesia intelectual e imerso numa leitura distorcida da realidade soviética, o professor Reisner passou a conceber o sistema jurídico como um conjunto de conveniências regulatórias — normas supostamente neutras, desligadas da luta de classes, que teriam valor apenas como instrumentos de coordenação funcional das relações de produção e das organizações sociais. Essa visão profundamente mecanicista e sociologizante despojava o direito de seu conteúdo classista e revolucionário, dissolvendo-o em um pragmatismo reformista incapaz de captar sua função ideológica enquanto expressão concentrada da vontade de uma classe dominante.

Essa concepção, longe de representar um avanço, revelava a completa capitulação teórica de Reisner diante das pressões ideológicas do velho mundo burguês. Ao flertar com a chamada teoria da extinção do direito — sem compreendê-la em sua dialética revolucionária, mas tratando-a como simples fatalismo jurídico —, Reisner não apenas traiu os fundamentos da ciência do direito socialista, mas também esqueceu a lição elementar do materialismo histórico: de que o direito, como o Estado, é produto e expressão da dominação de classe, e que sua forma concreta está ligada, de maneira direta, à luta entre as classes em cada etapa histórica.

Em verdade, o que Reisner apresentava como ciência era a reprodução, sob disfarce “moderno”, de concepções reformistas, positivistas e sociológicas, herdadas da tradição burguesa. Stuchka, em sua crítica, foi categórico ao identificar tanto Reisner quanto Goikhbarg como representantes da ideologia de classe burguesa-reformista — não por acaso, justamente no terreno da teoria jurídica, onde as ambiguidades pequeno-burguesas mais facilmente se disfarçam de técnica neutra. O direito, no entanto, como nos ensinou Lênin, é sempre a expressão da vontade de uma classe transformada em lei, e só pode ser compreendido de forma científica quando enraizado no solo fértil da luta de classes e da construção da ditadura do proletariado.

III

Na história do direito soviético, a figura de Pyotr Ivanovich Stuchka ocupa um lugar de inegável destaque. A ele se vinculam os primeiros passos da organização da justiça proletária, os decretos fundadores sobre os tribunais revolucionários e a sistematização inicial do direito estatal e civil sob a nova ordem socialista. Sua contribuição para a divulgação do papel revolucionário do direito soviético e para o esforço de fundamentar, em bases marxista-leninistas, uma teoria jurídica vinculada à ditadura do proletariado é um marco histórico que deve ser reconhecido. Foi um dos primeiros a afirmar que o direito da nova sociedade não era simples continuidade da forma jurídica burguesa, mas expressão jurídica da vontade da classe trabalhadora organizada no poder. A luta teórica por ele travada contra os juristas mencheviques, oportunistas e pequeno-burgueses permanece de grande importância, pois representa uma das primeiras trincheiras da batalha ideológica pela afirmação de um direito proletário consciente de sua missão histórica.

Entretanto, como todo pensador inserido no calor de um processo revolucionário vivo e profundamente contraditório, Stuchka não esteve imune aos desvios e erros teóricos. Em diversas formulações, ele se afastou da linha leninista, abrindo espaço para interpretações idealistas e anarquizantes da função do direito na transição socialista. Seu erro fundamental consistiu em interpretar o chamado “direito proletário” não como uma nova forma jurídico-política da dominação de classe — isto é, da ditadura do proletariado —, mas como uma espécie de fase transitória, sem coerção, regulada pela “boa vontade consciente” dos trabalhadores, ou seja, pela moral coletiva da sociedade socialista em formação. Com isso, Stuchka deslizava perigosamente da análise científica marxista para uma visão moralizante, voluntarista, em essência antiestatal.

Essa concepção, longe de ser um detalhe interpretativo, colide frontalmente com os fundamentos do marxismo-leninismo. Lênin foi categórico ao afirmar:

Se não somos anarquistas, temos de reconhecer a necessidade do Estado, enquanto instrumento de coerção para a transição ao socialismo.(2)

Ele reafirmava, com igual clareza:

O direito nada é sem o aparato coercitivo que garanta sua aplicação e o transforme em norma obrigatória.(3)

A luta de classes não desaparece com a tomada do poder pelo proletariado: ela se intensifica. Por isso, como também nos advertia o camarada Stálin, mesmo após a destruição das classes exploradoras, o Estado proletário deve conservar o monopólio da repressão contra os inimigos do povo — sabotadores, elementos reacionários, remanescentes do velho mundo capitalista(4).

O marxismo-leninismo entende que a regulação da “ordem social” no período de transição deve ocorrer não apenas pela “boa vontade dos trabalhadores”, como equivocadamente pensava Stuchka, mas também através da coerção.

Essas distorções se aprofundam quando Stuchka declara que “já se torna difícil traçar uma linha nítida entre o direito e a técnica” e que “uma coisa passa à outra”, chegando a dizer que, nos primeiros tempos da revolução, “vivíamos quase sem leis”. Essa afirmação não só minimiza o papel da legalidade revolucionária como ignora o esforço consciente do Partido em construir um sistema jurídico centralizado, funcional e voltado à consolidação do poder soviético. Ao propor uma separação entre “direito” e “deveres” — e até mesmo uma contraposição entre ambos —, Stuchka desarticulava a dialética interna da norma jurídica socialista, que une, sob a forma da legalidade, o exercício dos direitos e a responsabilidade dos deveres como expressão concreta da disciplina revolucionária.

A “Constituição Stalinista de 1936” — a mais democrática de sua época — viria a consolidar esta unidade entre direito e dever: garantia ao cidadão soviético os direitos fundamentais do socialismo, mas exigia, com igual rigor, o cumprimento de suas obrigações perante o Estado, a coletividade e a construção da nova ordem. A negligência ou o descumprimento dos deveres não era tratado como questão moral, mas como infração concreta à lei socialista, sujeita à punição pela justiça proletária. Ninguém — indivíduo, instituição ou república — estava acima da lei, e essa universalidade da norma era expressão do novo tipo de igualdade construída sob o socialismo.

Stuchka, contudo, não se limitou a tais desvios: em diversas formulações, aproximou-se das posições de Pashukanis, cuja teoria afirmava que o direito seria uma forma historicamente determinada das relações sociais, própria da sociedade de classes, e que com seu desaparecimento cessaria também a forma jurídica. Esta tese, embora mascarada de radicalidade, é essencialmente anarquista. Ela nega a especificidade do direito proletário enquanto instrumento de transição, confunde forma jurídica com forma burguesa, e anula, na prática, a possibilidade de um direito socialista como mediação entre necessidade histórica e consciência revolucionária.

Nesse sentido, a célebre frase de Stuchka — “nosso direito é um direito burguês, deformado, virado contra a burguesia, disciplinado, endurecido, mas ainda assim burguês” — expressa, com toda sua crueza, a rendição teórica diante do liberalismo jurídico. Ao considerar o Código Civil soviético como mera continuação deformada do código burguês, diferenciando-os apenas pela “orientação socialista”, Stuchka perde a essência da ruptura qualitativa operada pela revolução. A orientação não é mero adendo externo: ela transforma qualitativamente o conteúdo da norma, pois já não regula relações mercantis privadas, mas sim relações sociais voltadas à produção coletiva, à planificação econômica e à propriedade socialista dos meios de produção.

Reduzir o direito civil às trocas mercantis — como faziam Stuchka e Pashukanis — é ignorar que, sob o socialismo, emergem novas formas jurídicas ligadas à produção, à cooperação social e à responsabilidade coletiva. Essas novas formas não são heranças do passado, mas antecipações conscientes do futuro comunista. O erro de Stuchka reside, portanto, não apenas em sua visão limitada da função do direito, mas em sua incapacidade de compreendê-lo como mediação dialética entre o presente de transição e o futuro de emancipação total.

Eis aqui a origem profunda das divergências entre Stuchka e seu mestre intelectual, Evgeny Pashukanis. Ainda que Stuchka tenha tentado se distanciar da radicalidade anarquizante de Pashukanis, ele jamais conseguiu — ou quis — desenvolver uma crítica coerente à teoria mercantilista de seu mestre. Na verdade, ainda que não proclamasse abertamente a extinção do direito sob o socialismo, como fazia Pashukanis, essa consequência se insinua com nitidez em suas formulações. Quando colocadas em contraste com as teses de Marx, Engels e Lênin — especialmente tal como expressas em textos como “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky” (1918) — torna-se evidente que Stuchka apenas suavizava a antítese, sem jamais rompê-la em essência.

A verdade é que o direito civil soviético e o Código Civil da URSS, nascidos sob a égide da Grande Revolução Socialista de Outubro de 1917, são marcados, acima de tudo, por fenômenos tipicamente socialistas. Eles não surgem como uma adaptação do passado, mas como uma superestrutura juridicamente nova, edificada sobre uma base econômica revolucionária. O próprio Stuchka reconhecia isso teoricamente, afirmando que “se formos definir o direito, devemos dizer que ele é uma superestrutura sobre a base econômica da sociedade. Se essa base é nova (e a consideramos como nova), então o direito também deve ser novo”. Contudo, na prática, contradizia esse princípio ao tratar o direito soviético como mera continuação deformada dos sistemas jurídicos herdados — do direito romano, do feudalismo e do liberalismo burguês —, ignorando o conteúdo proletário e revolucionário da nova legalidade socialista.

Essa ambiguidade revela a marca de sua formação ainda enraizada nas formas mentais da intelligentsia do período pré-revolucionário. Em vez de afirmar com coragem a ruptura qualitativa que o direito socialista representa, Stuchka oscilava entre a fidelidade ao novo e o apego inconsciente ao velho. Por isso, o estudo do direito civil soviético — e da sua concepção geral — exige análise cuidadosa e rigorosa, sob pena de que repitamos erros revestidos de “marxismo” apenas formal.

Um dos campos onde essa contradição se expressou com clareza foi no debate em torno da separação entre o direito civil e o direito econômico-administrativo, que mais tarde passaria a ser denominado direito econômico soviético. Essa separação, formulada nas décadas de 1920 e 1930, possuía raízes diretas na escola de Pashukanis, que negava a validade de qualquer codificação sistemática do direito socialista e combatia a própria noção de “direito econômico” como forma jurídica necessária à gestão da economia planificada. O curso Direito Econômico Soviético (Instituto de Construção Soviética e Direito, 1936), escrito por Gilbert, Amiradzhibov e Kostiukevich, reflete essa tentativa de resgatar e sistematizar um campo jurídico abandonado pelas teses economicistas e antijurídicas de Pashukanis.

A base dessa divisão repousava na distinção entre o direito civil — encarregado de regular as relações entre indivíduos ou organizações dentro da ordem socialista — e o chamado direito do aparato, voltado às relações internas entre os órgãos do Estado na gestão econômica. Era o campo do chamado direito administrativo-econômico, com funções de controle, disciplina e planificação centralizada. Stuchka, ao tratar desse tema, afirmava que o direito econômico regulava as relações do setor estatal da economia, enquanto o direito civil permanecia voltado principalmente às relações do setor individual — camponês, artesanal, cooperativo.

O problema, contudo, é que Stuchka interpretava essa distinção não como resultado de uma articulação dialética entre diferentes níveis de transição socialista, mas como oposição estrutural entre dois princípios jurídicos inconciliáveis: de um lado, a ausência de liberdade contratual (no campo estatal), de outro, a plena liberdade de contrato (no campo civil). Entre ambos, colocava o setor cooperativo como “zona intermediária”, declarando inclusive que “cada setor tende a destruir o outro”. Tal formulação, longe de expressar o movimento progressivo da transição socialista, reproduz uma lógica dualista de guerra entre esferas jurídicas, como se o direito fosse apenas reflexo passivo da fragmentação econômica herdada — e não um instrumento ativo da unificação progressiva da vida social sob novas formas.

E se, como ele próprio dizia, “o novo direito deveria destruir o antigo”, com base em que premissas essa destruição se daria? Não pela revolução consciente das formas jurídicas — ou pela planificação de novas instituições jurídicas adequadas à economia socialista —, mas pela desintegração espontânea do antigo direito dentro do novo, entendido ainda como forma burguesa. Stuchka via o novo direito como um direito burguês reformado, limitado, “disciplinado”, mas ainda burguês em sua essência. Com isso, negava, na prática, a possibilidade de um direito socialista como superestrutura nova e qualitativamente distinta.

Apoiando-se numa citação clássica de Marx — “o direito nunca pode estar acima da estrutura econômica da sociedade, de seu desenvolvimento cultural” — Stuchka deduzia, de forma unilateral, que se a base econômica mudou, o direito também muda por inércia, devendo ser substituído por outra forma completamente distinta. O que ele ignorava, porém, era que o direito, como toda superestrutura, não é mero reflexo mecânico, mas mediação dialética entre base e consciência social. Essa leitura estreita transformava a fórmula de Marx em uma palavra de ordem vazia, incapaz de compreender a especificidade do momento de transição. O direito socialista não é apenas a negação do direito burguês: é também sua superação dialética, que preserva certas formas jurídicas — como o contrato, a norma escrita, a sanção — mas as submete a uma nova lógica: a da planificação socialista, da propriedade coletiva e do interesse geral da classe trabalhadora organizada no Estado.

Mas afinal, o que era, para Pyotr Stuchka, essa nova superestrutura jurídica que deveria corresponder à base econômica socialista? A resposta que ele fornece é, à primeira vista, simples, mas carrega um conteúdo profundamente problemático. Escreve Stuchka: “O direito burguês é um direito de troca. Nosso direito é um direito de produção”. Com isso, ele pretendia estabelecer uma diferença de princípio entre o direito burguês, fundado na equivalência mercantil e na propriedade privada, e o direito socialista, baseado na produção coletiva e na planificação econômica.

Entretanto, ao reduzir o direito socialista à regulação da produção, Stuchka incorre numa deturpação grave da doutrina marxista-leninista sobre o papel do indivíduo na sociedade socialista e sobre a natureza do próprio direito civil. Ao negar o caráter autônomo do direito civil e ao tratar a esfera dos direitos individuais — patrimoniais e pessoais — como resquício burguês a ser suprimido, Stuchka e seus seguidores acabavam por amputar uma dimensão essencial da transição socialista: a conciliação progressiva entre os interesses do indivíduo e os do coletivo. Não é por acaso que o camarada Stálin, com sua precisão teórica e seu compromisso com a edificação do socialismo, afirmava:

O socialismo não nega, mas sim concilia os interesses individuais com os interesses coletivos. O socialismo não pode rejeitar os interesses individuais. Proporcionar ao indivíduo a máxima possibilidade de satisfazer suas necessidades pessoais só pode ser tarefa de uma sociedade socialista. Somente o socialismo cria uma base sólida para a real proteção dos interesses da individualidade.(5)

Essas palavras do camarada Stálin não apenas corrigem o desvio economicista de Stuchka, mas apontam o caminho para o desenvolvimento do direito civil soviético como campo específico, autônomo, cuja tarefa histórica é precisamente garantir juridicamente os interesses pessoais dos trabalhadores, dos cidadãos da URSS, sujeitos conscientes da construção socialista. Proteger a pessoa trabalhadora — não como abstrato indivíduo burguês, mas como sujeito concreto da vida socialista — é missão fundamental do direito civil sob a ditadura do proletariado.

Porém, Stuchka, ao lado de seus discípulos como Amfiteatrov, Ginsburg e outros, via essa missão não como uma tarefa a ser cumprida, mas como um obstáculo a ser removido. Por isso, propunham a limitação e redução sistemática da esfera de ação do direito civil soviético, como se ele fosse um corpo estranho no sistema jurídico da nova sociedade. Em vez de desenvolver formas jurídicas adequadas à nova vida socialista, preferiam dissolver a legalidade civil na gestão econômica, transformando o cidadão em simples executor da planificação e não em sujeito de direitos.

Essa linha — expressa também na tese da “morte” do direito civil, defendida por autores como Bratus — resulta, na prática, na negação do próprio direito civil soviético como categoria jurídica distinta e necessária. Em lugar de um direito civil orientado aos interesses da coletividade e à proteção do cidadão trabalhador, temos sua liquidação funcionalista, que o reduz à administração técnica da economia e à lógica interna da produção.

A consequência dessa visão é a desintegração do sistema jurídico soviético enquanto sistema articulado e coerente, substituído por um aparato administrativo indiferenciado. Os dois setores — gestão econômica e direito civil — deixam de ser complementares para se tornarem rivais, sendo o segundo condenado à extinção. Isso, longe de ser um avanço, é uma regressão: nega o esforço da Grande Revolução Socialista de Outubro de 1917 em criar um direito novo, nem burguês nem anarquista, mas comunista em forma e conteúdo.

Pashukanis e seus seguidores — dentro e fora da URSS — perpetuaram essa linha sob novas roupagens. Mas sua essência permanece: é uma linha contra o direito socialista, contra a obra da ditadura proletária e contra o próprio Estado soviético. Ao negar o direito civil, negam a mediação jurídica entre o coletivo e o individual, entre o Estado e o cidadão, entre a planificação e a dignidade do trabalho. E ao negarem isso, negam a essência do socialismo como sociedade de homens e mulheres livres, conscientes e responsáveis.

IV

O surgimento do livro “Teoria Geral do Direito e Marxismo”, de Evgeni Pashukanis, em 1924, foi acolhido com entusiasmo precipitado por uma expressiva parcela dos juristas acadêmicos soviéticos, muitos dos quais ainda carregavam, sob a capa do marxismo formal, os ranços do pensamento liberal-burguês. A resolução aprovada no 1º Congresso Pan-Soviético de Marxistas-Juristas, realizado em 1930, com base nos relatórios apresentados por Pashukanis e Ya. Berman, chegou ao ponto de proclamá-lo como “o mais destacado representante da teoria marxista-leninista do direito”. Nesse espírito, o documento também afirmava que os trabalhos de Pashukanis teriam municiado a crítica contra a cosmovisão jurídico-burguesa, ao impedir, supostamente, que elementos estranhos penetrassem disfarçadamente na teoria e na prática jurídica soviética sob a forma de inofensivas “técnicas” jurídicas.

Pyotr Stuchka, em tom igualmente eufórico, chegou a classificar a obra como uma “excelente contribuição”, sem perceber — ou ignorando voluntariamente — as graves distorções e vulgarizações do marxismo-leninismo que ali se ocultavam sob aparência doutrinária. Tal recepção acrítica por parte de uma nova geração de juristas soviéticos, muitos dos quais se engasgavam de entusiasmo diante dos “méritos” atribuídos ao autor, evidenciava a força da ideologia pequeno-burguesa sobrevivente nos quadros institucionais do Estado.

A tese central da obra de Pashukanis pode ser expressa de maneira resumida — e aqui reside seu erro de princípio: o direito, segundo ele, não é senão uma forma específica da sociedade burguesa, uma estrutura de mediação entre indivíduos econômicos isolados, portadores de interesses privados, isto é, proprietários de mercadorias. Ele afirma que o direito é inseparável da lógica mercantil: uma categoria imanente à circulação de mercadorias, uma função derivada das trocas entre sujeitos de direito, cada qual atuando no mercado como possuidor privado. Daí sua conclusão de que as formas jurídicas seriam exclusivas da sociedade burguesa, impossíveis em um regime socialista.

Efetivamente tenho afirmado, — escreve Pashukanis — e continuo a afirmar, que as relações dos produtores de mercadorias entre si engendram a mais desenvolvida, universal e acabada da mediação jurídica, e que, por conseguinte, toda a teoria geral do direito e toda a jurisprudência “pura” não são outra coisa senão uma descrição unilateral, que abstrai de todas as outras condições das relações dos homens que aparecem no mercado como proprietários de mercadorias.(6)

Aqui se revela o alicerce metodológico profundamente equivocado dessa construção teórica: uma fusão eclética de menchevismo remanescente com elementos do economismo mecanicista. Pashukanis, que ingressou tardiamente no Partido Bolchevique após longa militância entre os mencheviques, jamais superou integralmente os pressupostos ideológicos de sua origem política. Em vez de romper com os limites do pensamento jurídico burguês, ele os reproduziu com rigor formalista, mascarando-os de radicalismo conceitual.

Sua teoria, profundamente antimarxista e contrarrevolucionária, disfarçava sob uma casca aparentemente materialista a essência idealista e metafísica de sua visão de mundo. Embalada com citações pinçadas de obras como a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel, de Humboldt e até mesmo de Kant, sua construção teórica acabava por se transformar em uma colcha de retalhos, promovendo o retorno do subjetivismo e da metafísica à economia política e ao pensamento jurídico soviético. Esse processo operava como verdadeira restauração de dogmas burgueses no seio da ciência socialista.

Ao invés de elaborar, a partir da experiência concreta da ditadura do proletariado, uma teoria revolucionária do direito que correspondesse à nova base material da sociedade socialista em construção, Pashukanis limitava-se a importar e repetir, de forma mecânica, os esquemas da ciência jurídica burguesa. Exatamente como Bukhárin, ao tentar acomodar ao socialismo as categorias da economia mercantil, Pashukanis estendia o domínio do direito burguês sobre a realidade soviética, negando a possibilidade teórica e prática de um direito socialista. Seu direito é o da troca, do contrato, da forma jurídica como expressão do mercado — e, por isso mesmo, sua teoria se alinhava mais à escola liberal de Humboldt do que à doutrina revolucionária de Marx, Engels, Lênin e Stálin.

No plano da prática estatal, a posição de Pashukanis revelava-se particularmente nociva: ele negava frontalmente a legitimidade da aplicação do direito na organização dos campos de trabalho corretivo, assim como rejeitava qualquer regulação jurídica do movimento da economia socialista — seja nas empresas estatais, seja nas cooperativas —, considerando tais instrumentos incompatíveis com sua concepção estreita e abstrata de forma jurídica. No interior da ciência jurídica, sua postura era ainda mais desastrosa: tentou substituir os princípios do direito socialista pelas categorias formais e fetichizadas do direito burguês, abrindo assim as comportas para a penetração do idealismo jurídico sob aparência de erudição filosófica.

Recusando-se a desenvolver um conteúdo socialista para as formas jurídicas herdadas pelo poder revolucionário, Pashukanis sentenciava, com pose de cientificidade, que tais formas eram “incapazes de conter o novo conteúdo” e deveriam, portanto, ser descartadas no momento de sua realização. Aqui se encontra o cerne de sua operação ideológica: a identificação unilateral e metafísica entre forma jurídica e sociedade burguesa, o que o conduzia, não à superação dialética das formas jurídicas anteriores, mas à sua negação abstrata — à eliminação pura e simples do direito como categoria, sem oferecer qualquer substituto teórico ou prático que correspondesse à nova etapa da luta de classes.

Com isso, Pashukanis não apenas distorcia grosseiramente as concepções de Marx, como também invertia o próprio método do materialismo histórico. Interpretando de modo mecanicista a transição para uma nova forma de economia, afirmava que ela implicava não numa superação e reconstrução das formas jurídicas sob nova base de classe, mas sim em sua completa negação — como se o socialismo pudesse prescindir de qualquer forma jurídica, como se a revolução pudesse abdicar de sua organização legal e política. Trata-se de anarquismo disfarçado.

Nesse espírito, Pashukanis negava frontalmente a existência de um direito proletário e dirigia seus ataques contra os juristas soviéticos do campo do direito do trabalho, acusando-os de restaurar categorias jurídicas burguesas ao tratar o trabalho como objeto de regulação jurídica. Chegava ao ponto de afirmar que a fixação de normas laborais e a celebração de contratos de trabalho representavam uma recaída no direito burguês. Essa visão não apenas ignora o papel do direito na disciplina do trabalho e na organização da produção sob o socialismo, mas desarma juridicamente a ditadura do proletariado frente à sabotagem e ao oportunismo.

Sua negação do caráter jurídico do direito penal soviético é igualmente reveladora: considerava-o um resquício formalista sem qualquer essência jurídica, reduzindo-o a mero instrumento de coerção estatal. Essa posição, além de falsa, comprometia a função do direito penal como arma de classe, instrumento de repressão revolucionária contra os inimigos internos e externos da construção socialista. Ao rejeitar todas as categorias jurídico-estatais como “preconceitos antiquados”, Pashukanis contribuía, com sua autoridade acadêmica, para o esvaziamento ideológico e normativo da ciência jurídica soviética — e não é surpreendente que, durante anos, sua influência tenha paralisado a reação crítica dos meios jurídicos diante de tais absurdos.

A filosofia burguesa, em sua sofisticação formal, sempre buscou separar os elementos jurídicos da base material da sociedade, convertendo o direito em uma abstração atemporal. Em contrapartida, a sociedade socialista concebe a lei como um instrumento vivo da luta de classes, no qual os elementos jurídicos não são “formas neutras”, mas expressão das vitórias acumuladas do proletariado no processo de edificação do novo mundo. A “Constituição Stalinista de 1936” consagra essas conquistas históricas, e o direito torna-se um instrumento de consolidação da hegemonia proletária.

Com Pashukanis, ocorre o inverso: mesmo após o 1º Congresso dos Marxistas-Juristas de 1930, ele insistia em caracterizar o direito soviético como “a mais reacionária das formas ideológicas”. E mais: afirmava que o direito burguês, ao menos, “assume honestamente sua natureza de classe”, enquanto o direito soviético, segundo ele, dissimularia seu conteúdo burguês sob a aparência de direito proletário. Essa inversão grotesca não é erro acidental, mas expressão teórica da resistência pequeno-burguesa às tarefas do poder socialista.

A deturpação consciente das ideias de Marx, Engels, Lênin e Stálin servia, em Pashukanis, como cobertura ideológica para a negação da legalidade socialista. Ao negar a especificidade do direito soviético, atuava contra sua sistematização, contra sua codificação, contra sua aplicação como meio de organização política e econômica da transição socialista.

Mas Lênin foi absolutamente claro: “O socialismo nada tem a ver com anarquia, com a negação do direito, da legalidade, da disciplina, da organização”(7). O direito soviético — enraizado nas novas relações de produção, sustentado pela ditadura do proletariado, guiado pelo Partido Comunista — não é uma reprodução do direito burguês, mas sua negação determinada. É direito de uma nova classe dominante, de um novo tipo de Estado, de uma nova etapa histórica.

Pashukanis defendeu com obstinação sua “teoria” jurídica enquanto editor da revista “Sovetskoye Gosudarstvo” (O Estado Soviético), sustentando-a por vários anos com o peso institucional que sua posição lhe conferia.

Em 1934, essa mesma concepção foi reiterada por V. Komarov — também editor do “O Estado Soviético” — num artigo de título pomposo: “Questões Fundamentais da Teoria do Direito Soviético”. Nele se lê a seguinte afirmação: “O direito burguês, entre aspas, não é uma mera formalidade que possa ser esquecida. É um instrumento para a construção do socialismo”(8). Trata-se, evidentemente, de uma repetição servil da fórmula pashukaniana.

Dois anos depois, em 1936, no artigo “O Estado e o Direito sob o Socialismo”, Pashukanis retorna aos mesmos pressupostos já expressos em 1929 e 1932, tentando justificar sua postura negativista diante da tarefa histórica da construção de um sistema jurídico socialista soviético.

Nesse texto, ele reduz a diferença entre socialismo e comunismo ao mero método de distribuição, ignorando completamente que tal diferença implica contradições mais profundas, nas quais o Estado, o direito e instituições jurídicas fundamentais — como a Constituição, os códigos legais e os tribunais — desempenham papéis decisivos no desenvolvimento e na consolidação do socialismo.

Persistindo em seu esquematismo, Pashukanis afirma, mais uma vez, a impossibilidade de estruturar um sistema de direito socialista durante o período anterior à fase “atual”, apoiando-se na tese de que esse teria sido um momento de ruptura revolucionária das velhas relações de produção, exigindo, portanto, uma flexibilidade extrema nas formas jurídicas. Assim, conclui ele, “não se pode falar em um sistema de direito soviético”(9).

Mas por trás dessa aparente flexibilidade, o que se esconde é o mesmo velho formalismo antimarxista. Pashukanis, como nos anos anteriores, volta a recobrir de argumentos fraudulentos sua recusa sistemática a enfrentar a questão fundamental: o que é o direito soviético? Qual seu conteúdo de classe? Quais seus objetivos históricos? Quais os métodos que o distinguem do direito burguês? Sobre todas essas questões centrais, Pashukanis permanece evasivo, quando não inteiramente omisso.

Ao negar o caráter socialista do direito soviético, Pashukanis termina por rejeitar os próprios códigos e leis produzidos pelo Estado proletário.

Quer você considere o Código Civil, o Código de Terras ou o Código do Trabalho — afirma ele, — todos eles, enquanto códigos, não podem mais ser aplicados atualmente.(10)

É certo que muitos desses códigos, elaborados nos anos de 1922 e 1923, encontram-se parcialmente defasados frente às novas condições econômicas e políticas da ofensiva socialista. Mas Pashukanis não propõe sua atualização nem sua renovação dialética — ele simplesmente os descarta, sustentando que foram “concebidos para a coexistência e a luta entre os setores capitalista e socialista”.

Essa posição revela, em última instância, uma profunda incompreensão — e até uma perversão grosseira — da natureza histórica e revolucionária dos códigos soviéticos. Ao invés de reconhecer neles uma forma transitória e necessária da legalidade proletária, instrumento de regulação e fortalecimento do poder popular, Pashukanis os condena em bloco, perpetuando assim uma concepção anarquizante, desorganizada e idealista da transição socialista.

Pashukanis distorce flagrantemente o conteúdo real da política legislativa soviética durante o período da Nova Política Econômica (NEP), falseando o papel desempenhado pelos códigos jurídicos elaborados nesse momento e outros marcos normativos da década de 1920.

Esses códigos, ao contrário do que afirma Pashukanis, não eram meras “recepções” ou adaptações passivas de modelos jurídicos burgueses, tampouco desenvolviam ou consolidavam supostos elementos pequeno-burgueses de mercado. Ao invés disso, refletiam concretamente as contradições de uma época de transição, servindo como instrumentos jurídicos específicos da ditadura do proletariado. Seu objetivo não era outro senão proteger os interesses da classe trabalhadora, organizar as novas formas econômicas sob controle estatal e pavimentar o caminho da construção socialista.

Já em 1922, Lênin advertia com nitidez contra o risco de se escorregar para uma posição conciliadora ou restauradora do direito burguês. Lênin escrevia a Kursky, então Comissário do Povo para a Justiça:

Está em curso a elaboração de uma nova legislação civil. No entanto, o Comissariado do Povo para a Justiça (NKIU), ao invés de assumir uma postura revolucionária, limita-se a “ir com a corrente”, como se o espírito da época ainda estivesse submisso à velha ordem. Percebe-se aqui um grave erro de orientação: o papel histórico do NKIU não é adaptar-se às formas jurídicas herdadas da sociedade burguesa, mas combatê-las ativamente. É tarefa sua desmascarar o conteúdo de classe dessas categorias e superá-las com uma nova concepção de direito — um direito civil socialista. A abordagem dos chamados “contratos privados” deve, portanto, deixar de ser um culto servil aos modelos do passado e tornar-se campo de experimentação e afirmação de novas formas jurídicas, compatíveis com a organização coletiva da produção e com a supremacia dos interesses sociais sobre os privados.

Ainda em 1922, em outra anotação a Kursky, Lênin escrevia:

Nós não reconhecemos o princípio da “esfera privada” como fundamento legítimo das relações econômicas. Para o poder soviético, toda a economia deve ser compreendida como parte integrante da esfera pública, submetida ao controle consciente e coletivo da classe trabalhadora organizada em Estado. O que toleramos, sob determinadas condições transitórias, é a existência de formas capitalistas sob estrita regulação estatal — e mesmo isso como concessão tática, jamais como princípio. Disso decorre, com clareza meridiana, a necessidade imperiosa de ampliar a intervenção do Estado proletário nas relações até então consideradas “privadas”. O Estado deve reivindicar, como direito político e dever revolucionário, o poder de anular contratos que, sob a aparência de legalidade civil, escondem formas de exploração ou sabotagem da economia socialista. É necessário submeter essas relações ao novo direito — um corpus juris revolucionário, que rompa com o formalismo e afirme a supremacia dos interesses coletivos sobre os interesses privados. Para tanto, impõe-se o desenvolvimento sistemático de uma consciência jurídica revolucionária: uma prática jurídica ativa, persistente e militante, que se manifeste com clareza, constância e firmeza nos tribunais do novo poder, como é preciso fazer com inteligência e energia.(11)

Em outubro de 1922, durante a 4ª Sessão do Comitê Executivo Central Pan-Russo, ao intervir no debate sobre a adoção do novo Código Civil, Lênin apontava a contradição que se impunha à construção jurídica do Estado soviético:

Aqui tentamos traçar a fronteira entre aquilo que é uma satisfação legal das necessidades humanas, ligadas ao giro econômico moderno, e aquilo que representa um abuso de direito, legalizado em todos os Estados, mas que nós legalizamos conscientemente e com ressalvas.(12)

Segundo Lênin, o Código Civil devia servir como instrumento de combate ao “abuso da NEP, que é legal em todos os Estados”, ou seja, devia enfrentar, de forma ativa e vigilante, os princípios e o conteúdo burgueses herdados dos códigos civis capitalistas. Tratava-se, portanto, de utilizar o direito como arma na luta de classes, como forma jurídica da transição socialista — jamais como um terreno neutro ou técnico, mas como campo de disputa entre a velha ordem e o novo poder proletário.

Pashukanis, por sua vez, reduziu o conteúdo do Código Civil soviético à mera “coexistência dos setores capitalista e socialista”, expressão ambígua que dilui a contradição entre modos de produção antagônicos numa fórmula administrativista e pacificadora, negando o papel revolucionário do direito sob a ditadura do proletariado. O contraste entre as duas posições não é pequeno — é abissal. E justamente por isso, a distorção das concepções de Lênin a respeito do direito civil adquire um caráter particularmente grave e revelador.

Mesmo quando tenta praticar uma suposta “autocrítica”, Pashukanis não deixa de revelar seu verdadeiro pensamento: afirma que nossa legislação “é, ou ao menos deveria ser, um conjunto de formulários cujo significado seja acessível e compreensível a todos os trabalhadores”, e conclui que “um objetivo de classe política deveria estar na base de seu sistema”. À primeira vista, essas palavras podem soar democráticas ou progressistas. Mas o que nelas se exprime, na realidade, é a conversão da forma jurídica socialista em cópia da formalidade liberal — é a apologia do direito como técnica, como manual de procedimentos, como normatividade vazia de conteúdo revolucionário.

As expressões que sublinhei são, em essência, a confissão ideológica de Pashukanis: sob o verniz do vocabulário marxista, esconde-se o velho jurista burguês, disfarçado de legalista soviético. A sua teoria — ainda que vestida com roupas novas — era a porta entreaberta para a restauração do direito burguês em nosso sistema jurídico. Sua figura, longe de representar uma ruptura com o velho direito, funcionou como seu mediador técnico e ideológico.

No campo do direito penal e processual, a “teoria” de Pashukanis conduz, de maneira lógica e inevitável, à negação do próprio direito penal e do processo judicial enquanto tais. Com um formalismo disfarçado de radicalismo, Pashukanis afirmava que conceber a pena como retribuição ou vingança seria irracional, tanto do ponto de vista da defesa da sociedade quanto do da correção do infrator. Mais ainda: sustentava que qualquer tentativa de justificar essa função retributiva da pena tornaria os tribunais e as sentenças “algo supérfluo”.

Mas o que se deduz, dialeticamente, de tais premissas? Apenas duas possibilidades se colocam: ou se reconhece que a pena, sob determinadas formas e condições históricas, mantém seu caráter de retribuição enquanto expressão do juízo social coletivo sobre a gravidade do ato criminoso; ou se deve trilhar o caminho da abolição dos tribunais, das sentenças e, em última instância, da própria categoria jurídica da responsabilidade penal.

Tertium non datur — “Não há terceira via”. Para Pashukanis, o “desenvolvimento” do direito soviético deveria precisamente operar nessa direção: a supressão progressiva das instituições jurídico-penais como tais. Sua lógica não era a de um direito proletário em transição, mas a do esvaziamento de toda forma jurídica, a dissolução do conteúdo político da justiça em um puro esquema tecnocrático-administrativo.

Se, até hoje, essa supressão não se consumou, a explicação oferecida por Pashukanis é reveladora: para ele, trata-se apenas da persistência de resquícios burgueses, da força de inércia ideológica das antigas estruturas dentro da nova ordem. Como se a existência de tribunais, de procedimentos legais e da forma penal fosse um desvio e não uma mediação necessária na etapa histórica da ditadura do proletariado.

V

Pashukanis e sua escola jurídico-formalista empreenderam, com obstinação sistemática, uma política profundamente liquidacionista e sabotadora — tanto no plano da teoria jurídica geral quanto na abordagem das disciplinas jurídicas específicas. Longe de ser uma tendência isolada ou um equívoco doutrinário, essa prática revelou-se como uma linha de atuação consciente, objetivamente orientada para o desmonte das bases jurídico-políticas da ditadura do proletariado. Seu impacto foi particularmente danoso no terreno estratégico do ensino jurídico e na formação ideológica dos juristas e advogados soviéticos — um campo fundamental em toda etapa da construção socialista.

No domínio do direito do trabalho, a influência da linha pashukanista traduziu-se em um reducionismo perigoso, ao restringir o escopo da matéria às relações contratuais entre trabalhadores e empregados, como se a legislação laboral sob o socialismo pudesse ser pensada nos moldes do direito capitalista do trabalho assalariado. No campo do direito público, a política de liquidação foi ainda mais explícita e agressiva: durante o período mais decisivo da consolidação das fazendas coletivas — quando surgiam problemas jurídicos novos, complexos e urgentes —, os teóricos da escola de Pashukanis simplesmente se abstiveram de enfrentá-los. As questões jurídicas vinculadas ao kolkhoz, às formas de propriedade coletiva e à gestão socialista da terra foram ignoradas ou secundarizadas. A ausência não foi acidental: tratou-se de uma renúncia consciente à tarefa revolucionária de dotar o campesinato coletivizado de formas jurídicas compatíveis com a transição socialista. A política da omissão era, na prática, a política da sabotagem.

É evidente, portanto, como tais práticas liquidacionistas contaminaram profundamente o ensino jurídico nas universidades e instituições de formação técnica. A juventude soviética, ao invés de ser armada com o método dialético-materialista e com o conhecimento orgânico do papel do direito na luta de classes, foi alimentada com esquemas economicistas, tecnicistas ou puramente normativos — todos igualmente estéreis e ideologicamente desarmantes.

Os frutos mais reveladores dessa política contrarrevolucionária se manifestam no campo do direito civil. Como vimos anteriormente, o próprio termo “direito civil” foi extirpado da literatura jurídica, dos manuais, dos currículos e dos programas de ensino. Em seu lugar, foi entronizado o chamado “direito econômico” — categoria vazia, sem rigor teórico nem fundamento marxista, cuja função ideológica era apagar os traços da legalidade revolucionária e substituir a análise das formas jurídicas pela repetição mecânica de abstrações econômicas mal compreendidas.

Os autores mais influenciados por essa tendência — Amphiteatrov, Kosteltsev, Dotsenko, Ginzburg e outros — limitaram-se a circunscrever o campo jurídico às relações da economia socializada, eliminando da análise qualquer preocupação com a forma jurídica e seu conteúdo político. Ao fazê-lo, prestaram um serviço valiosíssimo à propaganda burguesa anticomunista: legitimaram, a partir de dentro, a falsa acusação de que o comunismo seria hostil ao indivíduo, à subjetividade, aos direitos e às garantias — quando, na verdade, o socialismo cria, pela primeira vez, as condições históricas reais para o florescimento de uma legalidade nova, não baseada na exploração, mas na coletividade consciente e na supremacia dos interesses populares.

A escola de Pashukanis, sob a máscara do radicalismo antijurídico, serviu de instrumento teórico aos inimigos do socialismo. Tentaram minar, de dentro, a base jurídica do Estado soviético — um dos mais poderosos instrumentos de exercício da ditadura do proletariado, de consolidação da economia socialista e de defesa da revolução contra seus inimigos internos e externos.

É, pois, tarefa urgente e inadiável a completa e sistemática refutação das “teorias” de cunho trotskista-bukharinista que ainda contaminam setores da ciência jurídica soviética. Devemos desnudar suas raízes ideológicas, denunciar seus compromissos antipopulares e extirpar suas influências dos manuais, das universidades e da cultura jurídica. É preciso eliminar, sem concessões, todas as formulações antipartidárias, antipatrióticas e contrarrevolucionárias que se perpetuaram sob o manto da intelectualidade jurídica.